Foto: André Nery/JC Imagem |
Toda vez que escrevo sobre uma obra, tenho de lidar com
alguns remorsos:
- O de acionar o impiedoso backspace
- O de começar a escrever antes de terminar a leitura da obra, como se esse gesto fosse um tipo de deslealdade para com as palavras ainda não lidas e que, talvez, não serão,
Mas, certamente talvez, toda palavra é como um átomo, ilhado
no vazio da não-leitura. Essa é a primeira sensação que me latrocina quando
leio os versos de Muito Antes da Meia-Noite.
É o primeiro livro do escritor, jornalista e crítico literário, Cristiano Ramos,
mas nos dá a impressão de que foi escrito a partir de testemunhos colhidos em
épocas remotas, pré-míticas, onde libélulas gigantes ensaiam seu balé sobre véus
de tensão superficial tecidos por H2O.
Não deixei de sentir um certo estranhamento, pois durante a
leitura, as imagens que se iam construindo debatiam com imagens persistentes
como a do Espírito Santo pairando sobre as águas do caos primordial nos
primeiros minutos do Gênesis, onde “as palavras se dizem antes do silêncio” e
morrem de véspera, prenunciando o “peso infinito” que o pecado original da
poesia tenta, até hoje, anoitecer.
Uma escrita marcada por signos de tentativa como abundantes
parênteses e o revezamento entre maiúscula e minúscula na abertura dos versos.
E sob o signo da tentativa, o poeta (re)exclama (com verniz de insônia)
enquanto faz da palavra caminhão de mudança para uma velha casa nova ou, até
mesmo, um outro corpo: “Toda reforma descobre palavras” e “as palavras revestem
as paredes, cortinas... do corpo”. Esta aura de labor, associada à constante
mudança de domicílio, é, contudo, infiltrada por imagens de sonho, sono e
pesadelo, gerando, por vezes, a perturbadora sensação de não haver tanta
diferença entre o esforço hercúleo do workaholic pós-moderno e a prostração dos
monges medievais afligidos pela acedia (um tipo de mix entre tristeza, preguiça
e prostração).
Ao nascer e Nascer, em maiúsculo e minúsculo, ao longo das
estrofes, o poeta exibe a fratura de uma escrita que, em parte, é – ou pretende
ser - parto prematuro, e, em parte, é –
ou pretende ser - a densidade brotada nas têmporas dos arcanos maiores do
Tarot, a exemplo do Eremita.
A influência confessa de William Blake deve explicar o gosto
de Ramos por motivos fantasmagóricos que ele busca injetar no sonho de Alice no
País das Maravilhas, donde importa a
anulação das fronteiras entre espaço e tempo, entre cima e baixo, entre dentro
e fora.
A ponta da pena de Ramos aponta para objetos que ameaçam se
personificar, mas não chegam a ter voz, mantendo-se aquém dos domínios da
Fábula. Por este motivo, os versos do poeta enxergam uma guerra entre molduras
e portas e tornam os bumerangues capazes de morder.
Cristiano Ramos amarra e amordaça o armário que C. S. Lewis
fez questão de escancarar. Dito de outra
maneira, na escrita do poeta, percebemos carícias de um último aceno da Fábula:
reminiscências de um velho habitante da era de ouro, intruso em nossa era de
barro recheado de bytes: este velho habitante, não sei bem se é o autor ou o
leitor.
Extraindo criatividade das encostas do tédio, Cristiano
conclui que a poesia é um trabalho de resistência, independentemente de o
motivo poético ser a aventura do nascimento para a vida ou para a morte: “Tudo
que ainda resiste ao seu limo espera nascimento ou resta morto”.
Serviço
Muito Antes da Meia-Noite
Autor: Cristiano Ramos
Editora: Confraria do Vento
Ano de Publicação: 2015
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