31 de maio de 2017

Terror crítico no filme Corra! (Get Out!): a facies hipocratica da tolerância

Cartaz do filme Corra! (Get Out!)


Quem disse que filme de terror não pode trazer crítica social em seu DNA?

A cada cena de Get Out! (que, no Brasil, ganhou o título de Corra!), o que mais me assustava eram as correlações que fiz com um depoimento da atriz Thaís Araújo sobre a relação entre racismo e tolerância.

O filme de Jordan Peele tem feito sucesso pelo mundo como thriller de terror sem apelar para o sobrenatural, de suspense parapsicológico e mistério.

Mas, não considero que o gênero do filme seja nenhum dos mencionados no parágrafo anterior. O terror, o mistério e o suspense são, na verdade, metáforas do verdadeiro tema do filme: o mito da tolerância.

Só pra não deixar o leitor voando, lá vai uma sinopse: Chris, muito bem interpretado por Daniel Kaluuya (de Black Mirror) resolve passar o fim de semana na casa dos pais de sua namorada Rose, papel vivido pela atriz Allison Williams.

Ao chegar lá, depara-se com uma família a princípio receptiva. Porém, o apurado olhar fotográfico de Chris começa a detectar estranhas coincidências. Os poucos negros da região apresentem sinais sorumbáticos que tentam conviver com sinais artificiais de tranquilidade e alegria.

O riso dos negros da localidade aproxima-se do que, no jargão médico, é chamado de facies hipocratica, caracterizada por olhos fundos, parados e inexpressivos presentes em casos nos quais a pessoa enfrenta uma grave doença.

Chris começa, então, a perceber que aquilo não se trata de mera casualidade e que ele próprio pode se tornar vítima.

O título original (Get out!) é uma ironia. Isso porque o desejo de uma elite branca de que a negritude seja banida é ironicamente associado ao desejo de se tornar o negro: parcialmente.

Retomando a questão do mito da tolerância, que atua como paisagem crítica da película, o modo como este mito é apresentado é que é a sacada da história.

Os negros não são intolerados. Ao contrário são, de uma forma deturpada e asquerosa, tolerados. O lado falso da tolerância é expresso pelas técnicas empregadas pelos brancos para estreitar o espaço social e psíquico em que os negros podem existir.

O existir tolerado é aquele em que o ser humano subjugado só pode se mover e sentir dentro de limites estreitos, de uma jaula que, no filme, assume a pior forma de prisão, aquela que o pensador Peter Sloterdijc denomina “gaiola de vento”, uma alusão às prisões caiadas de ilusória liberdade.

O que o filme Corra! faz é dar tons hiperbólicos ao que acontece na sociedade atual, onde o fetiche da tolerância esconde um jogo sádico. Assim, os negros, os gays, as mulheres, e outros grupos atingidos pela discriminação, sentem-se coagidos a entrar no jogo da pseudo-aceitação.

O gay/negro/mulher é tolerado, desde que respeite os limites de existência subliminarmente impostos pelos donos da situação.

E assim espera-se dos discriminados que, no mínimo, sorriam e sintam-se gratos enquanto ouvem os discriminadores assumirem palavras e gestos onde a discriminação faz um contorno  no cabo das tormentas para encontrar um outro modo de chegar às Índias, isto é, ao coração da pessoa discriminada.

Essa expressão perversa do mito da tolerância atua como se discriminadores (ou a parcela discriminadora de cada um de nós) erguessem manequins invisíveis e os incendiassem com tochas de insulto e violência, dizendo à pessoa que se quer discriminar: “Estou insultando um ser invisível, que, por mera coincidência, poderia ser você, mas não é... Portanto, alegre-se!”

Em Corra!, o preconceito não existe. Porque um grupo de sádicos desenvolveu técnicas para estreitar o âmbito em que os negros podem existir e envernizou esta gaiola de ventos com água oriunda de lavagem cerebral e de lágrimas ao avesso, disfarçadas de sorriso e paz cemiterial.

