29 de abril de 2016

Como ir ao cinema em meio a uma guerra civil


Selo da República Helvética, ilustrando Guillaume Tell
Fonte: Wikipedia



Guerra Civil

Cheguei 10 minutos atrasados, mas a hora certa me foi devolvida pelo teu rosto
O filme se tornou um rio chocho
Porque o que prendia minha atenção era a possibilidade de
Descansar meu carinho nas margens do teu tórax

Tua timidez era um mar rouco e teu corpo eram suas ondas
Oscilando entre a distância e o aconchego
E eu tentando, com ajuda do meu torcicolo,
Desembarcar nesse cais de calor
Enquanto um sol se levantava no horizonte da minha taquicardia

Você nem gostava do filme
Não tinha razão nenhuma pra estar ali
Mas, quis fazer de mim motivo
E eu aceitei não precisar ser o motivo

A volta pra casa achou conforto na sauna da felicidade
As penas que costumo me impor romperam o casulo do nunca mais
Prendi a respiração, mas, mesmo assim, o pneu do meu imaginário estourou
Só pra ter chance de ser inflado por tua preocupação comigo

Do alto de minha adolescência tardia,
Espero ansioso que teu salto convide minha queda a voar
Que tua mão tenha coragem de se abrir comigo
De cochichar no ouvido da linha do meu destino
Segredos que não perderão a chance de chover

Até descobrirem que seu primeiro nome é carinho

24 de abril de 2016

Poética de um recurso de infração

Fonte da imagem: blog Nas Ruas de Maceió


Abaixo, segue a reprodução de um recurso de infração indeferido pela Junta Administrativa de Recursos de Infração de um departamento de trânsito qualquer. Chama atenção o tom poético conferido ao recurso, que tentava justificar a infração cometida com base numa desatenção causada pelo sentimento. Infração Cometida?: Dirigir pela contramão no largo do Amparo.


Recurso de Infração

Sinto que estás tão perto
E a medida desta proximidade é o teu sopro no cangote do meu passado
Desmanchando os nós de todos os meus eus: antes sós, agora sóis

Fiquei molinho. Logo eu que, há pouco, tinha à frente um único futuro tímido e abstinente
Descomposto por peças de lego cor de fora do ar chuviscado

Estive por tanto vestido de folha em branco, um pilar com as preces postas em mão
Por tempo tanto
Silêncio alarmante desamparado
Beijos e abraços indispostos em leilão
E a cada martelada um lance negativo me arrematava
Para me jogar fora em mim mesmo
Deixando-me quase vivo

Estás te achegando, tão inesperado
Que o futuro não tem outra escolha a não ser se tornar uma nova chance
Sedutora coragem adoçada com gotas de preguiça
Estás vindo sonolento e alerta como só os justos conseguem ser
Te aprender a me ensinar tem sido um alento pra minhas guerras cardiovasculares

O Eu te amo não precisa mais ser um crime premeditado
Virou uma infração leve, convertida em advertência suave
As quedas não precisam mais ser perfeitas
Nem as tuas nem as de mim, tampouco as quedas d'água
Porque temos reaprendido a cair e a levantar juntos
Ensinando o céu a ser cúmplice, a terra a ser testemunha e o rio a sorrir

É agradável rever-te firme e oscilante
A volta contigo verte alegria em mim
Me ajuda a ir e vir de carona com uma nova versão de mim mesmo
Estou até disposto a perder o voo pra França
Ano após mês
Até quando durar o infinito que estamos prestes a começar a construir
Tomara...
Mas, pra começar
Deixa o suor da minha bochecha aprender a desaguar no teu peito

E minha falta de ar ensinar a respirar o teu beijo

23 de abril de 2016

Recatada, do lar e mantida em cárcere público

Friné em frente ao Areópago, 1861,Jean-Léon Gérôme.


