Fonte da imagem: Blog Estradas de Sol |
[2] De
alguma forma a nota de rodapé tem sido tratada como uma versão do inconsciente
freudiano, uma versão da ideia de que contra a luz patente da consciência se
levanta o sol poente da penumbra, o arquivo de sombras, o abrigo, sanatório ou
Arcádia dos conteúdos latentes e reprimidos. Sim, talvez a nota de rodapé seja
o refúgio dos textos reprimidos. Alguns autores por mais apaixonados que fossem
pelas loiras madeixas da luz do dia, da consciência, não conseguiram esconder o
encanto que sentiam pelos cabelos negros de Ártêmis que, com seu mistério lunar, ilumina a desprezada nota de rodapé. Como é sabido, as fases da Lua são
diferentes penteados de Ártêmis. Inclusive, a Lua Cheia é Ártêmis quando faz com
seus cabelos um rabo-de-cavalo, deixando exposta sua face que rouba emprestada
a luz do Sol para dela construir a luz ao mesmo tempo nova e anciã do enigma.
E, certamente talvez, o desprezo que recebe a Lua - a nota de rodapé - é capaz
de dotar seu rosto de beleza irresistível (Sim, talvez a maior parte dos textos
ocidentais tenha algo de bissexual, pois se dividem entre os cachos solares de
Apolo que escorrem pelo texto principal e os cabelos morenos de Ártêmis que deságuam
pelas notas de rodapé). Mas, isto é só uma hipótese quase absurda.
Até hoje não compreendo porque as notas de rodapé não
se permitem ser divididas em parágrafos. Talvez seja porque, encaradas como
depósitos de retraços, sejam imageticamente pensadas para ser um amontoado de
informações. Mas, as notas de rodapé, como apêndices que são, reagem a essa
situação em que são colocadas: um misto de desprezo e atração selvagem. E, não
raro, as notas de rodapé inflamam-se e tornam-se clamor, eclipsando o texto
principal. E quando uma nota de rodapé supura? Quando o paratexto ameaça se
tornar texto principal? Um mundo sem direito a nota de rodapé, sem direito ao
contraditório. Um mundo sem direito a textos de segunda classe, sem direito à
luz da Lua e ao enigma: é aí nesse tipo de mundo que florescem as ditaduras, os
totalitarismos. A burca é um sinal do que pretende ser um mundo onde o texto
principal impera sem rival. A burca parece uma tentativa simbólica de velar por
completo a luz enigmática de Ártêmis, aprisionando-a eternamente na Lua Nova e
boicotando a luz periférica do contraditório, do mistério, da ambiguidade. Mas,
isto talvez seja só uma hipótese quase absurda.
De certo, a nota de rodapé, assim como a deusa Diana, é
uma exímia caçadora que se embrenha com suas flechas de luz enigmática no lagar
mais negro das florestas do ser. Mas, é fazendo uso de uma das armadilhas de
Diana/Ártêmis que Dionísio destila todo o seu vinho. E o sol brilhante do texto
principal teria, certamente talvez, um brilho cego e inútil se não se
permitisse beber do vinho dionisíaco e se não se permitisse dormir amparado
pelo quebra-luz instalado na face de sua irmã gêmea Ártêmis/Diana. Mas, isto
seria só uma hipótese, absurda quase.
A nota de rodapé tem uma fragrância de amor secreto, de
sorriso secreto destilado no rosto sério do texto principal. É uma sonata de desculpa para
atravessar o Atlântico e espiar o que a fé já tinha como certo: que a viagem de
descoberta do Velho Mundo foi tranquila e que o Nobre sorriu no desembarque.
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