Hoje, o Acedia cria mais uma seção, chamada "Releituras da cultura de massa". Comumente, a cultura de massa relê expressões da filosofia, da literatura e de outras áreas. O objetivo, neste espaço-tempo, é fazer releituras da cultura de massa, fugindo da tendência da mídia de sugar até a última gota a mesmice de um determinado produto da cultura de massa e abanar a mordida com os aplausos de casas de show lotadas de vazio.
A primeira vítima desta seção é a canção Leilão, composta por Cristian Lima e Ivo Lima, e que se tornou popular ao ser interpretada pela banda Gatinha Manhosa e, mais tarde, por César Menotti e Fabiano. A seguir, três releituras da música Leilão. A primeira é feita pelo escritor Anônimo Eufrausino.
O Janelas Azuis
Quando liguei o computador,
O Janelas apareceu azul
E disse: “Bem vindo”, tocando ao fundo quatro notas musicais
Inspiradas em contatos imediatos do terceiro grau e de
quinta categoria
Respondi silenciosamente: “Obrigado!”
E percebi que a coisa estava ficando séria
Não por eu ter respondido
Mas por eu ter respondido em silêncio
Não por eu ter falado com a tela do computador
Mas por eu ter falado com janelas azuis
Meu Deus, será que estou ficando são?
Veio-me o medo de ser externado
E não ter como fugir, pois como fugir de fora para dentro?
Como estava ficando são, minhas camisas de força, mesmo
caindo em mim como uma lua
Recusavam-se a me vestir
E eu, mesmo tendo comido das raízes aéreas do Paraíso
Pelo qual os anjos esperam de pé,
Sentia saudade das descamisas com as quais a insanidade me
nudificava
Passei diante de um banco e, por pouco, não me benzi
Respirei aliviado, ao perceber que estava à beira da sanidade
Mas que não havia mergulhado em sua rasura
Leilão
Ficou difícil daquele coração ser arrematado
Porque, a cada lance, ele revelava um de seus abismos
Quanto mais graças as pessoas davam
Mas alto se tornava o preço de tomar posse
Daquele coração com seus anjos e suas baratas
O verbo Ter e seus derivados
Perguntaram-me se eu tinha certeza de que amava
- Tenho certeza, mantenho a dúvida, contenho a arrogância,
retenho o vento, obtenho o impagável, atenho-me à nossa insignificância,
entretenho a plateia vazia, carrego o meu caráter com setas cúpidas para te
acertar e te desferir
Me perdoe, Jesus
Porque te chamo pelo nome
Porque mais do que não andar tendo vontade de escrever pra ti
Não estou tendo vontade de escrever
Embora ande tendo vontade de escrever inutilmente para Alguém
E se até para o sol este Nobre faz careta*
O que deveria restar para mim, que não a indiferença
Só indiferido não tenho conseguido cicatrizar
Perdão por esta baixa de anticoagulante no meu espírito
Perdão por tanto pedir perdão
Por minha culpa, quis ser absolvido
Minha tão grande culpa
Querer orar por quem amo
E ser considerado um controlador remoto
Peço aos anjos que não me culpem por ter chamado Alguém de anjo
Por ter batido à porta inutilmente
E continuar crendo que ela vai se abrir
É triste plantar o alicerce de um horizonte
Que suspira e lamenta a hipótese de a fé ser ínútil
Tomara que amanhã eu acredite um pouco mais
Que é da natureza da maioria das hipóteses serem infundadas
Perdoem-me, meus amigos, porque rezo por vocês
Mas tenho feito de uma parte da sua imagem e semelhança
Desculpa para pensar e rezar por Alguém
E o pior é que nem posso dizer
Que queria que a palavra "inutilmente" tivesse em meu coração
A clareza que tem no coração do Nobre: porque seria mentira
E eu teria mais uma falta a ser perdoada,
Isto é, mais um galho a ser podado
Perdão, Jesus, por dividir o teu Eu te amo com outras pessoas
E, nesta poesia, entregá-lo por inteiro a Alguém
Mas, não faz mal,
Porque todo amor flui de uma nascente despedaçada
Que não se arrepende de ser chamada de corassão.
*Mas o sol te perdoa porque és Alguém lindo como ele. A luta
Os (as) homens e as (os) mulheres
Reclamam por lutarem pela justiça
E a justiça não vir
Mas a justiça já chegou
Antes mesmo do selo real chegar ao decreto
A justiça é a luta pela justiça
E a felicidade?
Ser feliz é poder lutar pela luta pela justiça
E o amor é lutar pela luta depois que se perde a luta
Minha Família - desenho feito por Santos Dumont em 8/1/1929
Santos Dumont fez um desenho no qual dizia que sua família eram um dirigível, um biplano e um monoplano. Mas, se seus inventos eram sua família, seus amigos eram a humanidade inteira. O primeiro tripulante de sua maior invenção
foi seu sonho. E o segundo tripulante ele queria que fosse a vitória contra as
distâncias e as saudades. Mas, a guerra furou a fila e tomou o lugar do sonho
de Dumont.
Inconformado, ele, certa ocasião, ofereceu dez mil francos para a pessoa
que escrevesse a melhor obra contra a utilização de aviões na guerra. Mas, a despeito da guerra, das depressões, da esclerose múltipla e outros múltiplos de tristeza, Dumont não abriu mão de se dividir entre os sonhos e os amigos, e, ainda assim, restar inteiro para ambos. A seguir, a reprodução de uma carta de Dumont a um de seus grandes amigos, Antonio Prado, mencionando a decepção pelo fato de o avião ter se tornado arma de guerra:
Espero que a minha carta postal tenha alcançado você em
Lisboa e que tenham feito bôa viagem.