Quando o terror, o suspense e o mistério morrem é que o filme se torna mais aterrorizante e tenso.

Filme incrível e com grandes atuações de Betty Gabriel, Catherine Keener, Keith Stanfield e Bradley Whitford. 


22 de maio de 2017

Coisas e palavras que (não) são de amigos

Borboletário
Rogerio Cavalheiro/Futura Press/Folhapress


PS.: Conversando com uma amiga, ela me disse que pessoas que tinham a vida organizada não viveriam grandes amores porque não se pode ter tudo...

Como vidente, ela é uma excelente fotógrafa...

Outro dia, meu grande amor (amigo), depois de anos ouvindo minha poesia ao pé do zap, perguntou quando eu ia desistir de dizer coisas que não são de amigos como "Eu te amo"...
فارسی

Coisas que são ou não são de amigos variam histórica e geograficamente

Entre os persas, amigos se beijam no rosto e andam de mãos dadas

Na Antártica, amigos dormem abraçados pra gerar calor humano
E enfrentar o zero absoluto

Na Israel salomônica, amigo, irmão e amado eram sinônimos
Não fazia mal amigos se acharem lindos do início até o recomeço
Dizer Eu te amo era uma forma de fazer as pazes
Entre o Adeus e o Até logo
Entre as reticências e o ponto final

Em B612, amigos ajudam o outro a virar rosas e depois os colocam dentro de redomas

E, no planeta-poesia, a amizade-amor é indomável, instavelmente equilibrada, porém harmônica, inafeita a batalhas

Em qualquer lugar ou tempo, amigos, de quando em quando, mentem um pro outro
Porque às vezes é dita tanta verdade que nem a nudez consegue nos vestir

Mas, só com um brasileiro tive vontade de fazer amizade, amor e sexo também
Embora tenha lhe dito o inexato contrário

Espero que ele revogue a medida provisória onde finge decretar
Que eu devo desistir pra sempre

Só ele topou ficar segurando minha mão enquanto via coisas onde elas não existiam
E imaginava coisas que nunca iriam acontecer


Não sei mais dizer se isso é coisa de amigo, amante ou poeta

[Esse texto tem 1% de chance de acertar o alvo. Tomara que ele não esteja usando filtro solar]


PS.:

No princípio, os poemas eram pra alguém, assinados por pseudônimos
Em seguida, continuaram assinados por pseudônimos e eram pra ninguém em especial
Só depois de 2015, a poesia foi pra você assinada por mim.
Talvez isso tenha algum significado, meu amigo (amor).

16 de maio de 2017

Canção do retorno


The Fisher King
Eddi van W. via Visualhunt.com / CC BY-ND



Queria que a princesa Isabel assinasse a Lei Áurea pra o meu ventre
Queria ter escrito o Cântico dos Cânticos pra quem amo
[Mas não seria justo com o rei Salomão]
E que ele pudesse achá-lo entre as mechas de seus cabelos
Que acendem meu tato
Assim como o rosto dele acende meu olhar
A sua presença minha alma
E a sua distância mantém aceso meu sétimo sentido
Minha esperança
Chamada de teimosia nas horas vagas

Você vai retornar
E a canção de retorno vai ser uma música
Tocada na clave de sol
E, se você quiser, os intervalos dela
Serão acompanhados pela notas de minhas visitas

Me ajuda a ter motivo pra continuar acendendo minha poesia

Hegel estava certo:
A poesia assim como o amor é inexprimível
E o poema, bem como as palavras,
São acidentes de percurso,
Tentativas desastradas de captar as pegadas do indizível

Eu sempre te amei, vida
Te conhecer foi a ressurreição que faltava
Estou mais do que feliz com tua felicidade
Embora o fato de ela significar tua decolagem
Dá um frio no meu ventre preso

Não foi Platão quem disse que você me ama
Você é o primeiro que disse que me amava
Com os silêncios, as pausas e as hesitações
Mas, o que seria da música e do amor sem elas?

