Pintura de Ernst Fuchs |
Esta postagem surge de mais um daqueles momentos em que sou
forçado a me deparar com afirmações tediosamente irritantes (ou vice-versa)
como a seguinte: “Cristo era um tremendo masoquista e a Santa Ceia era um
ritual de Canibalismo”.
Antes de apresentar minha resposta à pérola supracitada,
permito-me um leve parêntese para falar sobre um duradouro modismo que tem
assolado a temporada outono-outono (estação predileta da floresta de ideias caducas).
Refiro-me a uma cruel junção entre o politicamente correto e a hipérbole.
Trocam-se os politicamente incorretos palavrões por uma aparentemente neutra e
científica adjetivação supostamente importada do repertório da psiquiatria.
Daí, em vez de chamar alguém de cabra safado, opta-se por
chamá-lo de bipolar ou psicopata ou etc. Perceba-se que, ao substituir o
insulto por um termo “científico” acredita-se estar no campo do eufemismo
quando, na verdade, penetra-se o domínio da hipérbole, pois nada mais
hiperbólico do que uma hipérbole disfarçada de eufemismo.
É fruto desse modismo a afirmação de que Cristo era
masoquista.
O nome masoquismo é um empréstimo que a Psiquiatria fez da
literatura. O termo deriva seu nome do romance A Vênus de Peles (1870), escrito
por Leopold Ritter von Sacher-Masoch, onde um dos personagem atinge o gozo após
ser surrado pelo amante da sua esposa.
Em qualquer psiquê há momentos em que prazer e dor tendem a
se confundir, mas o masoquismo entra em cena quando a dor se torna o caminho
exclusivo pelo qual se sente o prazer.
Ora, quão estranho caracterizar Jesus Cristo como masoquista
se, durante sua vida na terra, ele não dispensava um bom banquete, uma boa
festa, enfim momentos em que pudesse estar reunido com os amigos. Isso, a
despeito da sisudez que lhe foi atribuída por representações medievais e
renascentistas.
Será que um masoquista, ao ser interrogado, cuspido e
esbofeteado iria perguntar ao seu algoz: “Se eu não disse nada de errado, por
que me bates”? ou pediria a Deus, do alto da cruz, que perdoasse os seus
torturadores por não saberem o que estavam fazendo?
Tendência cruel e tola esta de quando não se sabe como
definir a atitude de alguém, fazer empréstimos irresponsáveis do jargão
psiquiátrico: pseudo-erudição.
Deve-se levar em conta também que a narrativa bíblica
trabalha com uma estratégia chamada de figuração, que consiste em traçar
paralelos entre acontecimentos, não para promover entre eles uma relação
especular, mas sim uma relação de inversão.
Desta forma, o terror do Cristo na cruz é reflexo invertido do
terror que ele ajudou a tirar da humanidade. O rosto desfigurado de Jesus é reflexo
invertido da dignidade que ele revelou no rosto das pessoas marginalizadas e
privadas de face. Igualmente, o fato de ele oferecer a carne e o sangue como
alimento é reflexo de sua luta para que o ser humano perceba que a vida vai além
do “encher o bucho”.
É algo semelhante ao que acontece no episódio em que Cristo se encontra
com a samaritana e lhe oferece água para que ela nunca mais tenha sede. E esta água
que se bebe para não se ter sede é a esperança.
Ouvi, recentemente, uma música de um compositor chamado
Nelson Correia. Ele dizia, na canção, que quando um filho perde o pai ou mãe é
chamado de órfão, mas que não havia uma palavra para designar o pai ou mãe que
perde um filho. Certas dores são inomináveis e nós, no desejo de sermos práticos
e razoáveis, buscamos dar nome a elas nos escorando na “lógica” e no
cientificismo. Daí, esta onda de apelidar as dores dos outros com expressões
oriunda do “mini-dicionário de loucura e termos afins”. Mas, em certos casos, a
tentativa de nominar o inominável não passa de desrespeito.
Giovanni Battista Pergolesi - Stabat Mater - Duett -Stabat
mater dolorosa
Nenhum comentário:
Postar um comentário