Venho te pedir um grande favor: como já deves saber um
senhor senador propoz sem me consultar, a minha nomeação de General! Não só
isto é uma coisa ridícula, mas também parece até sarcástica pois eu em
Fevereiro propuz a abolição da aviação como arma de guerra.
Venho pois te pedir como sei que és muito amigo do nosso
futuro Presidente, para pedir a elle que mande parar tudo isto e mais
homenagens, pois eu como você sabe ando já ha 2 annos doente dos nervos e só
peço a Deus uma coisa é que me deixem em paz. Já aqui estou há __ mezes e não
tenho coragem de sahir (Berne, Divonne e Val-Mont). Desde já te agradeço e
também ao Dr. Washington Luis. Eu não sei quando irei até ahi.
Muitas recomendações à Dª Eglantina.
Saúdades do amigo
Santos Dumont
Monumento em homenagem a Dumont (Saint-Cloud, França)
Yolanda Penteado não entendeu direito o sentido da amizade
de Dumont por ela. E, por isso, o considerou um excêntrico. Ela nem percebeu
que, não é todo dia, que aparece um amigo que, para ficar um pouco mais a nosso
lado, usa a lua como desculpa. “Vinha todos os dias para jantar e ia ficando,
dizendo que era para ver a lua sair”, declara Yolanda a respeito de Alberto.
Santos Dumont inventou máquinas, mas era a
companhia de Yolanda a fonte de energia que ele precisava para fazer a si mesmo
decolar: “As pessoas que o conheciam melhor diziam que, quando ele me via,
ficava elétrico”, afirma Penteado em sua autobiografia.
A França ergueu um monumento em Saint-Cloud para homenagear
Dumont: uma imponente estátua de Ícaro. Dumont convidou o mesmo Ícaro para ser
o guardião do mausoléu de sua família, o que mostra que, para ele, certamente
talvez maior que a morte ou a vida fosse Ícaro: metonímia do sonho.
Na inauguração do monumento de Saint-Cloud, o desenhista Georges Goursat escreveu para a
revista L’Illustration, homenageando seu amigo Dumont, como se pode ler na reprodução a seguir:
Santos Dumont: primeiro a voar com um dirigível.
Esse soberbo gênio de formas atléticas, de grave perfil,
que mantém abertas nas amarras dos braços as suas asas, rudemente empunhadas
como dois escudos, simboliza nobremente a grande obra de Santos Dumont: ele
evocaria de uma maneira bem inexata o pequeno grande homem simples, ágil e
risonho, que ele é em realidade. Vestido com um casaco e com uma calça muito
curta sempre arregaçada, coberto com chapéu mole cujos bordos estão em
contrapartida sempre rebatidos, ele nada tem de monumental.
O que o distingue é
o gosto pela simplificação, das formas geométricas, e tudo no seu aspecto
denota este caráter. Tem paixão pelos instrumentos de precisão. Sobre a sua
mesa de trabalho estão instaladas pequenas máquinas de precisão, verdadeiras
jóias da mecânica, que não lhe servem para nada e estão lá somente para o
prazer de tê-las como bibelôs. Ali se vê, ao lado de um barômetro e de um
microscópio do último modelo, um cronômetro de marinha, na sua caixa de mogno.
Santos Dumont: caricatura de Georges Goursat,
popularmente conhecido como SEM.
Até mesmo no terraço de sua vila ergue-se um esplêndido telescópio, com o qual
ele se dá à fantasia de inspecionar o céu. Tem horror a toda complicação, a
toda a cerimônia, a todo fausto. Assim, que rude e deliciosa provação para a
sua modéstia, esta inauguração! Há treze anos eu o conheço; foi a primeira vez
que o vi de cartola e sobrecasaca. E, mesmo para essa única circunstância –
suprema concessão aos costumes –, suas calças corretamente esticadas cobriam as
espantadas botinas. Ao pé de seu próprio monumento, vestido de herói oficial,
enternecido de constrangimento e falta de jeito, ele me pareceu como uma
espécie de mártir da glória.
Sueli Costa não se faz de rogada. Estabelece parcerias com grandes poetas, a exemplo de Ferreira Gullar e Cecília Meireles, mas também
com vozes do cancioneiro popular, como as de Fagner, Fafá de Belém, Joanna e
Elis Regina.
Ela transita numa arriscada fronteira. Utiliza em suas
composições imagens que, sozinhas, soam como figuras de linguagem cansadas de
guerra. Porém, Sueli cria parentescos inusitados entre estas imagens, conspirando
para que nasçam asas de águia nas metáforas mais castigadas.
Só como exemplo, cito um interessante verso da música Vuelve
mi luz, na qual ela pede que a luz a cegue e a faça sonhar boca ardente de um
retrato. Pode-se interpretar essa “boca
ardente” como uma metonímia fuleira: a velha imagem dos lábios ardentes, que
representam a paixão. Mas, é possível também pensar o retrato, metaforicamente,
como uma “pessoa” a espera do beijo de quem o olha ou como um abismo-inferno a
espera de um louco que se queira jogar nele. Eis alguns versos da referida canção-poema:
Vuelve mi luz
morde a serpente deste medo
põe o fogo louco do verão
em cada canto deste quarto
ilumina, ilumina
aquela alma feminina
a boca ardente de um retrato
onde mais sente esta paixão
Vuelve mi luz
me faz cegar, me faz sonhar
a boca ardente de um retrato
onde mais sente esta paixão
Talvez seja essa oscilação, entre o sentido mais abatido e o sentido que retoma o fôlego, que torne a poesia de Sueli Costa
uma construção que faz do brega uma deixa para que a linguagem poética se
auto-critique, desafiando aqueles que enchem a boca para arrotar, de prima, que um texto é óbvio.