Não quero perder isso de jeito nenhum
Vlw por tudo
Vlw tudo

Vem comigo pra que eu não sofra
Vou contigo pra você não chorar
O amor real: se Platão o conhecesse,
A história da Filosofia seria outra

Você atirou uma flecha na maçã que estava na minha cabeça
E, desde então, meu zap toca uma música exclusiva pra ti
Seja pato ou labrador, você é um ser humano lindo
Meu aperto de mão mais beijo
Meu beijo mais abraço
Meu abraço mais sexo
Meu sexo mais plenitude
São teus

Sou teu brother in arms
Mas quero ser também teu lover in arms
Cada vez que nos casarmos, tocará aquela música de saxofone que você gosta
E eu tb

Não sei me despedir
Tampouco terminar este poema

Vou te imitar e deixar uma ...

Por que o discurso de Diogo Mainardi escolheu mandar Reinaldo Azevedo ir dar a bunda?

Fonte da imagem: Jornal O Tempo


O jornalista Diogo Mainardi fechou um debate de ideias com o jornalista Reinaldo Azevedo, sobre a conversa entre o ex-presidente Lula e o juiz Sérgio Moro, com o imperativo: #VaiDarABundaReinaldo.

Por que o imperativo “Vai dar a bunda” é considerado algo de tanta a força a ponto de ser eleito “chave-de-ouro” de um debate?

Num contexto em que os arquétipos masculino e feminino estão se reescrevendo, a resistência conservadora se expressa por meio de discursos de poder ancorados num dos conjuntos de imagens mais recorrente ao longo da história: a imagem do passivo que é aniquilado pelo ativo.

Esse repertório imagético atualiza, na forma “dócil” da contemporaneidade, as torturas baseadas no retrato do coito como destruição do aparelho genital de quem ocupa a posição passiva na relação sexual.

Isso fica mais claro quando pensamos no grande número de situações negativas traduzidas por expressões como: “Tomou no cu”, “Está fudido” e “Arrombou-se”. Expressões como estas continuam sendo utilizadas como senha desesperada para definir os redutos onde “homens” e “mulheres” devem circular.

E assim, as mulheres, por mais bem-sucedidas que possam ser em diferentes campos, não serão bem-sucedidas se “lhes faltar levar rola”. De forma semelhante, um homem que faz sexo com outro é considerado homem nas horas úteis de trabalho, desde que traga lucro ao empreendimento. Mas, nos bastidores, é despido de sua hombridade e convertido na figura de “arrombado”.

Aliás, num contexto em que as posições sociais não conseguem mais ser orientadas pelas posições ocupadas na cama, resta ao machismo (seja ele masculino ou feminino, hetero ou homossexual) maquinar a subjugação do “passivo” nos bastidores, por meio das entrelinhas do discurso, das indiretas pontiagudas, aludindo à dolorida retomada de uma história em grande parte baseada em relações de estupro do corpo e da alma.

No artigo Os dispositivos de poder e o corpo em Vigiar e Punir, publicado no número 3 da Revista Aulas (2006/2007), a filósofa Saly da Silva Wellausen  reflete, como denuncia o título do texto, sobre a noção de poder na “obra” de Michel Foucault.

Em um dado momento, Saly sintetiza a relação entre poder e subjugação do passivo: “o poder instala-se na horizontalidade do sujeito individualizado, modelando seu corpo até a passividade”.

No contexto atual, percebe-se um tipo de oscilação entre o que Foucault chama de poder-saber, exercido por meio das técnicas e discursos, e a utilização da violência pura e simples: o poder que para se impor aniquila sua própria “natureza”: a estratégia.

É o caso do linchamento, o terrorismo e outras formas de aniquilação onde a recorrência ao efeito-surpresa eleva à mais alta potência  a afirmação de Foucault, parafraseada pela filósofa: “o poder produz o real antes de reprimir, o verdadeiro antes de ideologizar, abstrair”.

