31 de dezembro de 2011

Ilustres poetas desconhecidos II - Um feliz Ano Novo desejado por Cerevenise Stür

Cena do filme "A noiva-cadáver", de Tim Burton


 Gostaria de deixar como mensagem de Ano Novo, aos queridos leitores do Acedia, o texto de mais um ilustre poeta desconhecido. Cerevenise Stür é uma poetisa teutã, do século XVI. Não tenho ideia de como sua poesia foi traduzida para o Português, pois, ao contrário do que fiz com Clistarco Sepúlveda, acabei fazendo a besteira de não anotar a pequena introdução sobre Stür, que havia no livro do qual tirei as poesias dos que apelidei de "Ilustres Poetas Desconhecidos". Em outras postagens, contarei mais sobre este livro.


A noiva - poema de Cerevenise Stür

Tenho medo não de enfrentar a tristeza, mas de ser desleal no combate contra ela
E ser leal é reconhecer que esta adversária também é nossa amiga,
Tudo o que ela quer é nos ensinar a cicatrizar
Os ódios almejam ser eternos
As amizades almejam ser eternas
O amor almeja ser eterno
E tudo que a tristeza quer é cicatrizar as feridas
Para que a eternidade, em vez de um corte aberto,
Seja uma corte de esperanças
O mau não está na tristeza
Está nas eternidades que não cicatrizam
O mau não está na eternidade
Está nos disfarces de eterno trajados pela escravitude
A tristeza é uma bela moça de passagem
Recolhe do caminho as frustrações
Escolta os passos da fé
E convence a dor a desamarrar os cabelos
E os cabelos da dor quando soltos ao vento e ao sol
Serão qu'outra coisa que não a vitória da esperança?
A tristeza se permite ir embora
E se encanta ao ver que o rastro de sua distância
É uma grinalda de anos novos
De sonhos puros
Para os sérios,
Para os raivosos
Para os mansos
Para os extrovertidos
O buquê que a tristeza atira para trás
É amor
Amor desobsessionado, puro como a liberdade e a intenção que esvazia o inferno
Que colhe milagrosamente
Sorriso nos desertos da seriedade
E respeito nas miragens da galhofa cínica
Todos, homens e mulheres
Hão de querer pegar esse buquê
E se casar
Com os sérios
Com os gaiatos
Com os tácitos
Com os tagarelas
E se casar
Com o ser humano
Com este Novo Mundo
Cuja graça se divide
Entre o que dele se descobre
E o que dele se encobre
Com esta invenção
Que é antiga como o vento
Que sopra teu rosto agora
E nova como o vento que soprou teu rosto outrora
E sem tempo como o vento que sopr... teu rosto amanhã?
E a tristeza, além do buquê, atira para trás também a aliança
Pois seu compromisso - monsieur, madame - é não ter endereço
Que não seja a promessa de cicatrizar
Os tempos que se escondem na alma
As almas que se revelam nos tempos.



Um Feliz Ano Novo a todos e todas :D

27 de dezembro de 2011

O que comprar com a Mega da Virada: Caruaru, Londres ou a distância?

CHARING CROSS STATION, London. People walking beside a stationary train on platform 4 with the station roof reflected in a puddle in the foreground. Date range 1960-1972. John Gay.



A pergunta do ano, cujo prazo de validade começa e finda no mês de dezembro: o que você faria se ganhasse a Mega (Sena) da Virada?

De saída, não gosto dessas perguntas com tempo condicional, apelidado em Português de Futuro do Pretérito. Meu cérebro trava quando tenta pensar sobre o que fazer num futuro que não existe e que, ainda por cima, depende de um “se”, que também não existe, para pensar em existir... Como hoje acordei de bom humor (mentira), deixo o futuro do pretérito para o irritante Montesquieu com suas brilhantes ideias e sua resplandecente falta de coragem de expô-las.

Adorei (mentira, somente gostei) uma resposta de um amigo do curso de Francês. Ele disse que dividiria os 170 milhões de reais da Mega da Virada em duas partes. Ficaria com 60 milhões e doaria os outros 110. Afinal, argumentou ele, qual a diferença de ser milionário tendo 60, 110 ou 170 milhões? 

