26 de fevereiro de 2013

Notícia atrasada de carnaval


By Karla Vidal



A Antônio Maria


Durante a cobertura do Galo da Madrugada, uma repórter perguntava a um menino de 4 anos estourando se ele gostava de frevo

- O quê?
- Você gosta de carnaval (mudou a pergunta para que o sim planejado por ela encontrasse um atalho nas brechas do acaso-destino e se transformasse em resposta)?
- Gosto, respondeu o guri de forma seca e adulta, como só as crianças sabem fazer.
- Então, dança pra gente ver.

Segue-se então um não respondido com o menear da cabeça do pequeno zorro; um não que nos faz sorrir, como só o não da criança consegue ser.

Depois, a jornalista repetiu o ciclo com uma garotinha que estava perto. Antes do sim, ela já começou frevando e o zorro, contagiado, começou a trotar o frevo, como se a timidez tivesse sido abolida do seu futuro dicionário.

O carnaval do Recife tem dessas coisas. Consegue tirar sucesso da semente que havia sido sentenciada a ser frustração. Por isso, devo ter achado tão bonita a cena vista, na noite anterior,lá no Recife Antigo. Era um casal a suspender pelos bracinhos sua nenenzinha de dois anos, para que ela não pisasse num rastro de urina vertido por um cabrinha sem-vergonha que, entocado por trás de uma combe, lutava para completar a difícil arte de mijar: difícil porque o dito cujo estava todo enfaixado, fantasiado de múmia... Mas, aquilo era bronca safada...

E, mesmo não sendo padre, tive vontade de absolver aquele Tutancâmon porque não queria levar para a folia o peso de nenhum cânon.

Mesmo no carnaval do Recife onde posso me fantasia à vontade com a fantasia de luxo da desvergonha, a máxima do escritor Jack London continua válida: “é típico do ser humano usar a medida com que se mede a si próprio para medir os outros”. Senti isso ao ver um idiotinha recriminar um rapaz porque tinha se empolgado e libertado os quadris para frever ao som de “Nos quatro cantos cheguei”. Por São Alceu Valença! É pecado mortal fazer alguém, em pleno Recife de meu Deus, sentir-se envergonhado por cair na tentação do frevo. E porque se envergonhar desse cair que é certamente talvez o único no mundo que não exige paraquedas. 

O rapaz se afastou um pouco e passara a dançar de forma mais “comedida”. Tive uma vontade de roubar a tesoura do passo de uma frevista e cortar o fio de preconceito e mesquinharia que invisivelmente se infiltra até no ardente calor do frevo. Mas, era-me impossível deixar sem um de seus passos aquela dançarina que, ao som de Maestro Spock, fazia-nos lembrar que o carnaval é uma jornada de três dias pelas estrelas com passagem de volta para uma ingrata quarta-feira e passagem só de ida para a esperança de que em dezembro haveria mais. 

Sim, pois, como aprendi com o jornalista e compositor Antônio Maria, o carnaval do Recife nasce junto com o Menino Jesus, não o Jesus de Praga, mas sim o Jesus de muitas bênçãos que batiza com fogo e faz o mundo frever. E, ao menos, até o início da Quaresma, Recife faz seu coração desmentir Drummond, tornando o mundo, incluindo os Raimundos, nele cabível.

O palco no Recife Antigo seguia estrondando, mas Spock sabia que não havia risco nenhum de pane naquela Enterprise comandada por ele e habitada por tripulantes das mais diferentes origens e destinos. Fafá de Belém, veterana, errava letras de músicas, mas já era tarde... Ela já havia sido contaminada pela saudável mania dos pernambucanos de convencerem o mundo inteiro a ninar com eles os frevos do passado como se houvessem acabado de ser dados à luz.

Deve ser por isso... Como nos lábios do Recife e Olinda as canções são eternas crianças, elas são cantadas com pausas para balbucios. Algo do tipo: “Voltei Recife, foi a saudade que me trouxe pelo braço. Quero ver parárá tanranran parará tanranran parará tan Tomar umas e outras e cair no passo!”.