Contudo, o poder-saber segue firme em seu impulso geográfico de mapear os espaços onde as pessoas podem existir e as formas de existir. Essa definição é feita por meio da mobilização de discursos para definir qual o “quadrado” de cada um e se esse quadrado é ou não arrombado.

Uma vez no programa Os Pingos nos ii, de Reinaldo Azevedo, na rádio Jovem Pan, ele tocou um trecho da música Coração Ateu, composta por Sueli Costa, e cantada por Maria Bethânia. E falou que a matéria-prima da reflexão é por excelência o amor. Refletir sobre política é a falta de alternativa diante das mazelas sociais.

Fiquei pensando se ele não teria visitado este blog, tendo em vista que visitei o dele com um comentário (que ele apagou) e deixei lá o endereço do meu blog. #ProntoEspeculei.

12 de maio de 2017

Prece a Nossa Senhora dos Passos


Photo credit: isado via Visual hunt / CC BY-ND


Nossa Senhora dos Passos, te peço
Livra as asas do meu anjo dos tropeços,
Dos calos que não param de falar

Posso emprestar um pouco do meu colo pra ele
Enquanto a Senhora visita a hora do Ângelus?

Conta pra ele, Mãe, que o cinema nos espera
Que a estrada nos pede carona
E que os dilemas se tornam leves ao seu lado

Espero que a beleza do meu rosto caiba no seu olhar esta madrugada
E em outras nas quais ele pare de tentar me convencer
A desistir
O orvalho desistiria das folhas por medo do nascer do sol?

Quando não desisto de ti, a dor dói menos
Não desistir, ao contrário do que possa parecer
Me ajuda a não esquecer o  doce ponto
Em que rota e atalho fazem as pazes


Me deixa enxergar tuas pegadas roçando as minhas
No jardim dos descaminhos

11 de maio de 2017

Elvis Presley e o código de insegurança do cartão de descrédito


Elvis
Photo credit: Claudio Arriens via VisualHunt.com / CC BY-NC





Cartão de descrédito ou poesia secreta de Elvis Presley

Chamei pelo seu nome
E tive como resposta um olhar seco
Queixo arrebitado
Ao fundo, um instrumento frio, na clave de Far, exalava uma música hostil perguntando: “O que esse indivíduo acha que pode querer comigo?”

Se minha presença lhe é, de fato, indiferente, a piada fúnebre se repetiu
Se a indiferença é sua máscara de proteção, você finge bem
Porque faz minha esperança latejar de dor e cansaço

Você deve ter feito, enquanto dormia, um curso intensivo de sem-cerimonial
E aprendeu a me desconvidar para todos os feriados prolongados
Prolongando-me feridas

Vou tentar dormir hoje sem me sentir menos importante que o cartão de descrédito
Que você não possui ainda

Hoje seu agradecimento foi estéril, do hálito pra fora

Acompanhe a dançarina
E me deixe voltar sozinho escoltado pelo risco de assalto
Pelo pouco importe-se de desarmamento

Ensaie o ritmo inerte da norma morna,
Da conveniência enganaredentora

Eu te amo.

No fundo, o que eu tenho pra te oferecer?
Além do toque mais suave que a eletricidade já esculpiu
De um abraço mais acolhedor que o retorno ao jardim que teu sonho planta antes de dormir
Do prazer mais intenso que o segredo grafitou na muralha estelar?

Não se preocupe. O dobrar dos meus sinos não se chama deslealdade
Meu amor é puro e intenso o suficiente para trocar os alto-falantes
Pelo teu pé de ouvido
Em tempo: não cobro anuidade
Juros ou sequer Prometos

PS.: Seu machucado me preocupou.