Talvez a ideia de recato tenha nascido na Grécia Antiga, onde a arquitetura das casas desenhou o espaço feminino como uma área interditada ao intercâmbio com a rua. O androceu, lugar do lar reservado ao homem, era uma área aberta a visitas indiscriminadas, possuindo inclusive uma porta para a rua, mesmo que fosse utilizada somente como porta de saída.

Já o gineceu, numa direção contrária, foi concebido para ser uma metáfora em “concreto” do útero, sem contato com o exterior.  Mas, na verdade, trata-se de uma metáfora eivada de vício, tendo em vista que uma metáfora justa levaria em conta que a mulher dá à luz, não sendo, portanto, o aparelho reprodutivo feminino uma prisão sem escapatória, imagem distorcida de onde derivam outras como a de que o pensamento feminino não deve vir à luz ou de que resta a ela o silêncio resignado.

Certamente, talvez, a noite, a lua e o inconsciente são imagens associadas à feminilidade pela história e também pelo imaginário coletivo. Mas, o reforço dado à noção de que a luz lunar é mero reflexo da boa-vontade do sol é uma leitura de uma cultura patriarcal e monoteísta, cujo significado do poder está ligado a concentração e ao monopólio.

A noite não se alimenta dos restos da luz solar, mas, parece-me, convida esta luz a descansar no mistério. Porém, o ponto a ser cosido aqui é o do recato.

Sabe-se que a herança judaica considerava inadmissível que a mulher expusesse a moldura do rosto, isto é, os cabelos. Isto talvez seja por que as ondas capilares remetem a uma memória ancestral que o patriarcado lutou para varrer da história: a da associação figurativa entre a mulher e o mar (ou La Mer, como dirão os franceses).

A Mar, afinal de contas, é o lugar onde a vida tem origem e para onde convergem as rotas. É também o espelho do céu que, com a instituição do patriarcado, tornou-se morada dos deuses supremos e elitistas, que não se misturam com a telúrica, com as coisas do mundo ou do imundo, termo cunhado com o tom pejorativo que o Platonismo lega aos contrastes da natureza palpável e efêmera.

Além disso, a Mulher vestida de Mar está, na verdade, nua e através de seu corpo circulam todos os seres, o contrário da mulher-mônada (câmara secreta), imagem que a cultura patriarcal criou para isolar a potência vital feminina e sua capacidade de promover diálogos inusitados entre razão e emoção, entre o dia e a noite.

Deve ser do primado do patriarcado que deriva a imagem, ainda hoje endossada pela sociedade, de que quanto menor o traje, menor o recato. Ser recatada, nesta perspectiva pobre, é se contentar com o recanto. Uma mulher recatada seria como uma cebola, repleta de camadas de veste e de pudores que separam seu corpo do olhar externo e sua voz da arena dos debates.

É cruel pensar que, diante das transformações que vêm ocorrendo no teatro dos gêneros,  ainda há aqueles que insistam em resumir a dignidade feminina à imagem grega do recato, condenando as mulheres que interagem social e politicamente inclusive através de seus corpos.

A “mulher recatada” é a mulher mantida em “cárcere privado” na esclerosada memória do gineceu grego. Neste sentido, não é de se espantar que a “falta de recato” seja associada a gestos que marquem a inserção feminina na ágora, no espaço público, o que inclui o bar.

A Idade Média tem uma lição a nos dar a esse respeito. Como lembra Norbert Elias, eram usuais as casas de banho em que homens e mulheres compartilhavam, nus, o mesmo espaço, de modo similar ao que acontece nas praias de nudismo. Nesses espaços, mantinha-se submersa a noção de recato e ficava em suspenso o tabu da nudez.

O cenário atual tem investido em espaços onde se colocam em suspenso outros tabus, permitindo que homens exponham fragilidades e mulheres se dispam de fragilidades. São espaços de intercâmbio de características entre os gêneros, sem que o mapa da masculinidade e da feminilidade tenha obrigação de acorrentar suas coordenadas a quaisquer estereótipos.

