29 de setembro de 2012

Vai ser um mico se eu ficar triste pela morte de Hebe?



Hebe Camargo - by Koema


Vai ser muito mico se eu disser que fiquei triste pela morte de Hebe?
Afinal, eu nem a conhecia
Como sentir algo por alguém sem o conhecer há no mínimo cinco anos,
Como prescreve o código civil...?
Mas, quem nunca conheceu alguma pessoa que acha mais "normal" tirar o ódio do esconderijo
Sem ter sequer contado até cinco?

Vai ser muito mico se eu não disser que fiquei triste pela morte de Hebe?
Se eu achar as homenagens artificiais
E demorar cinco dias para que minha alma respire fundo
E encontre seu próprio tempo de ficar triste?

Vai ser muito mico se eu achar que tanta simpatia em Hebe
Era bom demais pra ser verdade?
Vai ser muito mico se eu acreditar
Que a verdade pra ser verdadeira
Não precisa ser um insulto,
Mas também não é obrigada a ser uma declaração de amor?

Vai ser mico se eu desautorizar o Português
E inventar antes de Da Vince a revolucionária expressão “Lindo (a) de viver!”?

Vai ser muito mico se eu alugar uma tarde na TV aberta
Para extrair elogios – uns falsos, outros talvez –
De pessoas pré-contratadas para ser amigas de Hebe?

Vai ser um mico se eu descobrir que existe vida após a morte
E que mesmo sendo o mar repleto de ódios e terrores
Há também as ilhas de amor e boa-vontade (que não são de se jogar fora...)?

Vai ser um mico descobrir que os selinhos que Hebe distribuía
Redimiram inúmeros beijos que não foram dados
E dignificaram tantos lábios
Que não acharam a saída de emergência da camisa-de-força?

Vai ser um mico acabar com a guerra
Assumindo que acho o adversário uma gracinha?

Você não sabe - por Hebe Camargo

26 de setembro de 2012

A Síndrome de Tourette e a síndrome da Esperança



O canto do Corujão tem sido uma nota destoante na melodia monótona da programação da TV aberta. E, como é sabido por quem bem o sabe, o zapear dos canais é o elo perdido entre o acaso e o destino. Embalei a insônia, assistindo a Front of the class (só não descobri se quem saiu ganhando com isso foi o acaso ou o destino). Dirigido por Peter Werner e protagonizado por James Wolk, o filme é baseado na vida de Brad Cohen, um norte-americano que luta para que sua síndrome de Tourette não faça adormecer o sonho de ser professor.

Cohen enfrentou muitas humilhações até conseguir uma oportunidade de fazer a balança da esperança deixar de pender para o lado do absurdo (outro nome para a esperança reprimida) e passar a pender para o lado da possibilidade. Antes de ser aceito como professor, Brad foi recusado por 24 escolas. Seu carisma e boa aparência não eram suficientes para driblar o preconceito contra a síndrome de Tourette.

Certamente, a história é ferida pelo clichê “Eis uma lição de vida” e, fatalmente, remete a um dos épicos mais populares do You Tube: a saga de Joseph Climber. Mas, quando se dá espaço para que a ferida cicatrize, percebe-se algo inusitado: o modo como o personagem além de administra a síndrome de Tourette, precisa lidar com a síndrome da esperança. 

As duas síndromes têm em comum o fato de trazerem um componente involuntário em sua composição. A Tourette caracteriza-se por tiques nervosos (em casos mais raros a pessoa xinga e fala palavrões involuntariamente) e espasmos musculares devidos a descargas elétricas que, ativam áreas do cérebro contra a vontade do portador da síndrome.

Para enfrentar o problema, Cohen dedica-se com tamanho afinco ao trabalho que cativa as crianças para as quais dá aula. Não tem vergonha de rir de si mesmo e faz de suas limitações uma porta para a criatividade e um fator do qual brota a credibilidade que o faz ser reconhecido como o melhor professor do ano.

Dá pra dizer que Cohen é um viciado em esperança. Muitos insistiam que ele abortasse o sonho, considerando inútil gestá-lo como alguns consideram inútil a gestação em casos de anencefalia. Mas, o personagem recusa-se a admitir que a esperança seja abortada sem ter tido direito de nascer. 