Spock chama Luiza Possi para cantar ao som dos metais Madeira do Rosarinho. Parece que não há quem não saiba cantar essa música, pois os que pensam que não sabem é por estarem confundindo desconhecimento com amnésia temporária. A jovem, de cabelos longos, trouxe consigo sentimento de tal intensidade que, por instante, deu a impressão de Zizi Possi, que não estava lá, estar junto à filha cantando a dor da injustiça da qual não escapa nem mesmo a “madeira de lei que cupim não rói”.

Um bobão, perto de mim, perguntou a um de seus amigos (que, pelo sotaque e pela barba ruiva, vinha de mares pertencentes ao litoral sul do Brasil):

- Qual a sensação de ver todo mundo cantando as músicas de cor e você não?
- Me sinto ótimo porque onde a letra me falha é que meu coração se encanta.

#Precisodizeralgomais  

Aquele fora que, de tão agudo, porém doce, merecia ser chamado de “dentro”, nem era pra mim, mas fez-me cair a máscara e as asas de cera. E o rosto, por trás delas, não era vergonha:  era voo.

Spock anunciou a partida da Enterprise. A primeira noite de carnaval no Recife precisa terminar cedo pra o povo ter tempo de se preparar para o desfile do Galo da Madrugada. Mas, ainda houve tempo para Fafá de Belém puxar o hino de Pernambuco. O microfone estava desligado, mas era possível, ler, no telão,  “os altos coqueiros de beleza estendal” brotando dos lábios da paraense. Aquela cena meio que resumia o espírito do carnaval pernambucano: nasce de sete meses com a vocação (teimosia) de forjar a poesia do ficar mais um tiquinho, a poesia do não ir embora.

24 de fevereiro de 2013

O pássaro que posou no corassão de um álbum de fotografia





Corassão emoldurado
Um texto de Jose Luis Paredis 

Abri aquele álbum cheio de passado emoldurado
Escapou um sopro que, por não achar direção melhor
Seguiu rumo ao futuro

Deus padrasto, por que me fizeste amando
Alguém em todas as direções do tempo?
Por que não consigo parar essa oscilação
Que faz a presença do Anjo,
Ser um monossílabo indeciso entre ser dom e ser dor?
E, nessa hora, lembro que tanto o “m” quanto o “r” são signos do vento

Os sonhos não mentem: só iludem
Mas existem para que o Céu não desista de importar boas intenções do Inferno
Quando disseram que eu reconheceria o Nobre
No instante em que o visse pela primeira vez,
Os sonhos esconderam o pequeno detalhe
De que a primeira vez continuaria batendo onde antes
Um corassão, por mau hábito, costumava fingir não estar parado

Não está sendo fácil me acostumar com esse corassão batendo
É cruel, Pai, que ele bata e não possa sair do lugar.
E vencer a distância
Ele é como um pássaro que, nos limites da prisão do peito, tem passe livre para todo canto,
Mas é mudo, pois sua voz é refém da tentativa de mudar
Dentro do álbum, a foto de um lindo Alguém pousado no frágil galho da memória
Pediu-me para escrever meu corassão de outra maneira
Eu disse que não saberia se aguentaria carregar um corassão que
Além de bater passasse a se chamar coração
Porque, depois disso,
Eu perceberia que amo este Nobre
Independentemente dos pássaros, dos tempos, das gramáticas, das balas de canhão, dos voos, dos álbuns
E, dirão alguns silêncios: independentemente dos sonhos

Dylan - Mr. Tambourine Man

16 de fevereiro de 2013

O debate sobre a homofobia e o sono de mil anos da Bela Adormecida





Visitei dezenas de farmácias na Terra dos Contos de Fada e constatei que estava em falta o remédio que permite burlar o teste do bafômetro. Mais grave: estava em falta o remédio que proporciona o sono de mil anos. Pensei com meus remendos: Putz, vou dar uma passadinha no castelo da Bela Adormecida. Quem sabe não a encontro acordada pra gente bater um papo...

Foi tiro e queda, carinho e reerguimento! Ela estava lá acordada e tentando pela quingentésima vez concluir o curso de costura, on line, oferecido pelo Instituto Universal Brasileiro...

No meio da conversa, começamos a falar sobre o debate que estava mais na crista da onda que Garret McNamara: o debate sobre a homofobia.

Foi começar a falar que Bela deu uma leve engasgada com um princípio de bocejo

- Pégasus, essa discussão sobre homofobia dispensa o sonífero que estou acostumada a tomar e que teve sua produção suspensa porque os funcionários da fábrica chinesa, Propinol de las Rocas, entraram em greve.

