29 de março de 2013

A hipótese tosca de que Cristo era masoquista: sobre a dor inominável



Pintura de

Esta postagem surge de mais um daqueles momentos em que sou forçado a me deparar com afirmações tediosamente irritantes (ou vice-versa) como a seguinte: “Cristo era um tremendo masoquista e a Santa Ceia era um ritual de Canibalismo”.






Antes de apresentar minha resposta à pérola supracitada, permito-me um leve parêntese para falar sobre um duradouro modismo que tem assolado a temporada outono-outono (estação predileta da floresta de ideias caducas). Refiro-me a uma cruel junção entre o politicamente correto e a hipérbole. Trocam-se os politicamente incorretos palavrões por uma aparentemente neutra e científica adjetivação supostamente importada do repertório da psiquiatria.

Daí, em vez de chamar alguém de cabra safado, opta-se por chamá-lo de bipolar ou psicopata ou etc. Perceba-se que, ao substituir o insulto por um termo “científico” acredita-se estar no campo do eufemismo quando, na verdade, penetra-se o domínio da hipérbole, pois nada mais hiperbólico do que uma hipérbole disfarçada de eufemismo.

É fruto desse modismo a afirmação de que Cristo era masoquista.

O nome masoquismo é um empréstimo que a Psiquiatria fez da literatura. O termo deriva seu nome do romance A Vênus de Peles (1870), escrito por Leopold Ritter von Sacher-Masoch, onde um dos personagem atinge o gozo após ser surrado pelo amante da sua esposa.

Em qualquer psiquê há momentos em que prazer e dor tendem a se confundir, mas o masoquismo entra em cena quando a dor se torna o caminho exclusivo pelo qual se sente o prazer.

Ora, quão estranho caracterizar Jesus Cristo como masoquista se, durante sua vida na terra, ele não dispensava um bom banquete, uma boa festa, enfim momentos em que pudesse estar reunido com os amigos. Isso, a despeito da sisudez que lhe foi atribuída por representações medievais e renascentistas.

Será que um masoquista, ao ser interrogado, cuspido e esbofeteado iria perguntar ao seu algoz: “Se eu não disse nada de errado, por que me bates”? ou pediria a Deus, do alto da cruz, que perdoasse os seus torturadores por não saberem o que estavam fazendo?

Tendência cruel e tola esta de quando não se sabe como definir a atitude de alguém, fazer empréstimos irresponsáveis do jargão psiquiátrico: pseudo-erudição.

Deve-se levar em conta também que a narrativa bíblica trabalha com uma estratégia chamada de figuração, que consiste em traçar paralelos entre acontecimentos, não para promover entre eles uma relação especular, mas sim uma relação de inversão.

Desta forma, o terror do Cristo na cruz é reflexo invertido do terror que ele ajudou a tirar da humanidade. O rosto desfigurado de Jesus é reflexo invertido da dignidade que ele revelou no rosto das pessoas marginalizadas e privadas de face. Igualmente, o fato de ele oferecer a carne e o sangue como alimento é reflexo de sua luta para que o ser humano perceba que a vida vai além do “encher o bucho”.

É algo semelhante ao que acontece no episódio em que Cristo se encontra com a samaritana e lhe oferece água para que ela nunca mais tenha sede. E esta água que se bebe para não se ter sede é a esperança.

Ouvi, recentemente, uma música de um compositor chamado Nelson Correia. Ele dizia, na canção, que quando um filho perde o pai ou mãe é chamado de órfão, mas que não havia uma palavra para designar o pai ou mãe que perde um filho. Certas dores são inomináveis e nós, no desejo de sermos práticos e razoáveis, buscamos dar nome a elas nos escorando na “lógica” e no cientificismo. Daí, esta onda de apelidar as dores dos outros com expressões oriunda do “mini-dicionário de loucura e termos afins”. Mas, em certos casos, a tentativa de nominar o inominável não passa de desrespeito.