Jovem lúcido. E acrescentou ele: “Com ou sem esse dinheiro, eu faria as mesmas viagens, tudo que já faço”. Esse meu amigo é rico, mas não foi o esnobismo que regeu esta frase.  Lucidez: os caminhos e as viagens continuam as mesmas com 60, 110 ou 170 milhões. 

Mas, diriam meus opositores, quem tem mais pode viajar mais e encurtar as distâncias com a potência dos veículos, dos aviões...

Não nos enganemos. David Harvey está certo ao dizer que a toda compressão do tempo-espaço está associada uma dilatação do tempo-espaço, ou vice-versa. Diminui a distância em quilômetros, aumenta a distância em saudade. Diminui a distância em saudade, aumenta a distância em tédio. Diminui a distância em espaço, aumenta a distância em preconceitos. Nem 170 milhões vezes 7 seriam capazes de desmentir este fato.

Em 1290, o rei da Inglaterra, Eduardo I, mandou construir uma cruz em memória de sua amada Leonor de Castilha (sua "chere-reine"). Hoje, o lugar desta encruzilhada é habitado pela estação Charing-Cross. A encruzilhada é o lugar em que distância e proximidade se tornam uma mesma pessoa. Charing-Cross representa o paradoxo do ganhador da Mega: pode comprar o transporte, mas não pode comprar nem a distância nem a proximidade

Quando me foi perguntado o que faria se ganhasse a Mega da Virada, respondi, depois de lutar durante 30 segundos para destravar meu cérebro... 

“Compraria um apartamento em Caruaru, um em Recife e outro em João Pessoa”.  Minhas compras entregaram minha alma de pobre numa bandeja de prata. Afinal, com 170 milhões eu poderia comprar Londres em francês, português, inglês e quíchua...

E, depois de comprar Londres, seria um senhor feudal, mas não conseguiria ser nem amigo do rei. Quem dirá rei...

Viajar muito, comprar moradas em lugares que não sejam os nossos... Independentemente das compras que façamos, mora em nosso sonho de ganhar a Mega da Virada um desejo de comprar um ingresso pra nossa própria fuga e um terreno para erguer nosso esconderijo. 

Merda de Londres! Quero mesmo é comprar a batcaverna. Mas tenho de comprá-la do Batman em pessoa! Melhor, comprarei o próprio Batman! Contudo, teria de ter cuidado para, no afã de comprar o impossível, não pagar o preço infame de escravizar os outros. Deste desejo sórdido não está imune a alma que anseia pela Mega da Virada.

Há ainda os desejos secretos, inconfessáveis, as mentiras que desejaríamos tornar verdade ao som do vil metal, das barras de ouro que compraríamos com 60, 110 ou 170 milhões. Sim, a primeira coisa a se fazer com a Mega da Virada é comprar barras de ouro, “que valem mais do que dinheiro”.

Mas há aqueles nobres, que ainda são capazes de se indignar com a 'Justiça' que pune os que, sem se dar conta, foram tragados pelos juros da conta de luz de 17 reais que não puderam pagar... Esta capacidade, sim, é uma mega virada. E valerá a pena ganhar a Mega da Virada para comprar a miserável capacidade de não mais se indignar?

Eu abro mão de todos os acúmulos da Mega, da Dupla, da Hiper, pelo amor do Nobre, que é capaz de se indignar seja em qual idioma for. Esse é meu desejo secreto de 2011.


P.S.: Posso mudar de ideia e ficar somente com um milhãozinho e comprar um apartamento em Londres com os rendimentos da Poupança? :D





24 de dezembro de 2011

Como teria sido o nascimento de Jesus se já houvesse as redes sociais?



Papel de parede Abraço


Muitos demonizam as redes sociais. "Coisa de preguiçoso, de depressivo, de quem não tem vida social, de fofoqueiro, de quem não cuida da própria vida...".

Mas, sempre vivemos na ponte aérea entre a vida concreta e a vida virtual. Na Idade da Pedra, virtual era o diálogo com a memória dos antepassados (será que não há algo em comum entre os tótens e a ferramenta "linha do tempo" do Facebook?).

O Cartesianismo inaugura a virtualidade do eu cogitante, isto é, da mente.

A Internet personifica o virtual em redes complexas.