Sueli Costa é autora de grandes sucessos como Jura Secreta e
Coração Ateu, interpretada por Maria Bethânia.
Coração Ateu
O meu coração ateu quase acreditou
Na tua mão que não passou de um leve adeus
Breve pássaro pousado em minha mão
Bateu asas e voou
Meu coração por certo tempo passeou
Na madrugada procurando um jardim
Flor amarela, flor de uma longa espera
Logo meu coração ateu
Se falo em mim e não em ti
É que nesse momento já me despedi
Meu coração ateu não chora e não lembra
Parte e vai-se embora
Se falo em mim e não em ti
É que nesse momento já me despedi
Meu coração ateu não chora e não lembra
Parte e vai-se embora.
Dorme, meu menino dorme (parceria com Cecília Meireles)
Toda vez que vou falar sobre algum filme de Woody Allen,
lembro que só assisti a aproximadamente* cinco filmes dele. Ou seja, segundo os
padrões do INMETRO, eu não deveria nem ousar tecer algum comentário sobre esse
cineasta que as pessoas elevam ao status de gênio porque as pedras atiradas no
topo proporcionam um “efeito estético” tipo assim mais “manero”.
Antes de começar a escrever lembrei também de um desabafo do
escritor Paulo Roberto Pires, o qual ainda não li, mas que me permiti coletar
no Facebook de uma amiga (alguém tem de fazer o "trabalho sujo")**.
Dirá Pires em bom português: “Por isso, nunca mais a
escrita de resumos cretinos de livros cretinos, cretinos ainda que importantes.
Nunca mais as leituras de quiméricas propostas de livros que não existem, nunca
mais as histórias medíocres que misturam partes de outras histórias medíocres
em busca do sucesso medíocre. Nunca mais, para resumir, a caftinagem consentida
do mundinho literário.”.
Resumo da ópera: não tenho “propriedade” para falar sobre Woody
Allen, mas falarei assim mesmo. Assumirei o risco de causar um infarto em
Pires, quando ele me ler...
Ah, esse risco não existe... Se eu ainda não vi todos os
filmes de Woody Allen, que é unanimemente considerado um gênio, que pretensão a
minha de querer ser lido por Paulo Roberto Pires: o entediado...
Lembrei agora de outro amigo que afirmou , durante um jantar entre amigos, que boa parte da crítica é feita
com base em livros não vistos e filmes não lidos. Não sei se seria tão radical ao afirmar isso.
Principalmente, levando-se em consideração o conceito de leitura vigente, que
se baseia na ideia da leitura como a ilusória capacidade de captar e estender o
resumo do absoluto gravado nas retinas de Deus.
Minha crítica é suspeita porque achei muito bom o filme (mas
confesso que, depois que a película se consumou, apalpei-me para averiguar se
tudo estava em ordem. Afinal, não é todo dia que se escapa são e salvo da
experiência traumática de ser submetido à performance dramática de um indivíduo
da família Baldwin).
Contudo, o filme é menos melhor que Meia-noite em Paris. Minha análise é suspeita porque, além de ser uma análise, não conheço a obra do cineasta e, portanto, corro o risco de comer ktsch
de miragem como se estivesse a beber a última Pepsi Twist do deserto. Mas, é
assim mesmo: algo sempre será mais inédito do que outro algo mais repetido...
Chamou-me bastante atenção a atriz Ellen Page, que já foi
indicada ao Oscar e ao Globo de ouro, mas que a mim traz como lembrança primeira
sua atuação como Lince Negra, no filme dos X-men
(mas ela não tem culpa das minhas memórias...).
A personagem de Page é uma típica militante do Movimento Eu Sou
Cultural (MESC). De tudo ela conhece... algumas frases. E consegue convencer
até mesmo um Nietzsche de que o mito de Sísifo é um texto capaz de revolucionar
o sistema solar.
A personagem é atriz de fato, mas filósofa de direito. E,
como boa “advogada”, sabe, com base na citação do menor inciso, dar a impressão
de conhecer todo o ordenamento jurídico, deixando os que a ouvem tão
boquiabertos que se chega a enxergar até mesmo o siso já extraído. Daí para
despertar a paixão de um homem e dragá-lo para a cama é um pulo.
A personagem faz juz ao mito de Sísifo. Seduz (de
preferência o namorado de alguma amiga porque o capim do vizinho é mais gostoso),
faz o carinha sacrificar tudo e, quando ele chega ao topo do sacrifício,
puxa-lhe o tapete e não lhe dá nem o gosto de ficar para assistir à pedra
esmagando o besta.
Woody Allen trabalha fórmulas já esgotadas? Sim... Mas, o
talento do cineasta, na minha imprópria opinião, é preparar um leito de enfado e
tédio onde o clichê se deita para fazer amor com a audiência. Mas, na hora H,
quando levantamos o véu para beijar o clichê, somos surpreendidos (inquietados?) seja pelo
riso, pela ternura ou pelo desconforto.