Mas, como não presto, pedi a ela que, por favor, deixasse-me dar continuidade a nossa conversa.

- Tá bom, amigo. Só por amor mesmo pra gente se permitir ouvir outra pessoa e correr o risco de cair num sono de mil anos...

Eu dormi trinta e dois anos, disse Adormecida, acordei e o povo ainda está a falar sobre o Projeto de Lei que criminaliza a homofobia! Por mil dragões, as pessoas não veem que este tipo de projeto fere o princípio constitucional da igualdade, ao criar normas que beneficiam exclusivamente uma parcela da sociedade em detrimento do todo?

- A igualdade, juridicamente falando, não repousa sobre o ideal da igualdade entre iguais, mas sim da igualdade entre desiguais. O mito da igualdade plena é tão fascista quanto o da diversidade plena, por supuesto.  Constitucionalmente, o princípio da igualdade prevê que os desiguais não sejam tratados de forma desigual perante a Lei. O Projeto de Lei, Num Sei o que Lá, talvez busque se mirar nesta ideia.

- Mas, o Movimento Gay crucifica os heterossexuais, os católicos e os evangélicos, chamando-os de nazistas e não dá a chance de seus opositores se defenderem. Se esse Projeto de Lei for aprovado, ninguém poderá olhar de soslaio para um homossexual que será acusado de discriminação. Então, durante uma briga, se um gay me manda ir tomar no cu, serei obrigada, para evitar a cadeia, a dizer resignadamente: “Muito obrigado, a seu dispor”...

- Certamente talvez, o que está em jogo é o direito de uma pessoa, a despeito da orientação sexual, poder ser mandada ir tomar no cu ou ser chamada de viado, ou de corno, sem que estes palavrões sejam porta de entrada para atitudes que tenham em vista excluir o cidadão do convívio social.

Nas brigas, é comum ofendermos os outros, ferindo-os em pontos nevrálgicos de sua dignidade, a exemplo da sanidade, do amor e do trabalho. Mas, sob os insultos costuma pairar o princípio da incerteza.  Quando sou chamado de louco, implicitamente me é dado o direito de contradizer este insulto.

Porém, como é sabido por quem bem o sabe, alguns grupos sociais carregam o peso histórico da estigmatização e o que poderia soar como um insulto banal pode funcionar como um ímã que atrai o peso do estigma cultivado ao longo de séculos.

O Projeto de Lei,  número Num Sei Qual, talvez tente evitar que o insulto seja uma forma velada de negar ao homossexual o direito a usufruir de outros dois princípios básicos: o direito a personalidade (a existir sendo quem se é) e o direito de não ter sua personalidade tipificada como crime e de, em virtude da personalidade, ser tratado como alguém que, presumidamente, não teria direito ao contraditório.

O problema não é alguém mandar você ir tomar no cu, mas sim alguém, veladamente, utilizar o insulto para decretar que o outro não tem direito de existir. Afinal, o insultador de responsa sabe que ao insultar o outro é passível de cair na armadilha do próprio insulto, em igualdade de condições. Ou seja, quando mando alguém ir tomar no cu ou o chamo de corno devo saber que eu também sou passível de tomar no cu e de ser corno. Mas, para tomar no cu ou ser corno, pressupõe-se que tenho o direito a existir e que não se está tentando tomar-me este direito.

Lembro-me de uma história sobre o jornalista caruaruense Álvaro Lins. Ele se emputeceu quando o recifense Manoel Bandeira escreveu uma crítica sobre o discurso que Lins tinha feito quando assumiu a presidência da Academia de Letras. Ligou Álvaro para Manoel:

- Você é mesmo um filho da puta!, insultou Lins
- Eu não! Você é, pois é filho de sua mãe com um padre!

O que está em jogo não é o mérito do insulto de Lins ou do contra-insulto de Bandeira, mas sim que, nesse caso, o insulto pressupôs o direito ao contra-insulto e, ambos os escritores puderam seguir sem ter ameaçada a dignidade de existir.

- Mas, nenhum outro grupo tem esse tipo de Lei que o favoreça exclusivamente, replicou Bela Adormecida

-  Existem leis cujo objetivo é tratar os desiguais igualmente. Daí a legislação referente à acessibilidade, os estatutos do idoso, da criança e do adolescente, a legislação que pune a violência contra a mulher.