Giovanni Battista Pergolesi - Stabat Mater - Duett -Stabat mater dolorosa

26 de março de 2013

Todo topless será castigado: a nudez vestida e os Wait Watchers





Amina - a censura ao bico dos seios foi feita no site da TVI-24


“O meu corpo me pertence e não representa a honra de ninguém”. Por ter estampado esta frase no peito e no Facebook, Amina, uma garota tunisiana de 19 anos, integrante do movimento Femen (movimento em que feministas utilizam a nudez como plataforma de protesto), foi condenada à morte por açoites e apedrejamento.

A denúncia da jovem foi feita por um hacker que substituiu a imagem de Amina, e de uma outra seguidora do Femen, por versículos do Corão. Ele alterou a fotografia do perfil da ativista pela de um homem de peito nu, no qual estava escrito "Maomé, o enviado de Alá".

Amina mesma observou que tamanho alarde se deu somente por ter utilizado o corpo nu como veículo da mensagem. “Se estivesse escrito numa camiseta, o slogan passaria despercebido. Eu quero que a mensagem seja lida. O corpo de uma mulher é dela, não do seu pai, seu marido ou do seu irmão”.

O caso Amina aponta para uma realidade que muitos acreditam pertencer exclusivamente aos ambientes de tradição islâmica. Mas, o Ocidente, que alardeia, desde a Revolução Francesa, ser porta-voz da liberdade, da igualdade e da fraternidade, não mantém uma relação tão amistosa com a liberdade de expressão e, tampouco, com a liberdade corporal.

Gestos são monitorados com secreto requinte e os indícios sinalizados pela postura e pelos movimentos são, comumente, elevados ao status de símbolo, como se fossem impressões digitais da essência. Procura-se nos gestos uma desculpa para lavrar nas pessoas o atestado de uma identidade irrevogável que, trajando a sede pela tirania, segue desfilando na passarela da tolice.

Hitler afirmava que começou a nutrir repúdio pelos judeus depois de observar um grupo deles conversando e analisar seus gestos e suas roupas.  Esta torpe desculpa é reproduzida por muitos de nós cotidianamente e nos leva a injetar pequenas e contínuas doses de pena de morte nos que não preenchem os padrões que nós, isto é, a Coca-Cola, a Mac, a Animale, a Chanel, a Dior..., “elegemos” antes do primeiro turno. E ditadura pior é a tendência atual de migrar a obsessão pela padronização do genérico para o detalhe. Surge o questionamento de como, diante da informação profusa e mutante, encontrar a combinação “correta” de detalhes que tenta fazer do mais “infinito particular” um padrão.

A época atual está mostrando que a nudez não significa tanto o tirar a roupa. Pois a nudez do nu já se tornou a pesada vestimenta do convite obrigatório à sensualidade. A nudez hoje está no desafio aos julgamentos ”silenciosos”, no enfrentamento da tirania do gesto. Esta é a nudez que, em Amina, foi condenada à morte.

Até mesmo no seio do Femen, a nudez tem sido castigada. Ex-integrante do Movimento,  a brasileira Bruna Themis conta que grupo rejeita a participação de mulheres “acima do peso”.

Outra Amina que também teve a "nudez" ameaçada de morte foi a nigeriana Amina Lawal Kurami. Ela foi acusada de adultério e de conceber fora do casamento, tendo sido condenada à pena capital de linchamento. Isso com base numa interpretação extremista de textos da tradição islâmica. Felizmente, em 2003, com auxílio do clamor internacional, a sentença foi revogada. 

A fotógrafa americana, Haley Morris-Cafiero faz autorretratos não para fotografar a si mesma, mas para registrar o preconceito das pessoas ao redor, revelando a reação pública ao que parece fora do padrão. O resultado é o projeto Wait Watchers, que pode ser visto aqui.