Até o gesto mais comum de cantar no banheiro se torna, no
delírio de Allen, algo surpreendente. E o diretor dá continuidade à estratégia (adotada em Meia-noite - de fusão entre passado e presente – sem nos dar o direito de optar
decisivamente onde começa o antes e termina o depois. Esta estratégia aparece
escorada numa exploração da encruzilhada entre o que é o personagem, o que são
suas memórias e o que é a voz de sua consciência, colocando-nos em dúvida sobre
o que é de carne e osso.
O cineasta afirmou que Para
Roma, com amor é um dos piores filmes feito por ele. Este e os demais
feitos por encomenda para prestar um tipo de homenagem a cidades-luz espalhadas
pelo mundo, a exemplo de Paris e do Rio de Janeiro, cidade que será a próxima
vítima do talento de Allen.
Ah, com relação ao filme... Longe de qualquer ironia, se Para Roma, com
amor é um dos piores filmes de Woody Allen, tenho medo dos melhores, que
fatalmente me obrigarão a utilizar algum superlativo, coisa que não gosto.
Os superlativos são associados a algum tipo de
êxtase, mas pra mim são entediantes. Ótimo, maravilhoso, péssimo: essas
palavras aguçam meu desconfiômetro, embora eu saiba que muitas sinceridades de
ouro 25 quilates brotam de superlativos.
O problema dos superlativos é que eles me soam como um tipo
de ante-sala do abandono. Lembro de Cristo entrando em Jerusalém ao som de “Hosana
nas Alturas!”. As pessoas se rasgaram em superlativos e depois o abandonaram ao
som do não menos superlativo “Crucifiquem-no!”. Sim, talvez com certeza as pessoas te recobrem de superlativos para, em seguida, abandonarem-te nu na medina.
Se um de nós dois morrer, Paulo Roberto Pires ou Woody
Allen ou eu (Deus nos livre e guarde!), espero que os críticos e os senadores nos
concedam ao menos a indulgência plenária...
Lucille Ball - protagonista do seriado I love Lucy
Fonte da imagem: FanPop
À amiga Elizabeth Moura, que é ruiva e me apresentou
o
desenho de Charlie Brown em que aparece a misteriosa “garotinha ruiva”.
A Lucille Ball
*Vide bula ao fim da postagem
A ruividão é uma cor espiã.
Por vezes é um agente infiltrado no castanho-escuro: um veio
de Bourbon à flor da pele do estiloso mogno.
Nesse caso, não há como calar na ruivice o
códice secreto de um brinde entre a elegância e o risco.
Ou então a ruivice é o último suspiro, da loiritude do dia, escondido
no crepúsculo.
Dizem as boas línguas que as ruivas trazem nos cabelos o
prenúncio do sangue que trarão nas mãos após cometerem o crime. E não vai importar muito que tipo de crime
seja porque a sedução ruiva só em montar o cenário já tira a vida de sua vítima antes de
ser puxado o gatilho.
As sereias ruivas atraem os navegantes para a morte antes
mesmo de abrirem a boca para cantar. E no caso de Ariel - a Pequena Sereia - mesmo muda não perdeu o encanto.
A loirice é a
palavra solar e falante; a morenice é a palavra lunar e silente; a ruivice é a
palavra em suspense.
Anaxágoras ou era Anaxímenes... Um dos filósofos
pré-socráticos cujos nomes são um sistema filosófico à parte... Um deles
resolveu testar a hipótese de que a matéria era composta prioritariamente por
átomos de fogo. Resolveu testar a hipótese em si mesmo, aproximando-se da boca
de um vulcão.
Porém, uma versão apócrifa conta que o objetivo do filósofo
não era investigar sobre átomos. Ele estava decidido a provar que Afrodite
antes de ser deusa do amor era deusa das chamas que ardem no interior da terra,
do fogo que arde onde o sol não é capaz de chegar. A lava seriam os cabelos de
Afrodite.
Como bem observou o pintor Sandro Botticcelli, a loirice é uma
certeza, a morenice uma incógnita e a ruivice é uma contradição. Por esta razão
Afrodite, a deusa ruiva, nasce das águas do mar com os cabelos em chamas
ardentes e rubras.
Este sinal de contradição acompanha as ruivas, como atesta a
história.
Elizabeth, rainha da Inglaterra e filha de Henrique VIII (e
de fato, ela nasce antes como rainha e só depois como filha), fez bater no
coração da contradição três outros corações: o da Virgem, o da guerreira e o da amante.
E, assim, fez de suas mechas ruivas ponteiros de um relógio em angústia e
descompasso.
Jean Grey, também conhecida, nas histórias dos X-men, como
Fênix, é outra das encarnações da contradição ruiva. A força-Fênix, uma das
energias primordiais que participam da composição do universo, une-se à alma de
Jean Grey para experimentar o sabor dos limites e das paixões que a condição
humana tem a oferecer. No labirinto da condição humana, a Fênix não conseguiu
optar entre o encanto da inocência e a opulência da paixão despudorada e acabou
enlouquecendo... E a loucura, nessa narrativa, teve como moldura o caudaloso e
ruivo cabelo de Jean Grey.
No Brasil, foi interessante o caso ocorrido na novela O Sexo
dos Anjos, de Ivani Ribeiro. Um dos lances mais atraentes da história foi o
dilema vivenciado pela Morte, personagem interpretada pela atriz Bia Seidel. A
personagem apaixonou-se por um homem do qual deveria tirar a vida, situação que
fez sua habitual frieza e indiferença serem abaladas pela contradição cuja
ruivice de Bia Seidel tornou irresistivelmente sedutora.