Ele até se desespera – desespero que o filme preguiçosamente ilustra com cenas de um apartamento bagunçado onde Cohen perambula com a barba por fazer... Mas, com o apoio dos amigos, da mãe, e principalmente da gilete e do creme de barbear, ele retoma a esperança, que, como é sabido por quem bem o sabe, é uma droga das mais potentes (Mas, de acordo com um dos pensamentos de Epicuro – Best Seller nas padarias e barzinhos - é a dosagem que define a fronteira entre remédio e veneno). “A esperança é um hábito difícil de escapar”, diz Cohen a certa altura da película.

Certamente um vício nunca vem desacompanhado. Quem fuma, comumente bebe junto café ou coca-cola ou os três juntos (sempre ao lado de um vício explícito há um vício secreto...). Com a esperança não seria diferente. O co-vício dela é a impaciência/teimosia. 

Dotado de esperança profunda, Cohen é ferido em cheio pela impaciência. Isso faz com que ele perca oportunidades, pois a ansiedade nos testes intensifica a Tourette.  Sobre isso, o personagem diz: “É difícil ter paciência quando parece que se está perdendo a última chance”. É verdade! (pelo menos até que alguém que nunca teve esperança ou impaciência atire a primeira pedra)...

Mas, certamente a esperança é um vício que não mata. Afinal, como ela é a última que morre, precisa da plateia pra lhe fazer companhia...

Cena marcante do filme Front of the Class (principalmente a partir de 2:40)

12 de setembro de 2012

Uma tarde com a leveza: À Lundi!




Leveza - Binho Martins (Brasil/SP)


Uma tarde com a leveza -  Por Alzira Reis



A leveza pediu uma taça de chá    
E tomou sorrindo uma xícara de champanha                                    
                                                                                         
                                                                                           E deu um abraço tão apertado no medo
                                                                                           Que as correntes se romperam


E o mar pôde levantar voo                                                  
                                                                                       


E conhecer o céu                                                              

E pude ajudar um amigo a quase crer
                                                                                           Na vida 
                                                                                           Após a morte



E o quase entre amigos que sorriem juntos
É a ponte que, nos descaminhos, conduz ao amanhã

                                                                                        Passado e futuro, por um instante,
                                                                              Viraram doce de leite precipitado nos abismos
                                                                                                       da xícara

E pude prever um portentoso presente
No balé
Dançado em câmera lenta pela borra
do café



E me senti tão leve
Sendo eu quando pensei que só podia ser nós                      Sendo nós quando pensei que só
                                                                                           podia ser eu



 Sendo nós quando pensei que só
Podia ser nós                                                                               Sendo eu quando pensei que só
                                                                                                   Podia ser eu





                                          E me senti tão leve
                                          Que uma rosa emergiu das luzes de minhas águas
                                          Dos mares de minha doçura , doce ira, que a Alguém pertence


Das nuvens de meu mar
Do meu que não precisa ser meu


                                        .Para me possuir


Paint the sky with stars - Enya


9 de setembro de 2012

A esquina do mar Dulce e a poesia de Pinzón



Dulce Pontes



Pinzón, além de navegador, foi um ilustre poeta desconhecido. A seguir, uma de suas poucas poesias:


Esquinas do Mar Dulce

Se eu te achasse mais lindo,
Não acharia mais meu sono de tanto que morreria de tanto que lembraria
E qual exagero quereria acolher em seu ventre minhas cinzas
E meus azuis?

As brabezas de tuas marcas de expressão
São-me as notas graves do momento supremo de entrega
Da mais que primeira sinfonia
E quando esboças sorrir
O sacramento da obra-prima
Abre passagem
Para o amor inconfesso me ungir

E a dureza de teu olhar
Destila em orvalho
As dores dos que foram feridos pelos crimes impunes
E só assim eu bebo que de teu nome
E teu pronome
Que me sorri de um salto sem abismo
De um assalto à contramão
De uma invencível armada
Encalhada nas esquinas
Onde o mar volta a ser doce.



Canção do mar - Dulce Pontes


8 de setembro de 2012

A natividade de Maria e a opinião estéril da Igreja sobre a fertilização in vitro

«Naissance de Marie» de Joseph Aubert
(Décor : intérieur d'une maison à Jérusalem)



Os evangelhos apócrifos são versões não-oficiais, das quais a Igreja Católica retira informações para subsidiar os quatro evangelhos canônicos. É por meio dos evangelhos apócrifos que tomamos conhecimento, por exemplo, que os pais de Nossa Senhora são Ana e Joaquim.

