24 de julho de 2015

A palavra antes do silêncio na primeira obra poética de Cristiano Ramos

Foto: André Nery/JC Imagem



Toda vez que escrevo sobre uma obra, tenho de lidar com alguns remorsos:

  • O de acionar o impiedoso backspace
  • O de começar a escrever antes de terminar a leitura da obra, como se esse gesto fosse um tipo de deslealdade para com as palavras ainda não lidas e que, talvez, não serão,



Mas, certamente talvez, toda palavra é como um átomo, ilhado no vazio da não-leitura. Essa é a primeira sensação que me latrocina quando leio os versos de Muito Antes da Meia-Noite. É o primeiro livro do escritor, jornalista e crítico literário, Cristiano Ramos, mas nos dá a impressão de que foi escrito a partir de testemunhos colhidos em épocas remotas, pré-míticas, onde libélulas gigantes ensaiam seu balé sobre véus de tensão superficial tecidos por H2O.

Não deixei de sentir um certo estranhamento, pois durante a leitura, as imagens que se iam construindo debatiam com imagens persistentes como a do Espírito Santo pairando sobre as águas do caos primordial nos primeiros minutos do Gênesis, onde “as palavras se dizem antes do silêncio” e morrem de véspera, prenunciando o “peso infinito” que o pecado original da poesia tenta, até hoje, anoitecer.

Uma escrita marcada por signos de tentativa como abundantes parênteses e o revezamento entre maiúscula e minúscula na abertura dos versos. E sob o signo da tentativa, o poeta (re)exclama (com verniz de insônia) enquanto faz da palavra caminhão de mudança para uma velha casa nova ou, até mesmo, um outro corpo: “Toda reforma descobre palavras” e “as palavras revestem as paredes, cortinas... do corpo”. Esta aura de labor, associada à constante mudança de domicílio, é, contudo, infiltrada por imagens de sonho, sono e pesadelo, gerando, por vezes, a perturbadora sensação de não haver tanta diferença entre o esforço hercúleo do workaholic pós-moderno e a prostração dos monges medievais afligidos pela acedia (um tipo de mix entre tristeza, preguiça e prostração).

Ao nascer e Nascer, em maiúsculo e minúsculo, ao longo das estrofes, o poeta exibe a fratura de uma escrita que, em parte, é – ou pretende ser - parto prematuro, e, em parte,  é – ou pretende ser - a densidade brotada nas têmporas dos arcanos maiores do Tarot, a exemplo do Eremita.

A influência confessa de William Blake deve explicar o gosto de Ramos por motivos fantasmagóricos que ele busca injetar no sonho de Alice no País das Maravilhas, donde importa a anulação das fronteiras entre espaço e tempo, entre cima e baixo, entre dentro e fora.

A ponta da pena de Ramos aponta para objetos que ameaçam se personificar, mas não chegam a ter voz, mantendo-se aquém dos domínios da Fábula. Por este motivo, os versos do poeta enxergam uma guerra entre molduras e portas e tornam os bumerangues capazes de morder.

Cristiano Ramos amarra e amordaça o armário que C. S. Lewis fez questão de escancarar.  Dito de outra maneira, na escrita do poeta, percebemos carícias de um último aceno da Fábula: reminiscências de um velho habitante da era de ouro, intruso em nossa era de barro recheado de bytes: este velho habitante, não sei bem se é o autor ou o leitor.

Extraindo criatividade das encostas do tédio, Cristiano conclui que a poesia é um trabalho de resistência, independentemente de o motivo poético ser a aventura do nascimento para a vida ou para a morte: “Tudo que ainda resiste ao seu limo espera nascimento ou resta morto”.

Serviço
Muito Antes da Meia-Noite
Autor: Cristiano Ramos
Editora: Confraria do Vento

Ano de Publicação: 2015

14 de julho de 2015

Oração caleidoscópica





Flora calidoscópica - Por Karla Vidal

Coincidência calidoscópica

Por Raón Mirnes

Às vezes, sentimos raiva das não-coincidências
Não coincide nosso desejo ardente de rever o amigo com o desejo ardente de ele nos ver
E a luz de alerta da inveja se acende porque sabemos que o desejo do amigo deixa de arder por nós para arder por outrem
Como um farol que se sente atraído por um afogado em detrimento do outro
Chegamos a ter medo do sucesso do amigo. Mas é só um medo de superfície
Que disfarça o medo de a glória revelar a ele que existem pessoas bem mais interessantes que nós: daquelas que sentimos vontade de encontrar de dois em dois meses  e não de ano em ano.
Mas, descubro que ele, ela,  ele-ela é meu amigo quando o limbo do esquecimento
Convida-me irresisitivelmente a entrar em clima de oração:
“Meu Deus, traz fogo pra matar a sede do meu amigo
Que a escassez da opulência não mine sua criatividade, bom gosto e que a inércia caia derrotada a seus pés
Daqui da lonjura silenciosa, meus olhos te enxergam vitorioso e meu coração te ama sem precisar do aval de promessas
Mesmo a pressa diária reserva pra ti votos monossilábicos de paz, amor, refúgio
Que todos os teus karmas se reconciliem com a razão de ser
Para que, ao nos reencontrarmos, haja tempo para sermos amigos desde criança
E que a pena e as vergonhas sejam derrotadas pelo estatuto do desarmamento,
À luz da derrocada dos mementos
E que meu amigo possa sempre acreditar que amar é possível com leves carícias de eternidade
E que compreenda quando eu pareço ser um carro a álcool, daqueles que demoram um pouco pra entrar no ritmo do calor humano"
Amém
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