Lucille Ball, uma das maiores comediantes que já existiu,
era ruiva e foi capaz de com igual talento interpretar papeis dramáticos e de
vilania.
Em Lucille Ball, destaca-se uma característica peculiar à
ruivice. Ela não pertence ao campo da dedução, mas sim ao da indução. Algumas das mais sedutoras ruivas brilharam
no cinema em preto e branco. Neste tipo de filme, é possível deduzir tanto o loiro quanto o moreno. Já o ruivo, mesmo estando visível na tela, permanece
um enigma a, por indução, ser nutrido pela imaginação da audiência.
E, assim, Rita Hayworth, antes do cinema em cores, desmentiu
o preto e branco com sua ruivice. Algo que também foi feito por Greta Garbo, uma
ruiva que fez até mesmo Theodor Adorno - o maior inimigo da Indústria Cultural –
abrir uma exceção e declarar-se fã da atriz.
Com a personagem Dorothy, vivida por Judy Garland em O
Mágico de Oz, a ruivice deu mais uma vez mostras de sua identidade contraditória,
oscilando entre o mistério do preto e branco e a explicitude do “em cores”.
Lídia Brondi - Ruividão infiltrada no castanho-escuro
Fonte da imagem: Capa da trilha sonora da novela Vale Tudo (1988)
No universo do terror, a contradição ruiva foi levada ao
ápice, pela vampira Lucy, da obra Drácula – de Bran Stoker. Esta personagem
une, paradoxalmente, morte e vida, inocência e volúpia... E se apaixona por
alguém que não é capaz de ver, mas cujo chamado é irresistível. Não deixa de
ser outra forma de conferir feminilidade e sedução à Morte, direcionando-se para
as mechas ruivas o sangue que deixou de correr nas veias da personagem. Nas madeixas de Lucy, a ruivice é, pois, deixa para uma ironia capilar.
Sadie Frost como Lucy em Drácula, de Bran Stoker
Fonte da imagem: Coolspotter.com
Para terminar o que um dia teve início, não pode ficar de fora
dessa saga uma das personagens ruivas mais misteriosas e que mais mexeu com a
imaginação de homens e mulheres no mundo inteiro: a garotinha ruiva do desenho
de Charlie Brown, também conhecido como Peanuts.
A garotinha ruiva não tem nome
e durante boa parte da trama permanece uma figura enigmática.
Quando aparece não deixa completamente para trás sua capa de
mistério, visto sua aparição se dar no sonho de Charlie Brown. E, como se sabe, o sonho é um mundo embriagado, ao mesmo tempo, pelas interdições da timidez e pelas
extravagâncias da paixão. E esta embriaguez contraditória do personagem Charlie
Brown não escapou de ser emoldurada pela ruivice.
* Qualquer semelhança com acontecimentos reais é mera coincidência, pois o Alguém que admiro tem os cabelos-asas cor de noite de lua nova
Conheça, neste vídeo, a "garotinha ruiva", de Charlie Brown
Tenho me dado conta de que uma das formas de teorizar sobre
a Literatura é tentar dar respostas proveitosas a questionamentos dez, conexos,
tipo as perguntas a seguir:
1. “O que Sophia Andresen tem a dizer de novo sobre o mar
que já não tenha sido dito por um Pessoa? ”
Resposta - Realmente, não há mais poesia no mar, depois de
Pessoa. Ele foi tão fundo, poeticamente falando, que fez o mar escorrer ralo
abaixo.
Também não há mais sentimento, depois de Pessoa, pois, com
ele, todas as lágrimas tornaram-se portuguesas naturalizadas com o único
objetivo de salgar o mar. Ou seja, seria até possível dizer que Sophia Andresen
foi uma poetisa razoável se ela houvesse escrito sobre as águas doces.
2. “O que ainda pretendes a estudar Fernando Pessoa quando todo
o possível a respeito dele já foi estudado e dito? “
Resposta - É verdade.
A obra de Pessoa já não tem mais nada a dizer. O Bureau International de Poids et Mesures pretende, inclusive, realocar
a obra de Pessoa da seção Literatura para as seções Oceanografia e Pré-história.
Aliás, o mundo não tem mais nada a dizer, pois Sócrates
disse tudo, os pré-socráticos disseram tudo antes de Sócrates, Platão e
Aristóteles disseram tudo depois de Sócrates (e olha que só 90% do tudo que
Aristóteles disse ainda estão perdidos) e, para arrematar, Kant e Hegel disseram
tudo: em Alemão! Isto é, tudaram o tudo de uma vez por todas.
3. “Como se pode compreender a poesia de amor de Pessoa, se
não se tem a alma portuguesa e não se conhece o verde das águas de Portugal?”
Resposta – Simplesmente seria uma tarefa impossível. Daí, a
tentativa inútil dos daltônicos de ler a poesia de Pessoa. Eles e os
brasileiros ainda insistem em dar sentido ao mar da poesia, imaginando como tal
mar seria, sem ter, sequer, feito uma transfusão de mar.
4. “Qual a diferença entre auto-ficção, auto-biografia e
biografia?”
Resposta - As três vivem fingindo que não se conhecem, mas
sempre há alguém disposto a ganhar dinheiro para escrevê-las, alguém disposto a
pagar para figurar nelas ou alguém que as esconde ou pede para que sejam
destruídas, para que elas possam ser achadas anos mais tarde – já com valor
agregado - e ganhem a Palma de Ouro em Cannes.