Paranoias, obsessões, mentira, ilusão. Tudo isto sempre existiu tanto on line quanto em versão carne e osso. Nem a carne nem os ossos são garantia da verdade. E não há mentira maior do que a ideia de que a verdade se resume ao que tem massa e ocupa lugar no espaço. Não há mentira maior do que negar aos silêncios imateriais o lugar que eles, de fato, ocupam (ou esculpem) na estruturação da realidade.

A verdade é como um abraço! Mas no abraço verdadeiro não há somente carne e ossos. Há a virtualidade de todos os abraços que nos marcaram, de todos que desejaremos dar e de todos os que gostaríamos de ter dado. Um abraço verdadeiro contém incontáveis abraços: concretos e virtuais. Por isso, de certa maneira, duas pessoas que se abraçam abraçam humanidades inteiras.

Os átomos comprovam minha teoria. Troco qualquer definição já dada de átomo pela seguinte: átomos são abraços concretos que, virtualmente, contém outros abraços. Por este motivo, existem as ligações covalentes!

Esta postagem é, na verdade e na mentira, uma deixa para divulgar um vídeo feito pela empresa Excentric para simular como teria sido o nascimento de Cristo se, na época, a Internet e as redes sociais já fossem uma realidade.

O virtual pode isolar (e o material não?), mas também pode ser um convite a retornarmos a um mundo concreto menos amesquinhado, trazendo para ele o começo de abraços que a virtualidade nos ajuda a ensaiar. E, como sabem os atores, o ensaio é uma realidade vital, é cimento nas brechas do espetáculo finalizado.

A seguir, a história do natal digital. Aproveito para agradecer à professora Ângela Dionísio, por meio da qual soube da existência deste vídeo :)

21 de dezembro de 2011

O risco de o Natal ser esquartejado

Foto "Papai Noel está morto"

O Natal vem se tornando uma espécie de réu condenado ao esquartejamento. Seus braços e pernas, amarrados a valores conflitantes que, no coração, tornam-se fúria cavalar a dilacerar as gentes.

Amarrada ao braço esquerdo do Natal está a fúria cavalar do consumo, o deus falso que nenhum sacrificio humano conseguirá saciar.

As festas natalinas celebram o nascimento de Cristo, mas dialogam também com a celebração do sol e da luz, chamada, em culturas antigas, como a céltica, de sabá de Yule. Daí Yuletide ser uma das formas de se dizer Natal, na língua inglesa.

O problema é que, quando se converte o natal em época de consumo, troca-se a celebração do sol pela celebração do vampirismo. O consumo compulsivo é como o vampiro:

1. Solitário, deixa sua linha do tempo cheia de mortos à espera de um modismo que os ressuscite

2. Insaciável

3. Frio e sedutor

4. Um morto-vivo: o consumo compulsivo vive da sua própria morte. Pena que ainda parece longe o momento em que viver da própria morte será uma definição, no dicionário, para reciclagem.

O braço direito do Natal está amarrado à fúria cavalar da utopia, ao encanto das promessas. É triste quando a utopia se espelha no consumo. Nesse caso, a promessa se converte em dívida, juros e corrupção.

Mas, entenda-se. Estamos falando de fúrias cavalares. Consumo e utopia fazem parte do ser humano. Aquele é a imediação, esta, a mediação. Ambos são forças necessárias, mas que, em desequilíbrio, condenam o espírito à pena do esquartejamento.

A perna direita do Natal é puxada pela fúria cavalar da eternidade, a principal matéria-prima da publicidade. No Natal, queremos ser eternas crianças, como o eu-lírico da poesia "Versos de Natal", de Manuel Bandeira. A bem da verdade, o desejo de ser sempre criança não passa da vontade de ter sob controle a imagem no espelho. Tudo que a criança dentro de nós não quer ser é eterna.

Nem a criança e nem o velho, pois, desde que nascemos, estes dois dividem espaço em nossa alma. A criança não quer a eternidade, pois seu brinquedo predileto é a descoberta. O velho não quer a eternidade, pois do balanço entre o que se foi - a história - e o que permanece - a memória - tece a rede de sua sabedoria.

A fúria da eterna juventude é um rosto sem tempo.