Estas leis específicas estão sujeitas a distorções como qualquer sistema legal. Mas, nas democracias, pressupõe-se que o ordenamento jurídico não é um Walking Dead, mas sim um organismo vivo que tenta enfrentar suas contradições e aperfeiçoar-se.

Sem as leis que protegem os desiguais de tratamento desigual, como poderiam ter sido enfrentadas realidades miseráveis como o Apartheid, o trabalho infantil, a exclusão da mulher de pontos sensíveis da cidadania como o direito a votar?

Mas, a vitória contra estas misérias nunca é completa, pois os Apartheids aparentemente derrotados buscam ressurgir infiltrando-se em qualquer brecha onde se alimentem do combate ao direito humano a personalidade e dignidade.

- E esta tentativa de negar o direito a alguém de existir e ter sua personalidade dignificada não pode ocorrer partindo dos gays para os heterossexuais, como se ser heterossexual estivesse se tornando uma vergonha ou algo indigno?

- É possível, assim como é possível aos ateus serem discriminados por representarem uma minoria em países como o Brasil, de forte tradição religiosa. Mas, não foi porque os sonhos de Martin Luther King e Nelson Mandela deram frutos que foi decretado toque de recolher para quem veste a máscara da pele branca.

O carnaval vai continuar existindo para os que usam a máscara das diferentes sexualidades: as máscaras e suas contradições, porque qualquer faceta humana (incluindo a sexualidade) que nega suas contradições corre o risco de ferir o direito dos outros à existência.

- Esse tipo de projeto pode acabar obrigando-nos a sair de casa e ver dois homens ou duas mulheres se beijando ou obrigando a Igreja a negar seus princípios e aceitar a pulso a homossexualidade. Se a Constituição prevê o direito a liberdade de expressão, tal liberdade deve valer para os homossexuais, mas também para os demais grupos e inclui o direito destes grupos de expressar que são contrários à homossexualidade.

- Nenhum direito é pleno e irrestrito, inclusive o direito à expressão que, constitucionalmente, não admite o anonimato.  Outra limitação ao direito de expressão é a de que ele não pode incitar ódio e violência. É preciso, contudo, ter em vista que, historicamente, a crítica a determinados grupos, a exemplo dos negros e dos homossexuais, está direta ou indiretamente relacionada à incitação da violência. 

Mas, o projeto de Lei contra a homofobia não poderá cercear o direito dos cidadãos, sejam ou não homossexuais, de manifestar o descontentamento com determinadas posturas consideradas excessivas.

Porém, veremos, a partir da entrada em vigor da Lei, onde o descontentamento se refere à postura ou à orientação sexual. Neste caso, veremos se haverá estabelecimentos que terão coragem de pendurar em suas paredes uma placa que diga: “Neste recinto é proibido a casais se beijarem”, independentemente da orientação sexual.

- O que acontece se eu continuar divergindo de você e se não chegarmos ao almejado consenso de ouro? Devo esperar ser excluída do Facebook?

- A amizade é um país cuja alma ultrapassa infinitamente as fronteiras do Facebook ou de qualquer outra rede, assim como nenhuma rede dá conta de capturar a beleza da piracema. 

Preconceitos continuam existindo, mas nenhum preconceito pode negar a necessidade e o valor da pororoca. Mas, ficarei feliz se quando você acordar não resolver me excluir do Face, pois agrada-me por demais te visitar e me enche de admiração e destemor teu senso crítico e tua nobreza, que não está à venda.

Depois que disse isso, Bela Adormecida lançou-me seu indescritível olhar e o sonho acordou-me, frustrando o despertador do celular.