Pessoa fingia até que
era dor a dor que deveras sentia. Como tinha múltiplas personalidades, era
biógrafo de sua própria auto-ficção. Como já foi dito, ninguém escreve
biografias de graça. Com Pessoa, não foi diferente: ele foi mecenas de si
mesmo. Isto quer dizer que, ironicamente, ele foi o único biógrafo da história a
trabalhar feito relógio.
5. “Para que estudar Literatura se se poderia estar a
estudar algo útil, tipo Química Industrial?”
Resposta – Para criar algum composto sintético capaz de
preencher o vazio do mar que Pessoa secou?
Hoje, viajando de Caruaru a Recife, a Lua se encheu de vez,
a ponto e vírgula de perder o controle da direção e quase se chocar no meu
carro. Tentei consertar as coisas,
subornando-a com alguma poesia, mas quando procurei num dos bolsos só achei milhões
em mediocridade real. No outro bolso, inda bem que achei alguns tostões de
breguice mal citada, o suficiente para falar sobre a Lua brega.
Fico devendo para outra lua cheia escrever sobre a lua
erudita, pois praticamente toda minha erudição vem de empréstimos e doações e
será preciso angariar fundos para falar eruditamente sobre a Lua. Aliás, uma
forma de, quem sabe, definir a erudição é como um empréstimo cujos juros são a
dívida eterna. A erudição é, citando a escritora Patrícia Tenório, uma lua que
amanhece em nós o que em nós não há.
A Lua Brega é como um ímã que sai arrastando, no fio de
algum clichê, fórmulas de amor, saudade, dor e talvez et ceteras. No brega, cabe sempre a ilusão de que podemos
tornar a palavra grande o suficiente para exprimir o inexprimível. Mas, como
sabem aqueles a quem interessa saber, quando o fio do clichê é descascado,
alguma surpresa galvanizada termina desmoralizando a mais brutal mesmice.
Há ainda as luas indecisas – que não se sabe bem ao certo se
são Bregas ou eruditas – como a Lua de Fábio Jr, que faz o erro de Português
soar poético: “Lua cheia, meia, displicente” ( ou, num Português mais bem
dizido, meia displicente).
E também existe(e não existe) a lua Mítica, que não está nem aí para a erudição ou para a breguice, a exemplo da lua da lenda indígena da Vitória- Régia, falando sobre a jovem Naiá, que se apaixonou pelo guerreiro Jaci (Lua) e quis abraçá-lo, mergulhando em seu reflexo na profundeza invencível de um rio.
Com saudade e, para mantê-la junto a si, o deus-guerreiro a transformou numa vitória-régia, planta que acolhe mórbida e poeticamente a Lua em seus "braços".
De qualquer maneira, seja brega ou erudita, a Lua é uma das
maiores misericórdias, pois ignora o incidente em Babel e traduz o amor, a
saudade, a dor, bem como os et ceteras, em todas as línguas, incluindo as
extintas e as que ainda hão de nascer. Há, portanto, quatro tipos de tradução:
cheia, crescente, minguante e nova. E cada uma delas colabora para que o idioma do amor seja, em diferentes fases, indecifrável.
A noite é mais acanhada quando falta uma dessas Luas.
Caí o luar sobre mim
Meu corpo vira um rio
E um arrepio de frio
Faz a noite suspirar
Deixo meu sonho vagar
Num dia imaginado
E nele alguém muito amado diz que veio me buscar
Com ele em minha vida outra
história
Onde o tempo me envolve sem passar
Ele vê meus olhos e me fala
Com voz doce assim
Feito agua a correr
As palavras se alinham aos meus pés
Caí o luar sobre mim
Em ondas que se movem
Sobre o meu corpo e de noite
Elas falam de você
Invento em cada dia uma
história
Foram tantas que nem posso recordar
Sei que em todas elas teve a lua
Iludindo nos dois, me fazendo chorar
Quando sinto meu sonho acabar
Meu sonho acabar...
Lua que vem - Joana
Lua que ilumina o meu amor conta pra ele
Que em mim a saudade não deixou eu longe dele
E toda vez que eu lembro ainda faz bater meu coração
Lua diz pra ele se lembrar do meu carinho
Que nada mudou nem mudará nossos caminhos
Que ainda eu acredito nesse amor escrito em minhas
mãos
Refrão - Vem, lua que
vem
Lua crescente traz urgente quem amei
Traz pra ficar
Pode levar lua minguante de saudade
E me ilumina também
Lua que vem
Vem lua nova traz de volta o que é meu
Anoiteceu
Mas nosso amor traz lua cheia de saudade
Eu sei que ele não me esqueceu
Lua que ilumina o meu amor conta pra ele
Que em mim a saudade não deixou eu longe dele
E toda vez que eu lembro ainda faz bater meu coração
Lua diz pra ele se lembrar do meu carinho
Que nada mudou nem mudará nossos caminhos
Que ainda eu acredito nesse amor escrito em minhas
Em uma conversa sobre a reformulação do código penal, uma amiga me fez uma observação certeira. O Brasil sempre molda seu espaço jurídico de modo a ter uma brecha para efetuar uma divisão entre cidadãos de primeira e de segunda classe. E, com base nesta divisão, tenta conferir eficácia a suas leis.