24 de março de 2013

O poema remendado e o dia em que Freddie Mercury desafiou Montserrat Caballé

Poema Remendado
Linav Koriander



Dizem as boas línguas que, há vinte e cinco anos, Freddie Mercury desafiou a soprano Montserrat Caballé para ver quem tinha maior fôlego e que o britânico nascido em Zanzibar e filho de pais persas teria ganho de longe. Mas o fôlego de Montserrat Caballé ultrapassou os muros guturais e refletiu-se em sua tenacidade, sem a qual não teria conseguido superar as dificuldades na sua formação musical.

Ambos conseguiram feitos "improváveis". Ela, sendo espanhola, foi aplaudida durante meia hora ininterrupta no Carnegie Hall (Nova York) e ele, imigrante e bissexual, deixou sua impressão digital na musicalidade britânica e consegue, até hoje, estar no repertório de corações pelo mundo a dentro.

A seguir, a música How Can I go on, um sucesso na voz dos amigos Mercury e Caballé:





14 de março de 2013

Homenagem ao dia da poesia: a última poesia e o nome de quem amo

Alemanha relembra 50 anos do Muro de Berlim - Agence France Press (AFP)



Última poesia
Jose Luis Paredis

Última poesia: não consigo terminar a lista dos convidados para
Velar a festa que clandestinamente está sendo montada no hangar
Onde não pousa o navio da despedida sem que decole o navio da esperança
En garde! Grita o sol, de lá do jardim, embainhando sua espada
E dando de presente à última poesia o carisma, o mar do desarmamento

Na festa de despedida da poesia,
O sol sente-se honrado ao ser convidado a se retirar,
Ao ser esquecido do lado de dentro do mundo

A última música
Esqueceu-se da senha e todos os silêncios choraram com aplausos
Quando, teve de ir embora:
Sua partitura fez chegar aos ouvidos da última poesia
O filme interminável da primeira vez
Nesse segundo, uma porta inexistente se abriu
E os abraços roubados pela violência, pelo medo e pela vergonha
Foram devolvidos em dobro, em triplo:
E nunca houve abraços tão únicos e singulares como aqueles

A última morte foi um cavalheiro e cedeu passagem
Para que a última primavera entrasse na frente
E desmentisse todos os ultimatos
Na recepção da última poesia, parecia só haver lugar para a morte e os invisíveis
Mas, quando escolhi vestir teus abraços e mergulhar com nudez e tudo no teu olhar
O último suspiro da poesia hesitou e a seus pés brotou a liberdade perpétua
E o nome de quem amo

O universo tentou enganar a métrica e fazer amor com a última poesia
Antes, deu-lhe de presente o arrependimento de Deus
E quando Deus escolhe se arrepender, acontece o milagre,
Tornando as chaves de ouro pálida ferrugem
E só conheço duas coisas que rimam com o milagre: o recomeço e o nome de quem amo

O nome de quem amo: um rosto lindo de criança desde sempre abençoada
O nome de quem amo: nom des murs que, pour amour, escolhem cair e vestir-se de homens de mãos dadas
O nome de quem amo: aeroporto que toma banho de sol nascente
O nome de quem amo: paz da minha loucura
O nome de quem amo: timidez que convence as bombas a desexplodirem, resposta que sopra para ensinar o vento a ter endereço certo
Nome de Alguém

Epílogo

Chegou então a última saudade: que chega ao fim só para descobrir que não há senão saudade primeira
E esta verdade: fez cair por céu o postulado do ponto.

...




 A última poesia
Carlos Drummond de Andrade

A última poesia Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.

 

13 de março de 2013

A conversão de Valesca Popozuda e o lugar do sexo implícito



By Gustavo Azeredo - Jornal Extra


Valesca Reis Santos poderia ser considerada uma artista do nível do pintor Arcimboldo (séc. XVI), um dos maiores representantes da estética do Grotesco, mas falha por um pequeno detalhe. 

Uma definição possível de grotesco é a do esforço artístico de abrir uma ferida na visão clássica da natureza. Quando um pepino faz uma “migração”da lavoura ou de uma salada para o rosto humano, tornando-se metáfora de um nariz (como ocorre no quadro Verão, de Arcimboldo), a analogia gerada causa um sentimento que, rapidamente, pode oscilar entre o riso, o medo e a repugnância. É na dança entre estas sensações que o grotesco se coreografa.