10 de maio de 2017

Receita poética para o MasterChef


Photo credit: rtppt via Visualhunt.com / CC BY-NC-SA


Adicionei um mói de câmera lenta no acelerador da carruagem 
E descasquei os milésimos de segundo até cada um deles se tornar uma noite inteira
Na tua companhia

Polvilhei chuva no asfalto e hipnotizei as ruas
Até seus olhos semicerrarem
E o mundo inteiro se tornar bastidor de nossas carícias

Untei teus lábios com vinho
E pré-aqueci nosso abraço,
Assistindo de mãos dadas ao vento virar filme
E catar nossos segredos

Segurei a vela até ela abrir as asas
E acender nossa embarcação

Quando tomaste, finalmente, iniciativa
Foste fermento que fez meu coração crescer, 
Longe de qualquer corrupção

Meu carinho  confessou ser teu despertador
Capaz de te acordar pra dentro do meu sonho

Dormi nós dois enquanto a chuva imitava a voz do mar
A gosto

Adia o cais e o aeroporto
Não (des)embarque ainda
Não antes do teu abraço me contar
O segredo para abrir o cofre da liberdade

O calor do nosso encontro aguarda um fio de Aceite
Para completar a receita

Ensina meu plano de te beijar
A te pegar de surpresa
E meu cobertor a se tornar tua atmosfera e remanso

Nus, envolvendo-nos enquanto assistimos Netflix
Ou torcemos pelo retorno dos eliminados do MasterChef

7 de maio de 2017

...

Photo credit: Claudia Regina CC via Visualhunt / CC BY-SA



Aorta ou elogio ao inenarrável

Durante um quarto de hora a epifania contou nossa história
A eternidade trocou o dom de durar para sempre
Pela alegria de viajar a sós contigo durante 40 minutos-chuva

Meu sorriso mais libidinoso estava coberto de pureza
E eu querendo que você escrevesse, no meu corpo, uma versão apócrifa do Kamasutra

O mapa Múndi estremeceu de alegria no meu ventre
Quando os hemisférios de nossos lábios se tocaram

Devolve, amor, o outro hemisfério desse beijo
Pra que meu ser seja outra vez sol nascente
No leste,
No oeste,
No viste,
No ouviste
No calaste
Em todos os sentidos,
Em todas as pétalas da rosa-dos-ventos

A horta do meu coração
conheceu o jardineiro mais lindo e

Hoje, a profecia que errava no poema que ganhava um novo verso
Toda vez que alguém o lia
Cumpriu-se

Aquele velho poema fechou suas portas
Mudou-se para este lugar inenarrável
Onde o nome de quem amo coincide com sua presença
Abraçada à minha

Que bom que você esperou por meu segundo abraço
Antes de abrir a porta do carro,
Até o primeiro beijo de amor
Me visitar
[Seu lábios se deixaram roubar]

Foi tudo como sonhei
O antes, o depois
Fui o homem, a mulher, o homo, o hetero, o trans
O corno, a puta, o santo, o devasto
Que sempre sonhei
No instante exato

Todos dizendo Eu te amo
Doce, sem culpa, sem cobrança, sem pressa
Um tesão repleto de letras, ideogramas, braile, hieróglifos
E silêncios
E luz
Como na música que a rádio Recife mandou calar
Naquele instante

Desisti de te pedir em casamento
Prefiro te pedir em liberdade
Até que a sorte nos prepare
Para o que há de vir
Talvez
Por que não?

Não tenho medo, culpa, nem pressa
Estou pendurado no varal da existência
Um sol simples e leve me
Quarando
Minha alma Agrestina
Vê tua alma sertaneja tomando banho de chuva

E perdendo a conta de quantas doses de água ardente tomou

1 de maio de 2017

Bjos de luz, filhas de Frida Kahlo!

É possível ser feminista e cristã ao mesmo tempo? O que leva um discurso evangélico a criar uma associação entre o Demônio, o feminismo e Frida Kahlo? Tentamos refletir sobre o tema, mesmo depois do "trauma" de ter ouvido ontem que quem fez o mestrado em Comunicação não sabe o que é ter feito um mestrado...