Nos próximos anos, a expressão “mulher da vida” provavelmente ganhará outra conotação bem como a expressão “homem vivido”.  E, com esta mudança, o fato de a mulher expor o corpo ou tomar um porre deverá deixar de ser encarado como um convite ao insulto e outros tipos de violências físicas ou sexuais, como se só tivesse direito a ser tratada com respeito a mulher-gineceu. Do mesmo jeito, o homem que cuida da casa e das crianças ou divide as despesas com a mulher não será tratado como indigno de botar a cara na rua.

Certamente, porém, as mulheres que saem do gineceu rumo ao mar estão sujeitas ao impeachment instigado pelos defensores do patriarcado e, a exemplo da grega Friné, terão contra si erguidos tribunais escorados em acusações, no mínimo, desarrazoadas

19 de abril de 2016

A oração de DJ Bolsonaro

Fonte da imagem: Notícias Terra



Deus, espero que sejas meu, mas não minha propriedade
Te peço que minha pele não confunda um toque ou um abraço com um estupro
Quando o olhar de um homem me achar bonito, eu não sinta como se
Meu pênis fosse cair pelo tronco, deixando órfã minha masculinidade do pau oco

Não sejam asfixiados os homens que trabalham, estudam e fazem o bem
Porque gostam de perder o fôlego beijando outros homens
Mulheres: idem

Não sejam encontrados nus e assassinados os homens e mulheres de boa-vontade que se beijam e se chupam e suam entrelaçados: homens com homens, mulheres com homens, mulheres com mulheres, homens consigo mesmos, mulheres consigo mesmas

Pela queda do muro de Berlim (lato sensu), meu voto é “Não” ao Impeachment
Dos que foram por mim e meus correligionários considerados responsáveis
Pelo crime de amar sem seguir a risca as normas de acoplagem dos órgãos sexuais
Previstas pelo meu código de ética, que empresto diariamente ao meu Deus

Infunde em mim a tua Sabedoria, Senhor, pra que eu possa entender o porquê desta minha compulsão de emudecer o sexo oral
Possamos ter o nome gravado na mão de direita de Deus sem precisarmos ter o diário de nossas genitálias gravado em nossas testas

Saia de minha tenda o sacramento da Corrupção
E também o da Reafirmação da “masculinidade”, pois
Meu espelho impotente está cansado de repetir
A precoce jaculatória : “Sou ‘Eu Sou Macho’”,
Sob a unção do óleo santo da Petrobrás

Que a árvore da tortura ressarça, de forma ardente, os que têm seu direito de existir suspenso
Por descumprirem o Mandamento que vos dei: “Amai-vos uns aos outros como como Eu”

Perdoa, Pai, porque, no príncipio , criei um mundo
Em que os homossexuais só podiam existir para me fazer rir,
E, ultimamente, estou tentando criar um apocalipse,
Onde, no recomeço, só reste eu para fazer chorar a mim mesmo.

Perdoa-me, Deus, porque não dei descanso nem ao sétimo dia,
Preocupado em velar o que a noite esconde debaixo dos lençóis alheios

Descobri, recentemente, que és um Deus com entranhas
Nas quais insistes em abrigar a todos a todas sem distinção
Tu és masculino e feminino ao mesmo tempo

Pai, Pai, porque te abandonaste?
Por que não és mais meu?
Porque não és mais meu

Adeus, meu






14 de abril de 2016

A opinião de Victor Hugo sobre o riso insano do corregedor da República Brasileira


Victor Hugo
Fonte da imagem: Sapere.it


Desejo por sinal que você seja triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano”
Victor Hugo


Victor Hugo tem conversado comigo a respeito de sua tese, que versa sobre o riso. De acordo com a teoria dele, rir diariamente é bom, mas quando o riso se torna hábito, perde o sal.