O propósito, aqui, não é discutir a criminalização ou descriminalização, mas sim como as mudanças da legislação penal são propostas de modo a, sob a rubrica de “fazer justiça”, camuflar um apartheid jurídico entre os cidadãos.
Exemplo disso é a proposta de reformulação do status criminal do aborto, que propõe, com base na legislação norte-americana, que o aborto somente seja considerado crime depois do terceiro mês de gestação. Segundo uma parcela dos estudiosos, esse seria o tempo necessário para que a mulher fosse capaz de amadurecer a decisão de ter ou não o filho, decisão esta baseada no princípio da liberdade de consciência, relacionado por sua vez ao princípio da dignidade da pessoa humana.
O problema é que ao se tomar a decisão sobre o aborto como espelho da livre consciência converte-se, ilusoriamente, o efeito (a decisão) em princípio jurídico. E, neste movimento, viola-se uma das cláusulas pétreas da Constituição: aquela que considera inviolável o direito à vida, que a todos caberia indistintamente. Em sendo de aplicação indistinta, o direito à vida se estende à vida em formação. Portanto, excluir os três primeiros meses de vida do alvo do referido princípio constitucional significa reduzir o ser humano em formação ao estatuto de cidadão de segunda classe.
Diferente é a possibilidade de prática do aborto no caso de a gravidez oferecer risco à vida da gestante. Neste caso, está em jogo a opção pela sobrevivência de duas pessoas igualmente ameaçadas, o que torna o aborto uma manifestação de legítima defesa e não uma violação ao princípio constitucional do direito à vida. Uma mudança na lei, acolhendo a possibilidade de aborto até os três meses de gestação representa uma disparidade com relação ao critério que norteia as exceções à prática do aborto. Este critério seria o da falta de escolha por parte da gestante tanto no caso do risco de morte quanto no caso de ter sido vítima de estupro.
A lógica da falta de escolha também não é aplicável aos casos de anencefalia, visto que a decisão de ser mãe traz em si uma grande parcela de imponderabilidade, de indecibilidade. Abortar tendo em vista um diagnóstico do “destino” da criança não deixa de ser um tipo de seleção eugênica. Pensar no aborto como um gesto de poupar a mãe do sofrimento é algo irreal, pois a condição da maternidade e da paternidade inclui graves e imponderáveis sofrimentos como o de ter seu filho morto pela falta de infraestrutura hospitalar, sanitária e nutricional ou ainda por causa da violência urbana.
Portanto, as alterações propostas com relação à descriminalização do aborto representam mudanças drásticas no critério de aplicação da lei e não devem ser encaradas como decorrentes de uma lógica natural e irresistível, colocando-se os opositores a estas mudanças na posição de alienados aberrantes.
Sem pretender esgotar o assunto, podemos abordar também a proposta de criminalização da homofobia. Infelizmente o Brasil se vê diante da necessidade de criminalizar a homofobia o que, legalmente falando, deveria ser desnecessário, pois as agressões deveriam ser tratadas pelas rubricas já existentes como as relativas aos crimes contra a honra (a exemplo da difamação) e contra a integridade física (a exemplo da lesão corporal).
Estas mesmas rubricas deveriam valer para o caso da violência contra a mulher e o negro. Mas, como sabemos, a lei no Brasil está longe de ser vendada como prescreve o símbolo da deusa Têmis. De maneira redundante, a lei brasileira precisa ser endereçada às "minorias" para poder surtir efeito.
Na verdade, é como se as particularizações (lei Maria da Penha, anti-racismo e anti-homofobia) fossem como leis complementares que direcionam as rubricas já existentes. Agora, certamente, essa postura terá seu ônus, como as distorções geradas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas, o Direito é naturalmente sujeito a distorções e a reformulação do código penal, prevendo punições contra a homofobia, acaba sendo necessária para que a cultura não transforme brechas da lei em janelas de impunidade.
Uma questão recorrente tem sido: “Se eu chamar um homossexual de feio, por exemplo, estarei sujeito a ser condenado por homofobia?”.
Este receio, provavelmente não vai se concretizar devido ao princípio da eficiência. Os juízes, muito provavelmente, não reconhecerão o mérito de julgamento para queixumes inúteis, estando os proponentes sujeitos a multa ao fazerem a Justiça perder tempo com denúncias desprovidas de mérito.
O que a criminalização da homofobia deve fazer é conferir aplicabilidade imediata à punição contra graves violências de ordem física e simbólica. Neste caso, a revisão do código penal contribui para que seja sanada uma distorção na aplicação das leis vigentes que, por força de preconceitos culturalmente arraigados, não têm amparado os homossexuais.
De qualquer forma, a criminalização da homofobia não deixa de revelar a triste tendência da legislação brasileira de dividir os cidadãos entre primeira e segunda classe. Considerados culturalmente como cidadãos de segunda classe, os homossexuais precisam contar com uma categoria à parte no código penal para poderem ser afetados pela legislação que já os deveria proteger.
Há pessoas que consideram que a criminalização da homofobia, contrariamente, criará um privilégio para os homossexuais, colocando-os na condição de cidadãos de primeira classe em relação aos demais.
Talvez, o que incomoda uma parcela dos opositores não é o fato de se sentirem cidadãos de segunda classe, mas sim a dificuldade de lidarem com o fato de estar sendo reduzido o espaço em que a prática do bullyng era considerada algo “normal”.
