1 de julho de 2012

Nota sobre Ártêmis, isto é, sobre a nota de rodapé, ou seja, sobre o amor transatlântico


Fonte da imagem: Blog Estradas de Sol












[1] Esta postagem é irmã gêmea desta postagem aqui.

[2] De alguma forma a nota de rodapé tem sido tratada como uma versão do inconsciente freudiano, uma versão da ideia de que contra a luz patente da consciência se levanta o sol poente da penumbra, o arquivo de sombras, o abrigo, sanatório ou Arcádia dos conteúdos latentes e reprimidos. Sim, talvez a nota de rodapé seja o refúgio dos textos reprimidos. Alguns autores por mais apaixonados que fossem pelas loiras madeixas da luz do dia, da consciência, não conseguiram esconder o encanto que sentiam pelos cabelos negros de Ártêmis que, com seu mistério lunar, ilumina a desprezada nota de rodapé. Como é sabido, as fases da Lua são diferentes penteados de Ártêmis. Inclusive, a Lua Cheia é Ártêmis quando faz com seus cabelos um rabo-de-cavalo, deixando exposta sua face que rouba emprestada a luz do Sol para dela construir a luz ao mesmo tempo nova e anciã do enigma. E, certamente talvez, o desprezo que recebe a Lua - a nota de rodapé - é capaz de dotar seu rosto de beleza irresistível (Sim, talvez a maior parte dos textos ocidentais tenha algo de bissexual, pois se dividem entre os cachos solares de Apolo que escorrem pelo texto principal e os cabelos morenos de Ártêmis que deságuam pelas notas de rodapé). Mas, isto é só uma hipótese quase absurda.

Até hoje não compreendo porque as notas de rodapé não se permitem ser divididas em parágrafos. Talvez seja porque, encaradas como depósitos de retraços, sejam imageticamente pensadas para ser um amontoado de informações. Mas, as notas de rodapé, como apêndices que são, reagem a essa situação em que são colocadas: um misto de desprezo e atração selvagem. E, não raro, as notas de rodapé inflamam-se e tornam-se clamor, eclipsando o texto principal. E quando uma nota de rodapé supura? Quando o paratexto ameaça se tornar texto principal? Um mundo sem direito a nota de rodapé, sem direito ao contraditório. Um mundo sem direito a textos de segunda classe, sem direito à luz da Lua e ao enigma: é aí nesse tipo de mundo que florescem as ditaduras, os totalitarismos. A burca é um sinal do que pretende ser um mundo onde o texto principal impera sem rival. A burca parece uma tentativa simbólica de velar por completo a luz enigmática de Ártêmis, aprisionando-a eternamente na Lua Nova e boicotando a luz periférica do contraditório, do mistério, da ambiguidade. Mas, isto talvez seja só uma hipótese quase absurda.
 
De certo, a nota de rodapé, assim como a deusa Diana, é uma exímia caçadora que se embrenha com suas flechas de luz enigmática no lagar mais negro das florestas do ser. Mas, é fazendo uso de uma das armadilhas de Diana/Ártêmis que Dionísio destila todo o seu vinho. E o sol brilhante do texto principal teria, certamente talvez, um brilho cego e inútil se não se permitisse beber do vinho dionisíaco e se não se permitisse dormir amparado pelo quebra-luz instalado na face de sua irmã gêmea Ártêmis/Diana. Mas, isto seria só uma hipótese, absurda quase.

 A nota de rodapé me permite, numa virada junguiana, ver que existem dois mundos e que a realidade não é restrita a uma só dimensão amesquinhada e pirangueira. Quando levada a sério, a nota de rodapé devolve ao imaginário, ao sonho, o direito de restabelecer o diálogo entre Apolo e Ártêmis, irmãos gêmeos que o movimento iluminista, viajando aos tempos míticos, tentou separar quando do nascimento deles. O momento atual, que se chama de pós-modernidade, não é mais do que a chance dada a Leto (mãe dos gêmeos) de ver novamente unidos os irmãos. Mas, como é sabido, os gêmeos para se unirem precisam encontrar um modo de fazer conviver suas diferenças e suas semelhanças e suas semelhanças disfarçadas de diferenças e suas diferenças disfarçadas de semelhanças.

A nota de rodapé tem uma fragrância de amor secreto, de sorriso secreto destilado no rosto sério do texto principal. É uma sonata de desculpa para atravessar o Atlântico e espiar o que a fé já tinha como certo: que a viagem de descoberta do Velho Mundo foi tranquila e que o Nobre sorriu no desembarque.


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