Estes mesmos evangelhos relatam que Sant’Ana era uma mulher estéril, mas que recebeu de Deus a graça de se tornar, já em idade avançada, mãe de Maria. 

Ao longo da história do povo judeu, existem vários casos em que Deus reverte a esterilidade. E as mulheres que são agraciadas trazem ao mundo pessoas que abrem caminho para grandes libertações. Assim foi com Ana, que gerou o profeta Samuel, que abriu caminho para que Davi se tornasse rei de Israel, unificando o povo hebreu. Mais de um milênio depois, outra Ana viria a ser mãe de Maria, que fez de seu próprio ser caminho para Jesus entrar no mundo. A prima de Maria, Isabel, também deixou de ser estéril e gerou João Batista, chamado de “preparador dos caminhos do Messias”.

A reversão da esterilidade traz como mensagem que Deus faz brotar, daqueles que o mundo dá por casos perdidos, o milagre e a salvação. Ele parece gostar de surpreender. E os milagres parecem ser um desafio a nossa tendência de subestimar os outros.

Só não compreendo como a natividade de Maria, hoje celebrada, não chama a atenção de certos setores da Igreja, que insistem em se posicionar contra a fertilização in vitro, considerada inadequada por não envolver o ato sexual. Mas, este tipo de tratamento médico não é uma reescritura, em termos científicos, do milagre divino que reverte a esterilidade?

Alguns argumentam que a fertilização in vitro é um processo “frio” e desprovido de afeto. Esse ponto de vista só faria sentido se resumíssemos a chama do amor ao acoplamento entre o os órgãos sexuais masculino e feminino, destinado à reprodução. 

De acordo com esta perspectiva tacanha, os estéreis não teriam o direito de amar, pois a relação entre eles seria “inócua”. Se eu estiver sofismando, por favor me corrijam! Mas, acho que sofisma maior é a insistência de uma parcela da Igreja em resumir a potência infinita do amor ao encaixe genital com fins de reprodução, confinando o que foge a este propósito à esterilidade sem direito ao milagre que habita quaisquer relacionamentos humanos.

A seguir, reproduzimos, em homenagem à Natividade de Maria, um trecho do Sermão do Nascimento da Mãe de Deus, escrito pelo padre Antônio Vieira:

Quereis saber quão feliz, quão alto é e quão digno de ser festejado o Nascimento de Maria? Vede o para que nasceu. Nasceu para que dEla nascesse Deus. (...) Perguntai aos enfermos para que nasce esta celestial Menina, dir-vos-ão que nasce para Senhora da Saúde; perguntai aos pobres, dirão que nasce para Senhora dos Remédios; perguntai aos desamparados, dirão que nasce para Senhora do Amparo; perguntai aos desconsolados, dirão que nasce para Senhora da Consolação; perguntai aos tristes, dirão que nasce para Senhora dos Prazeres; perguntai aos desesperados, dirão que nasce para Senhora da Esperança. Os cegos dirão que nasce para Senhora da Luz; os discordes, para Senhora da Paz; os desencaminhados, para Senhora da Guia; os cativos, para Senhora do Livramento; os cercados, para Senhora da Vitória. Dirão os pleiteantes que nasce para Senhora do Bom Despacho; os navegantes, para Senhora da Boa Viagem; os temerosos da sua fortuna, para Senhora do Bom Sucesso; os desconfiados da vida, para Senhora da Boa Morte; os pecadores todos, para Senhora da Graça; e todos os seus devotos, para Senhora da Glória. E se todas estas vozes se unirem em uma só voz, dirão que nasce para ser Maria e Mãe de Jesus" (Sermão do Nascimento da Mãe de Deus).

7 de setembro de 2012

"Pernambuco não te quer": o botão "curtir" e o martelo das feiticeiras





O "bom" e velho curtir do Facebook... Revelando instintos fascistas que, sob o aval das grandes massas (10 curtir no Face já representam para alguns institutos de pesquisa uma multidão maior do que aquelas que aclamam os discursos do ditadores), vendem-se como a descoberta da pólvora. E quantos curtidores do Face nem sabem quem foi Vasco da Gama e atribuem a descoberta das Índias a Jair Bolsonaro?