Arte: Karla Vidal


Não gosto de analisar o discurso dos outros porque, ao se fazer isso, corre-se o risco de tratar o discurso como sendo o próprio indivíduo, o que não procede porque não há signo ou discurso que consiga dar conta plenamente nem das coisas, nem dos acontecimentos, nem das pessoas.

Nesta perspectiva, a narração é uma tentativa mais ou menos bem-sucedida de correr atrás do tempo perdido e a descrição reflete nosso esforço de passar uma borracha em cima da infidelidade de nossas memórias.

Mas, esse preâmbulo é só pra dar um verniz científico na seguinte frase: “Não dá pra reduzir uma pessoa ao que ela fala ou escreve”.

Outra coisa chata de quem se mete a analisar o outro por meio do discurso dele é a tentação de resumir a análise a comparações com outros discursos e outras pessoas. Nas redes sociais, a exemplo do Facebook, isso já se tornou praticamente uma regra de etiqueta (falta de).

Os facebookianos vão longe em suas comparações, construindo verdadeiras genealogias que trazem numa ponta a pessoa que proferiu um determinado discurso e no início da genealogia figuras míticas ou de cunho religioso, incluindo Deus e o Satanás.

Um exemplo interessante do que estou dizendo é um diálogo, do qual reproduzirei trechos, extraído de um grupo de discussão de uma igreja evangélica. O diálogo é gerado em torno da possibilidade de mulheres assumirem o papel de pastoras nas Igrejas.

Uma das personagens do diálogo (Karla) apoia o pastorado feminino e começa a ser atacada por discordantes. Em um dado momento, uma das discordantes insere o alvo numa formação discursiva feminista, algo como:

- Feminista cristã?, pergunta a discordante sobre o pastorado feminino.
-Sim, com total equivalência, responde Karla .

A partir daí, os discordantes tentam construir a tese de que estabelecer uma relação entre os discursos feminista e cristão é um contrassenso e apelam para comparações:

- [Feminista cristã] É tipo judeu nazista ou negro racista.

Depois disso, começa a ser desfiado um rosário de insultos, mencionando que uma mulher que se denomina feminista cristã nunca abriu uma bíblia na vida e deve se arrepender de seus pecados e entregar todo o coração a Cristo.

Porém, o trecho mais interessante do diálogo é o seguinte:



O personagem Gabriel, com base na ideia de que existe uma equivalência entre pessoa e discurso, erige uma Formação Discursiva ilustrada pela ideia que ele possui a respeito de Frida Kahlo e insere Frida numa genealogia à qual pertencem as feministas, que ele considera um mal a ser combatido. 

Mesmo que não tenha sido intenção dele, sua estratégia discursivo-genealógica nos leva a supor que a árvore genealógica de Frida Kahlo e, portanto, das feministas, tem como ancestrais versões da mulher associadas ao Mal e, em última instância, ao pecado e ao demônio.

Essa estratégia discursiva, tão comum atualmente nas redes sociais, esforça-se por apagar a história das pessoas, seus sofrimentos, contradições, mas também prodígios e resplendor, reduzindo-as a um bloco discursivo que, muitas vezes, não tem sequer relação com o que estas pessoas viveram.

E, quando se anula a existência de uma pessoa, projetando-se nela formações discursivas, no mais das vezes cristalizadas e irrefletidas, abre-se caminho para a intolerância e a exclusão.

Os discursos de ódio, nas redes sociais, vêm dessa tentativa de converter a  riqueza da complexidade e da contradição humanas em avatares esculpidos a partir de retalhos de preconcepções selvagens.



Esta postagem foi escrita em homenagem ao aniversário de Ana Carolina Morais, que discorda de mim há décadas, ajudando-nos a manter uma amizade sólida como são as águas vivas do Espírito.

Também homenageia Karla Sabryna, feminista, cristã  e Karla Vidal, ambas filhas de Frida Kahlo.


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