A Bela Adormecida - Tchaikovsky

13 de fevereiro de 2013

Aos que vão defender o Mestrado



Fonte: Los Angeles Times

A glória não será garantia de que a angústia vai terminar
Ainda bem!
Porque a vitória feita só da glória sem angústia
É como o sorriso forçado de um soco na boca do estômago
A luz que suas teses trazem ao mundo
Não está no capital acumulado de citações ou adulações alheias baratas
A graça está na nova poética que vocês emprestam às filosofias
A obra de um pensador de responsa vem pra ajudar a emancipação humana a desabrochar na arquitetura das limitações
Hertz achou que as ondas de rádio que havia descoberto não teriam utilidade, mas o tempo provou o contrário
E, por menos louvor e reconhecimento que ele possa ter angariado,
Ele não desistiu da Física e nem a Física dele:  e assim se faz ciência, que não precisa começar com C maiúsculo, pois a dignidade é escrita com letras que não devem a nenhum alfabeto
O valor do pensamento de vocês ultrapassa o carimbo num passaporte para o doutorado
Ou um título que pede licença a um idioma estrangeiro para ser aplaudido
Se fosse assim, as ideias de Walter Benjamin, que teve sua tese rejeitada, pela Academia,
Não teriam sido capazes de reacender angústias e esperanças ao longo do tempo
O pensamento de quem escreve com amor vale, certamente mais que as láureas,
Pois, do contrário, o título se reduz a senha vip para a festa da patifaria
Kant construiu seu pensamento sem sair da Alemanha
Mas, é das coisas mais cosmopolitas que já foram escritas
Agora, algo é certo: não há cosmopolitismo sem risco e contradição
As bancas de defesa de mestrado não devem ser encaradas
Como testes de ressonância magnética pelos quais só passará com vida
A dissertação imaculada e banhada a ouro e epifanias
O texto da dissertação não foi feito para ser um cadáver santificado e incorruptível
Deixem o pensamento de vocês respirar na atmosfera das críticas que a banca trará
Permitam-se momentos de pausa, admitam quando o pensamento lhes fugir à mente
E não se envergonhem de pedir licença para retomar as ideias quando a hesitação
Estiver no seu encalço
Estarão diante de vocês doutores e pós-doutores,
Mas, não há Aquiles sem calcanhar
E a única conclusão de todo debate é que não há ideia imune ao contraditório
Não há como ir do Brasil às Índias passando por todos os caminhos
Por isso, deixe claro a quem quiser exigir de sua dissertação a onipresença redentora
Os limites de seu caminhar e a riqueza do horizonte que se abriu ao lidar com estes limites
Tremer, gaguejar,ser contradito: nada disso é desonra
Porque até mesmo as montanhas mais imponentes
São feitas de escarpas e abrigam em seu coração terremotos
O pior desastre não são ocasionais falhas tectônicas
Mas a calmaria tosca de quem traveste de retórica e pompa
O vazio cínico de um desfile de ideias convenientes e completamente convincentes
Deste tipo de láurea o inferno está cheio
O esforço de vocês é ainda mais lindo
Porque ferido por um futuro que não mente ao dizer
Que está chegando a bordo da incerteza
Mas que traz em suas cabines
Espaço para a bagagem das angústias,
Mas também para a das esperanças
Além do mais, galera,
Pra que esmorecer?
Vejam o exemplo do átomo,
A matéria-prima dele é o princípio da incerteza
Mas, mesmo sabendo disso e sabendo o tamanho de sua pequenez,
Ele não se esquece de que traz em si a vastidão infinita
E não desiste de ser substrato da orquestração do cosmos


12 de fevereiro de 2013

Quarta-feira de Fênix



Carnaval no Recife Antigo - By Karla Vidal

A grata quarta de Fênix
Texto de Jose Luis Paredis

Achei linda a foto que mi compadre postou nos ecos do mundo:
A foto de um sim que escolheu desfilar no carnaval vestido de beijo
Pensei comigo e sem migo também: 
"Inda bem que sim nenhum nos pertence, amigo. O sim é que toma posse de nós "
Inda bem que o beijo não nos pertence, pois se dele fôssemos donos,
Todo o carnaval se reduziria a quarta-feira de cinzas
O Sim que não me pertence
É como a folia do mundo, que me aceita em seus braços ateus,
Que, Deus sabe, não abrem mão do fogo santo do Espírito!
Sempre que o beijo do Nobre Alguém quiser ser em meu corpo
Um encontro de blocos de Olinda
Ou um encontro de saudades de Recife
Sempre estarei pronto para, quando este beijo soar o aval do Sim,
Decretar-se feriado em meus lábios
E fazer-se da tua respiração que estaciona na vaga da minha
Uma desculpa para se mudar o calendário e
Inaugurar-se a quarta-feira de fênix.