E, certamente, os gays - ou o que socialmente se convenciona definir como gay - representaram uma arena em que os praticantes do bullying acreditavam ter liberdade total pra agir. Algo semelhante aconteceu com relação aos negros e, num passado mais distante (quando o bullying era praticado, mas nem sonhava em se tornar conceito), com relação aos leprosos. E ainda acontece com relação aos portadores de doenças como o HIV/Aids.
Em certa medida, o bullying é uma mistura de medo e ódio projetado contra algo que se acredita ser uma doença capaz de contagiar a “sã” e celebrada “normalidade”. Uma sociedade que cultivou desde sempre o mau-costume de pautar sua “normalidade” na estigmatização de pessoas “eleitas” para ocupar o cargo de anormais sente-se aflita ao ter de reformular este modelo de “normalidade”.
Contudo, o desafio atual é o de não confundir o enfrentamento do bullying – que é um tipo de estigmatização com endereço definido e características de uma tortura contínua e persistente – com atitudes de censura à liberdade de expressão decorrentes do vício no politicamente correto.
Tanto o bullying quanto o politicamente correto rebaixam o cidadão ao status de cidadão de segunda classe.
[1] Esta
postagem é irmã gêmea desta postagem aqui.
[2] De
alguma forma a nota de rodapé tem sido tratada como uma versão do inconsciente
freudiano, uma versão da ideia de que contra a luz patente da consciência se
levanta o sol poente da penumbra, o arquivo de sombras, o abrigo, sanatório ou
Arcádia dos conteúdos latentes e reprimidos. Sim, talvez a nota de rodapé seja
o refúgio dos textos reprimidos. Alguns autores por mais apaixonados que fossem
pelas loiras madeixas da luz do dia, da consciência, não conseguiram esconder o
encanto que sentiam pelos cabelos negros de Ártêmis que, com seu mistério lunar, ilumina a desprezada nota de rodapé. Como é sabido, as fases da Lua são
diferentes penteados de Ártêmis. Inclusive, a Lua Cheia é Ártêmis quando faz com
seus cabelos um rabo-de-cavalo, deixando exposta sua face que rouba emprestada
a luz do Sol para dela construir a luz ao mesmo tempo nova e anciã do enigma.
E, certamente talvez, o desprezo que recebe a Lua - a nota de rodapé - é capaz
de dotar seu rosto de beleza irresistível (Sim, talvez a maior parte dos textos
ocidentais tenha algo de bissexual, pois se dividem entre os cachos solares de
Apolo que escorrem pelo texto principal e os cabelos morenos de Ártêmis que deságuam
pelas notas de rodapé). Mas, isto é só uma hipótese quase absurda.
Até hoje não compreendo porque as notas de rodapé não
se permitem ser divididas em parágrafos. Talvez seja porque, encaradas como
depósitos de retraços, sejam imageticamente pensadas para ser um amontoado de
informações. Mas, as notas de rodapé, como apêndices que são, reagem a essa
situação em que são colocadas: um misto de desprezo e atração selvagem. E, não
raro, as notas de rodapé inflamam-se e tornam-se clamor, eclipsando o texto
principal. E quando uma nota de rodapé supura? Quando o paratexto ameaça se
tornar texto principal? Um mundo sem direito a nota de rodapé, sem direito ao
contraditório. Um mundo sem direito a textos de segunda classe, sem direito à
luz da Lua e ao enigma: é aí nesse tipo de mundo que florescem as ditaduras, os
totalitarismos. A burca é um sinal do que pretende ser um mundo onde o texto
principal impera sem rival. A burca parece uma tentativa simbólica de velar por
completo a luz enigmática de Ártêmis, aprisionando-a eternamente na Lua Nova e
boicotando a luz periférica do contraditório, do mistério, da ambiguidade. Mas,
isto talvez seja só uma hipótese quase absurda.
De certo, a nota de rodapé, assim como a deusa Diana, é
uma exímia caçadora que se embrenha com suas flechas de luz enigmática no lagar
mais negro das florestas do ser. Mas, é fazendo uso de uma das armadilhas de
Diana/Ártêmis que Dionísio destila todo o seu vinho. E o sol brilhante do texto
principal teria, certamente talvez, um brilho cego e inútil se não se
permitisse beber do vinho dionisíaco e se não se permitisse dormir amparado
pelo quebra-luz instalado na face de sua irmã gêmea Ártêmis/Diana. Mas, isto
seria só uma hipótese, absurda quase.
A nota de rodapé me permite, numa virada junguiana,
ver que existem dois mundos e que a realidade não é restrita a uma só dimensão
amesquinhada e pirangueira. Quando levada a sério, a nota de rodapé devolve ao
imaginário, ao sonho, o direito de restabelecer o diálogo entre Apolo e
Ártêmis, irmãos gêmeos que o movimento iluminista, viajando aos tempos míticos,
tentou separar quando do nascimento deles. O momento atual, que se chama
de pós-modernidade, não é mais do que a chance dada a Leto (mãe dos gêmeos) de
ver novamente unidos os irmãos. Mas, como é sabido, os gêmeos para se unirem
precisam encontrar um modo de fazer conviver suas diferenças e suas semelhanças
e suas semelhanças disfarçadas de diferenças e suas diferenças disfarçadas de
semelhanças.
A nota de rodapé tem uma fragrância de amor secreto, de
sorriso secreto destilado no rosto sério do texto principal. É uma sonata de desculpa para
atravessar o Atlântico e espiar o que a fé já tinha como certo: que a viagem de
descoberta do Velho Mundo foi tranquila e que o Nobre sorriu no desembarque.