O palavrão é o grotesco que se torna lugar-comum e se esquece de suas origens. Assim acontece, por exemplo, com a palavra “rola” (leia-se rôla) que faz a imagem de um tipo de pássaro usurpar, metaforicamente, o lugar do órgão sexual ou do termo “ovo” (leia-se ôvo) quando se faz passar pela gônada sexual masculina. 

Somam-se, comumente, aos palavrões doses de estigmas ou traumas ancestrais. Daí, o fato de muitos palavrões serem anacronismos que invocam doenças já totalmente debeladas a exemplo da peste bubônica.
Assim acontece quando os palavrões rememoram situações que, em tempos passados, foram consideradas crimes, a exemplo da sodomia (nome que era dado ao envolvimento sexual entre homens). Daí, expressões como “tomar no cu” e “dar o fundo” serem palavrões desdobrados em locuções.

Certamente talvez, exista uma classe de palavrões que trabalhe construindo metáforas grotescas por meio da condensação de terrores que afligem a alma humana. Exemplo é o corriqueiro “Foda-se”, que, em casos extremos, evoca a mistura de solidão, “crime” e tortura.

Arcimboldo, 1573, Verão, óleo sobre tela, Louvre.
Por mais incômodas que as letras de Valesca sejam a nossos ouvidos imaculados pela herança pequeno-burguesa, a Popozuda trabalha a estratégia da ironia, buscando tornar o grotesco um tipo de crônica do quotidiano. A grande concentração de palavrões por minuto quadrado choca não por remeter a traumas, crime ou doença, mas por pretender fazer o palavrão adquirir o status de palavra corriqueira. O maior pecado do palavrão é querer, a despeito da “moral e dos bons costumes” compartilhar o espaço da palavra “pura”.

O palavrão é tímido, uma tímida expressão do grotesco que pede licença para fazer entradas pontuais na encenação da comédia humana. Nestas curtas inserções, ele chama para si todos os holofotes: tanto os de luz quanto os de sombras.

Não é o que acontece com a poética de Valesca, que converte o palavrão no próprio holofote, reduzindo o choque a um ator coadjuvante ofuscado.

O caráter irônico da nova fase da carreira de Valesca é denunciado pelo início da música Catra-Mama, no qual ela anuncia que se “converteu” e abandonou os palavrões. De algum modo, ela critica a crítica que lhe é feita: de fazer apologia ao sexo explícito. Na ironia da autora encontra-se um questionamento; onde está, atualmente, o sexo implícito para que alguém possa explicitá-lo? 

A indiferenciação entre a palavra e o palavrão pode ser analisada por outro lado: o de como as palavras comuns, vitimadas por contextualizações precárias, como a das citações facebookianas, acabam por adquirir a carga pejorativa do palavrão. 

O sentimento de inadequação entre palavra e contexto ganha enorme proporção nas redes sociais. A pressão de resumir o pensamento a cento e poucos caracteres reflete-se na tendência de tornarmos as palavras reservas de expectativa concentrada: verdadeiras minas terrestres virtuais. E, por vezes, um “ingênuo” Curtir do Face deflagra uma explosão, como se os usuários fizessem das palavras uma deixa para elegerem um alvo do linchamento-web. Talvez, o leitor já tenha experimentado a sensação de ter feito um comentário e se ver cercado por todos os lados por comentários que se juntam para reduzir o comentário e o comentador a pixels.

A poética de Valesca Popozuda chama atenção para uma mudança de paradigma em que se percebe que, muitas vezes, o palavrão ou a palavra não são tanto o problema, mas sim o modo como organizamos na equação do comunicar as fronteiras complexas entre ética, moralismo e hipocrisia.

Meu agradecimento a Renata Marques e a Thayse Medeiros que debateram comigo sobre o caráter comunicacional do fenômeno Valesca Popozuda.


Valesca Reis canta Catra-Mama
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