10 de fevereiro de 2013

A recompensa cruel e constrangedora de ler o texto do outro

Leitura - Antônio Hélio Cabral ( Brasil, 1948)
óleo sobre tela, 30 x 40 cm
O modo como lemos o texto de outra pessoa reflete – e como é sabido por quem bem o sabe não há reflexão que não traga em sua algibeira um bom punhado de espelhos distorcidos untados pelo caos – a miniatura do mundo e de suas esperanças que trazemos para brincar em nossos corações em substituição aos Legos e Comandos em Ação da vida.

Sim, interpretar um texto é brincar com os sentimentos dos outros!  O texto alheio torna-se, para quem o lê, uma extensão do seu céu particular, seja este céu o Céu, o banheiro, o closet, um disco de Céu, uma mensagem de voz do Cel ou um cartão postal de Seul.

Quem vai ler se depara com uma encruzilhada repartida entre a preguiça e o desafio e, mesmo optando por um dos caminhos, não tem como deixar de levar o outro ancorado em seu calcanhar de Heitor, visto que Aquiles não leem livros, pois são invulneráveis e não têm coragem de expor o calcanhar a tapa.

Durante o percurso da leitura, somos assaltados pelo dilema de Ulisses e como é grande a vontade de lá pelo meio do livro, isto é, no primeiro parágrafo, abandonar o projeto de retornar pra casa e ficar luxuriando com Circe e as sereias até que não sobre mais um ossinho que não tenha sido devorado pelas bestas-feras..

.E ainda me espicaça a coluna, diria o bem-aventurado leitor de boa-vontade, a irritante mania que tenho de prever o futuro. Repouso as mãos sobre o título de cristal e, por um portal de translucidez, vejo o futuro se erguer e jogar na minha cara que a continuidade daquela leitura é um esforço inútil.

Mas, como é sabido por quem bem o sabe, não há boa-vontade sem rebeldia e obstinação, e, assim, Ulisses, ou o leitor, viaja em rumo a sua jornada.

Na leitura do texto alheio, um dos momentos mais perigosos é quando o texto mostra sua face de ciclope e faz o leitor sentir-se um ninguém. Como suportar o fato de que amarei tanto uma leitura ao ponto de beirar a idolatria e me ver impelido a querer jogar tudo o que até então me eram caras verdades numa latrina qualquer, pero très chic visto ter sido importada de Flandres.

O leitor que se preza tem um vício miserávi de fazer do autor um ideal. E assim dá uma de Lois Lane e sai com o autor em direção ao oitavo céu para, do alto do maior edifício estelar que houver pelas bandas de lá, empurrar o Super-Homem para uma queda mortal, não pela queda em si, mas pela decepção de ter sido defenestrado após ter sido tão incondicionalmente amado.

É que o amor é incondicional até que o clímax do livro prove o contrário... Mas poderia ter sido pior, pois triste do texto que cai nas mãos de um leitor que sentiu seu amor não correspondido. Nestes casos, o autor, que já sofre por ser um fantasma a penar nas páginas bem-assombradas dos livros, será vítima da pior tortura que o leitor lhe pode infringir: a de ser, em virtude do que escreveu, confundido consigo mesmo sem pausa para o cafezinho, a despeito de ter se tornado um imortal da Academia Pernambucana de Letras. Isto porque, como é sabido por quem bem o sabe, tudo em Pernambuco é a maior coisa do mundo das Américas, incluindo o cafezinho e os amores não correspondidos: as lindas luas pernambucanas não me deixam mentir.

Ler é um exercício com dois pesos: o da crueldade e o da condescendência. E a arrogância maior, porém indispensável, do leitor é achar que terá, após o “término” do livro, força igual nos dois braços para carregar o mundo ou os mundos. Sinto te decepcionar, Raimundo, mas por mais sonho e esperança que o ler nos traga, nenhum livro apagará a parcela de imundo que há em nós. O máximo que fará é torná-la em bom adubo para as rosas falantes que, cada leitura, faz a presepada de plantar em nós.

Cada leitura, mesmo que seja a infinda leitura do mesmo, que não cansa de se reescrever no não-dito, no interdito e na desdita, é uma chance de reduzir o texto a uma transparência diáfana que permite olhar o outro como uma vida que, mesmo anencéfala, traz o penhor de uma melodia que faria o humilde Beethoven esperar ansioso pela enésima sinfonia, ainda que não tenha sido escrita por ele.