A perna esquerda do Natal está amarrada à fúria cavalar do ceticismo. O ceticismo também é vital, é a desconfiança necessária para que a sedução do consumo, da utopia e da eternidade não atire a gente no abismo. O problema é que o ceticismo, quando em fúria, não se contenta em duvidar, querendo jogar fora a vitalidade do consumo, da utopia e da eternidade. O ceticismo furioso só suporta a companhia da solidão.

Não contente em ter crucificado o Cristo, a humanidade agora quer esquartejá-lo com suas fúrias de consumo, utopia, eternidade e ceticismo. Mas o lado mais franco do Natal é que, mesmo correndo o risco de ser esquartejado pelas fúrias, ele não desiste de conspirar para que a boa-vontade vença a morte.


Versos de Natal - Manuel Bandeira

Espelho, amigo verdadeiro
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.

13 de dezembro de 2011

Ilustres poetas desconhecidos I: Uma roupa para o coração

Rua Paris, em Santiago @ Chile - Foto by Marcelo Costa
Clistarco Sepúlveda foi um poeta do século XII, nascido em Túnis, no norte da África. Há dúvidas sobre como as poucas poesias que escreveu chegaram aos dias de hoje. Certamente, não se pode exigir originalidade da leitura deste poeta, visto que só temos acesso a traduções de seus poemas feitas para o galego . Quem quiser ler o texto original, terá de ser paciente e vasculhar na Internet como eu fiz :)

Independentemente da intervenção dos tradutores, continua pulsante a originalidade nos silêncios da poesia de Clistarco. A seguir, uma delas:



Uma roupa para o coração

Vesti no meu coração uma roupa pelo avesso
E na etiqueta dessa roupa estava escrito: sonho
O primeiro homem soprou a palavra-chave
Nas brechas do descompasso do meu bater cardíaco
E a vida abriu-me as portas do intraduzível

Onde minha alma pulsa
Está por uma atriz
A deixa para que meu toque alcance
O abraço que tu'alma reserva
Para minha esperança cansada
Na equação da desmedida,
Esperança cansada = ternura

E me atrevo a reviver dores
Para que as tuas se enxerguem mudas, invisíveis

Tua dor não está só
Empresto a ela a companhia da minha

Quando quiseres me visitar,
Ou bater a minha porta
Só pra dizer Vou Revoar
Espero-te com o peito aberto
À tua decisão
Às tuas intranquilidades
Às tuas indiferenças
Às tuas iras, o teu Irei
Desde que seja eu palco
De tuas idas e vindas
De algum de teus sonhos todos
Ou dos avessos que vestem teu coração.

8 de dezembro de 2011

Um presente das Casas Zé Araújo à Imaculada Conceição


Foto: Ana Carla – blog Misturação



Dedicado a Nossa Senhora, a Leda Nagle e a Diego Rivera

Certamente, haverá aqueles que me chamarão de sacrílego, mas quero homenagear Nossa Senhora da Conceição, descascavilhando a memória dos antigos comerciais das Casas José Araújo. 

E acredito que estes comerciais têm muito a ver com Nossa Senhora, pois não recorrem ao sagrado como se este fosse um espaço de imunidade ao mundo. Nem tratam o profano como réu de morte à espera das pedras recalcadas na alma dos neuróticos. 

Nos antigos comerciais da Zé Araújo, sagrado e profano se revezam, lembrando a desobediência civil e religiosa praticada por Jesus. Sagrado e profano podem conviver, assim como Cristo dividia a mesa com prostitutas e cobradores de impostos. Cristo demonstra que o sagrado que se cega diante do profano, tentando escondê-lo debaixo do tapete, converte-se em hipocrisia. E talvez este seja o principal pecado contra o qual Cristo lutou.

Lembremos como Jesus deixou de guardar o sábado, ferindo a lei judaica. Numa das vezes que fez isso, o fez para curar uma pessoa. Ao ser questionado pelos doutores da lei sobre este gesto, que representaria flagrante violação do sábado, Jesus dirá que no sábado não é proibido fazer o bem. Em outra ocasião afirma que o ser humano é senhor do sábado e não o contrário.

Nossa Senhora também desobedeceu a Lei. Ela, ao aceitar ser a mãe do Messias, correndo o risco de tornar-se mãe solteira, renegou a lei para dar forma ao sonho de uma humanidade redimida.

Nos casos descritos, a reflexividade da ética ganha espaço em detrimento da cristalização inquestionada da moral.