Um “curtir” para Bolsonaro, que descobriu o critério infalível para definir quem é gente! Tomara que o Ministério da Educação reserve cotas na Universidade para os “não-gente”. E, do jeito que as coisas vão, logo chega o dia em que, antes de sair de casa, teremos de marcar uma das seguintes opções:

() Brancos
Pardos ()
Negros ()
() Não-gente ()
Homossexuais ()


Pelo amor de Deus, que volte a figurar nos questionários a opção “Outros”, antes que seja proibido pelo Estado “laico” o uso das palavras Deus e amor e sejamos obrigado a resumir o fogo de nossas interjeições a “Putz!”. Nem isso, porque como revelam os anúncios de jornal, instituições de “apoio à vida” estão querendo varrer da face da terra a palavra “puta” e tudo que a lembre.

E, como é sabido por quem bem o sabe, marcar um xis não deixa de ser marcar uma cruz, pois a cruz é um xis que desfila na passarela das "certezas" com a postura “correta”.

Quanta fome e sede de “justiça” contida no martelo das feiticeiras, que se esconde no "leve" e “virtual” botão do curtir. Como é sabido por quem bem o sabe, não são muito agradáveis os significados que o dicionário reserva para a palavra “curtir”, significados ligados a procedimentos químicos de tortura impostos a materiais que se deseja conservar, a exemplo do couro.

Por trás do botão curtir mora um duplo clique: o desejo de conservar algo (uma ideia, uma imagem, por exemplo) e o desejo de torturar alguém. Mas, não serei injusto, pois há também uma cota de “curtir” reservada à admiração sincera...

Quantos cidadãos de “primeira categoria” não sofreram por não ter podido dar um curtir na campanha Pernambuco não te quer, promovida pelo Instituto “Pró-vida”? Campanha que revela a obsessão crescente pelo sistema de cotas, cuja face obscura é a hedionda tendência de querer reservar cotas, definindo quem teria ou não o direito de ser tolerado.

E é bom nos acostumarmos a ser tolerados, porque o direito de existir vem se tornando artigo raro e os direitos a personalidade e dignidade espécies em extinção. Mas, felizmente, não há extinção que não possa ser revertida e curtir que não possa ser desfeito.

Sobre O Martelo das FeiticeirasO Martelo das Feiticeiras, chamdo em latim de Malleus Maleficarum é um tratado publicado em 1487. Sua ambição foi a de ensinar os oficiais da Inquisição a reconhecer as bruxas e como elas mascaram suas ações. Ambicionava também explicar e classificar os tipos de malefícios realizados pelas feiticeiras. Na terceira parte, o tratado almeja ser um tipo de código de processo penal, determinando as formalidades para agir “legalmente” contra as bruxas. Neste sentido, busca listar os tipos de tortura a serem consideradas "legais".

Pergunto-me quantos que se dizem "pró-vida" não têm buscado fazer de "ingênuos" meios de comunicação como o botão curtir e publicidades "despretenciosas" versões contemporâneas do martelo das feiticeiras. 

4 de setembro de 2012

O jubileu de ouro do Homem-Aranha e o cálice amargo da salvação

Capa da revista Amazing Spider-Man 700 (Marvel Comics) -
a revista será lançada
para comemorar os cinquenta anos do Aranha




O Homem-Aranha, criado por Stan Lee e Steve Ditko, talvez seja o primeiro super-herói que evidenciou o dilema da salvação. O Super-Homem, retrato de uma salvação ferida pela assepsia, salva de forma a tornar o mundo um cenário devastado pela paz e pelo silêncio.

Já para o Aranha, salvar não significa imprimir seus passos gloriosos na calçada da memória coletiva. Num caminho contrário, o gesto de salvar deste super-herói aproxima-se da angústia de saber que se terá de tomar, todas as noites, de um cálice amargo e no dia seguinte ainda ter de ir para a faculdade e, nas horas “vagas”, surfar no mar turbulento da vida de free-lancer como fotojornalista.

Assim como o leitor deve ter perdido o fôlego para acompanhar a oração precedente até o ponto final, Peter Parker precisa respirar fundo e vagar por Nova York em busca de preces por socorro, antes mesmo de elas serem feitas.