Ler é se dar conta de que algum de todos os nossos sentidos é defeituoso e, mesmo com estes falhos sentidos, não desistir de ouvir a sinfonia do texto como se fôramos Sherlock Holmes: com desconfiança, mas com respeito e aberto a uma segunda opinião: pois o que seria de Holmes sem o caro Watson?


Leitura - música composta por Mazinho, Gunane e Barney
Intérprete- Maria da Graça

4 de fevereiro de 2013

Coca-Cola devolve à loucura a razão, o chão e a cidadania




Cena da campanha da Coca-Cola

Lembra Foucault, em sua História da Loucura, que, no período renascentista, a loucura é considerada força viva e secreta da razão. De algum modo, este ideário, seja ou não por força do apelo vintage, é retomado pela publicidade contemporânea, como atesta a nova campanha da Coca-Cola: Let’s go crazy!

Nesta peça publicitária, a loucura é vista como associada a sentimentos que estão se tornando raros, a exemplo da gentileza. E também como o desafio de dar contornos estéticos ao ridículo, em vez de mantê-lo isolado numa espécie de terra de ninguém. Fico imaginando se esta publicidade não bebeu nas "Cartas de Amor Ridículas" de Fernando Pessoa...

Certamente talvez, a propaganda tenha um apelo de classe média, visto que, nem todos têm a oportunidade ou o espaço para se darem ao luxo de agir ridiculamente e, ainda assim, manter a vibe de garoto propaganda da Calvin Klein ou de modelo dos cosméticos da Mac.

Contudo, o mais tocante da proposta é libertar a loucura de uma geografia que lhe tem sido imposta desde o século XVIII: a do ostracismo. No comercial da Coca, a loucura pode voltar a flanar pelas ruas com roupas leves e coloridas e vestindo a nudez de ideais nobres como a compreensão e a prestatividade. Estes  deixam de ser a aspiração pela perfeição e passam a ser a inspiração de um cotidiano onde o banal adquire raízes fortes (mesmo que sejam raízes aéreas).

A ideia, tipo século XIX, de que o louco deve estar atrás das grades ou à deriva num entrelugar (tipo uma ilha deserta perdida no meio do oceano) é desafiada. É uma dinamite em cima das metáforas que, corriqueiramente, estabelecem uma relação inelutável entre loucura,doença e animalidade. Mais uma vez mencionando Foucault, sabe-se que esta relação é uma produção histórica datada. 

Os hospitais que, no período medieval, trancafiavam leprosos (e assumiam o controle de seus bens), não podiam, com o avanço da medicina, perder sua “utilidade”. Começaram a ser reaproveitados para “abrigar” outras pessoas “sem cura e sem perspectiva”. Primeiramente, as vítimas de doenças venéreas, depois outros tipos de "doentes". 

Com o passar do tempo, foi sendo montada a figura pejorativa do “louco”, a partir da mistura de referências a comportamentos que, supostamente, estariam associados a doenças ou maldições. Pra se ter ideia, só depois de 1900 é que a palavra insanidade (ausência de saúde) começa a ser utilizada como sinônimo de loucura.

Mas, nem sempre foi assim: isto porque, até o século XVIII, a loucura, bem como o erro, a dúvida e a arte, eram vistos como algo capaz de ajudar a razão a se exercitar. Como se a loucura fosse a academia de ginástica da razão.

A partir do Oitocento é que a loucura começa a ser posta de fora do diálogo com a razão e, em decorrência, o louco é excluído do direito à pátria e à vida política. Com a difusão da literatura, o discurso da loucura tem sua respiração represada nas páginas dos livros, onde é pasteurizado pelos controles da erudição livresca. O louco torna-se, nas palavras de SabrinaCamargo, alguém sem chão, sem razão e sem cidadania. A utopia da Coca-Cola, na mentira e na verdade que a constituem, é a de devolver à loucura o chão e a cidadania.

A seguir, o comercial da Coca-Cola e outro do Honda CR-V em que o ator Matthew Broderick revive o personagem de Curtindo a Vida Adoidado (Ferris Bueller's Day Off), outro esforço de reconfigurar a geografia da loucura.



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