Os antigos comerciais da Zé Araújo não optam pela visão tradicional do sagrado: um sagrado fechado a vácuo e asséptico. Trata-se de um sagrado que dialoga com o profano, emprestando espiritualidade à vivência cotidiana e tomando emprestado dela paixão e alegria.

A seguir, alguns dos antigos comerciais das Casas José Araújo, incluindo a homenagem a Nossa Senhora da Conceição, padroeira da capital pernambucana. Infelizmente, só consegui vídeos com o áudio dos comerciais. A imagem ficará por conta exclusivamente da lembrança e da saudade.

Não deixe de ler O Japão também tem uma Nossa Senhora.

"Nossa Senhora da Conceição" - Elias Francione / Morro da Conceição, Saúde - Rio de Janeiro
Senhora da Conceição
Minha Mãe
Minha Rainha
Dai-me a vossa proteção
Minha querida madrinha
Vela acesa, subo o morro
Pra pagar minha promessa
Vou vestir azul e branco
Pra pagar eu tenho pressa
Hoje minha mãe querida
Faço essa louvação
Com o povo rendo graças
À Virgem da Conceição




 













6 de dezembro de 2011

Geografia na poesia (poesia na geografia) de Herbert Vianna

Arte de Julian Beever

Em um de meus momentos de flâneur do ciberespaço *, deparei-me com um pedido inquietante feito por um estudante num fórum de discussões do Yahoo: “Por favor me ajudem nesse trabalho, da geografia na musica, expliquem essas musicas.?

A maior parte das almas benevolentes que quiseram colaborar com o trabalho do referido pesquisador chamaram atenção para uma das mais conhecidas canções de Herbert Vianna: Alagados. Nesta música, o compositor menciona lugares que disputam a atenção das duas principais polaridades do olhar humano: ilusão e des-ilusão

O olhar ilusionista tende a silenciar as inadequações entre o que se vê e o que se acredita ver: é vacinado contra a ironia. E como tal tende a ser vítima de esperanças falsas, descritas pelo poeta como “esperanças que vêm das antenas de TV”. E também vítima da fé cega: vive-se da fé sem se saber mais o que é viver. A esperança da ilusão é cômoda.
Arte de Kurt Wenner

Já a polaridade da des-ilusão tende a detectar a ironia das situações.  No caso da música Alagados, a ironia é que os paraísos representados por lugares como Salvador, Rio de Janeiro e Kingston (Jamaica) abrigam extremos da miséria: a miséria dos que despudoradamente têm “tudo” e daqueles que têm muito menos que o mínimo necessário.  A esperança da des-ilusão é incômoda. Nasce dos cacos da des-ilusão, com sua força de resignificar os ideais.

Seria precipitado julgar a ilusão ou a des-ilusão como algo necessariamente bom ou mau. O olhar é análogo a um ímã, cujos pólos são igualmente necessários para manter o equilíbrio da força magnética. Nenhum olhar seria capaz de ser o tempo todo suspeição e ironia (des-ilusão), nem ser o tempo inteiro a plenitude ingênua da ilusão. Mas afirmar isso não descarta a responsabilidade de posicionar-se eticamente com relação aos vícios e virtudes da ilusão e da des-ilusão. 

Iludir-se também é uma forma não deixar o que há de melhor no ser humano esvair-se no rio dos detalhes sórdidos. E des-iludir-se, por sua vez, é uma forma de não ser obrigado a engolir a seco certezas que se afastam da convicção e aproximam-se da opressão.

Além da geografia humana, a geografia física é um dos afluentes que deságua na poesia de Herbert Vianna. Esta poesia geográfica (geografia poética) é - na música Lição de Astronomia - associada a elementos da mística cristã, e expressa por um eu-lírico à beira do niilismo.

Na música Tendo a lua, a referência astronômica torna-se uma crítica à burocratização dos sonhos e ao desencantamento das utopias. As instituições militares são tomadas como metáfora deste processo: “Tendo a lua, aquela gravidade onde o homem flutua... Merecia a visita não de militares, mas de bailarinos e de você e eu”.  


*Não, flâneur não é a palavra francesa para designar “flanelinha”. Detalhes do significado aqui.

Lição de Astronomia - Herbert Vianna

Tendo a Lua -  Os Paralamas do Sucesso



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