Outra categoria de riso, o riso constante, é, segundo o poeta francês, atestado de insanidade. Enquanto conversávamos, Hugo se perguntava se o riso  velado na postura de um corregedor, lançando um bolão de apostas sobre o resultado do Impeachment da presidente do Brasil, encontra endereço mais adequado na esquina da insanidade ou na rua-sem-saída do cinismo.

"O que vem acontecendo nos arredores do atual momento histórico desafia minha capacidade de rir", confessou o criador d'os Miseráveis.  "Mais ainda quando percebo como o riso, historicamente, pode se converter em instrumento de tortura, algo comum no Brasil, lugar onde,, segundo meu amigo Sérgio Buarque de Holanda, estão miscigenadas a cordialidade e a verve ditatorial da herança colonialista", desfechou.

Certamente, talvez, o humor é ferramenta salutar de crítica e desmanche de falsas verdades institucionalizadas e amparadas pela sovinice do “politicamente correto”. O humor mora nas reticências. Está entre a interrogação e a exclamação, mas pende na direção da primeira porque o riso que rima com certezas é um aplauso à farsa: coisa que também vem acontecendo com crescente intensidade no Brasil.

Transformar o riso em ferramenta de antecipação de vereditos ou licença para criminalizar sem provas: tal atitude resume a mistura grotesca que vem ocorrendo entre os risos constante e habitual. E, nisso, até a saborosa excentricidade dos insanos entra em crise, tornando-se insossa insanidade burrocrática.

Não estou querendo me juntar ao coro dos monges conservadores do livro Em Nome da Rosa (Umberto Eco) para tratar o riso como agente indignificador das causas humanas. Só acho triste a tentativa de descapitalizar o riso de sua potência subversiva e transformá-lo em coquetel lúgubre no qual se misturam pré-julgamento, calúnia e arroubos arrogantes de clarividência. É difícil não Temer tal caricatura do riso.



Agradecimentos a Iara Lima, que me apresentou a poesia de Victor Hugo.

8 de abril de 2016

Efeitos colaterais do suicídio temporário



Amor: escultura de Alexander Milov


Não estou falando em me matar: muito definitivo/drástico
Mas quem nunca sentiu vontade de ir ali morrer um pouquinho:
Umas três h
oras somente
Mas, Cristo precisou de três dias
Para transformar a paixão em manhã de domingo

Bonito é se a morte
Vier cheia de efeitos colaterais
Como o purgatório, o inferno, os entes queridos e
 toda aquela gente que já foi tarde

E o pior de todos os efeitos colaterais: acertar as contas consigo mesmo.

Penando bem, talvez seja menos ruim
Permanecer vivo e viver

5 de abril de 2016

O aikidoca e a flecha certeira sem alvo



Fonte da Imagem: Arcanoteca



Trecho da lenda do arqueiro Tell
Por Iludius Idioth


A flecha-katana do arqueiro Tell não para de me atingir desde as 7h e sempre até agora:
70 vezes 7 multiplicadas pelo meu imperdoável dom de querer amar novamente
De quererrar.
A dor até fez meu coração ter vontade de desistir de ser metáfora

Por que ele se reaproximou de mim?
Talvez tenha sido pra mostrar como é possível estar próximo e não estar nem aí?

Sonhei com o dia em que ele me decepcionaria não porque queria me decepcionar
Mas sim por querer ter certeza de que eu suportaria o desafio de estar ao lado dele
Mal sabe ele que sobreviver a ele é um presente
E ter trabalho de ser feliz com ele, uma dádiva que torna a vida hávida

Mesmo no meio do ataque de mísseis,
Ele pode contar com meu amor secreto
Quero ser o ombro onde sua luta encontra a paz
E onde o tai sabaki acerta o passo do mundo

Eis o maior idiota que o livro das horas já inventou: ele se chama eu e antes de amar acredita
Que é capaz de ser amado com reciprocidade
É um idiota cujo coração-tinteiro morre, mas não seca

E cuja escrita não morre, mas não preenche
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