Internamente, uma compulsão de fundo cristão – potencializada pela voz de seu tio que, sem se rogar, usurpa o posto da voz da consciência do rapaz – convenceu o personagem de que não há como ajudar os outros a ter voz sem se oferecer em sacrifício como um carneiro emudecido

Externamente, Dostoievski e Murphy conspiram para que o esforço salvífico do super-herói não passe de uma reprodução do gesto “inútil” de Sísifo. Se bem que, como diria alguém que o disse, Sísifo é um incompreendido, pois o significado de seu gesto não é fazer a pedra chegar ao topo, mas sim lapidar sua alma nos altos e baixos da vida...

Peter Parker não tem apoio logístico e por isso fica impossibilitado de amar. E quando ama consegue deixar os mais próximos a ele fora do raio de ação de seu poder salvador. Assim foi com Gwen Stacy. Capturada por um de seus inimigos, o Duende Verde, a namorada do Aranha foi lançada do alto de uma ponte. Ao tentar salvá-la da queda, laçando-a com sua teia, o personagem acaba fazendo-a sucumbir aos efeitos da inércia, que quebra o pescoço da garota.

Há quem diga que a morte de Stacy tenha sido providenciada porque relacionamentos duradouros contribuem para envelhecer os super-heróis. Faz sentido, embora o carisma de Parker se deva ao fato de ele ser jovial nos problemas e angústias; velho, porém, na reponsabilidade e no sacrifício. É um personagem cujo coração faz pulsar em cada cinco minutos de entrega cinqüenta anos de amor ou de ridículo: felizmente, a diferença entre estes não pode ser captada por seu sentido (ou será no sense?) de aranha.

1 de setembro de 2012

O Gato filósofo existencialista e o Zoocentrismo


Cena do vídeo premiado do gato que atua como filósofo existencialista


O fenômeno do gato que ganhou um prêmio por sua performance como filósofo existencialista aponta para uma reflexão sobre o zoocentrismo. Uma parcela da humanidade parece fatigada de engolir um mundo em que o “Homem” é o centro das atenções. E apostam suas fichas nos animais, projetando neles a nostalgia pelo bom selvagem. Mas, como é sabido por quem bem o sabe, a procura pelo bom selvagem tem, historicamente, se mostrado uma procura por alguém que possa nos fazer acreditar sermos capazes de suprir as carências que a civilização nos impõe.

O animal é amado por ser fofinho, como um bebezinho. Por trás desse discurso, ama-se menos o animal e mais o que ele representa: um bebê que, ao fazer 18 anos, não gritará: “Independência ou morte!”.

O animal é amado por ser um amigo fiel, como jamais nenhum ser humano conseguiria... Por trás desse discurso, ama-se no animal a presença de um confidente humano capaz de nos ouvir sem oferecer contestação ou resistência.

Providencial é querer amar os animais como quem procura neles a parcela da presença humana que não gera desconforto, que não nos oferece resistência ou contradição, que vive para ser refém de nossos cuidados, sem que das minas de sua alma corra o risco de brotar um veio de inconfidência. Vide o filme O Planeta dos Macacos e pensai se os animais continuariam sendo considerados fofinhos se almejassem estar em pé de igualdade com os seres humanos.

O gato filósofo nos faz rir porque sintetiza alguns de nossos desejos mais contraditórios como a busca por alguém que compreenda a fundo nossos temores, dúvidas e terrores sem que haja o risco de ele olhar para nós e nos questionar: “Tens certeza do que falas?” ou pior ainda: “Tens certeza do que és?”. Rimos do gato porque ele representa o desejo secreto humano de ter à disposição um Sócrates preso à coleira e que não faça sujeira fora do montinho de terra "que lhe cabe nesse latifúndio".

O amor aos animais existe, sem dúvida. Mas, como todo amor verdadeiro enfrenta ilusões. Uma delas a de que se corre o risco de amar menos o animal e mais as metáforas que ele catalisa, a exemplo da força, da inocência e, particularmente, da rendição voluntária e da amabilidade incondicional.

Esta postagem é dedicada Anuska Vaz, que me providencia pautas para muitas das discussões de cunho científico deste blog. É dedicada também, com sentimento, a Ana Carolina Morais.

P.S.: O gato existencialista é mesmo fofinho.

Vídeo premiado do Gato Existencialista
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