21 de dezembro de 2010

Oficina da alma, Zélia Duncan e o verbo empinar = Feliz Ano Bom!




As imagens descrevem o que podemos ver.

Começar uma mensagem com este tipo de tautologia: nada mais ofensivo, nestes tempos, em que novidades se estapeiam por uma parte que as caiba no latifúndio da atenção.

Mas a afirmação inicial não é tautológica. Existe uma categoria de imagem que funciona como aparato tecnológico da teimosia: da teimosia de dizer o indizível, de fazer ver o invisível.

Assim acontece com as tentativas de dar contornos imagéticos à alma. Como diz o antropólogo Norbert Elias, o ser humano moderno, sem nenhuma evidência, instituiu como imagem mais definitiva da alma o “dentro”. A alma é o que está dentro de nós. Um dentro que se aproxima do coração, enquanto órgão associado ao centro da vitalidade: ânima.

Mas a alma é também imaginada como horizonte que, do infinito (cuja face desconhecemos), flerta conosco, ao mesmo tempo que nos esnoba, deixando-nos a opção de nos contentarmos com migalhas de seus reflexos: a vida. Mas, como lembra Cristo, as migalhas, à sombra da fé, do amor e da esperança, são como pérolas preciosas, como grãos de mostarda que trazem em si a mais frondosa das árvores, o mais fértil dos reinos.

Chamou minha atenção, ao fazer uma pesquisa básica sobre a alma, no Google, que um dos links apontava para um site chamado Oficina da alma (www.oficinadaalma.com.br). Comecei, então, a pensar na evolução do repertório de imagens relativas à alma.

Biblicamente, há imagens lindas descrevendo a intangibilidade da alma. Ela é descrita como sopro de Deus plantado na argila que, moldada pelo criador, dá origem ao ser humano. É descrita também como ave que, a despeito do caos circundante, paira sobre as águas, projetando a ordem da natureza.

Espero que seja esse o sentido que se aproxima da expressão “oficina da alma”: o de acreditar que a alma é obra de um artífice cuja preocupação primeira é não a obra final, mas a arte de descobrir, constantemente, novas formas de se burilar, sem desprezar nem o compromisso calçado na ordem nem tampouco a criatividade incubada no caos. Mas também sem sucumbir aos apelos totalitários dessas duas instâncias.

No Hinduísmo, a alma é imaginada como um oceano cósmico cujas ondas vão e vêm, oscilando entre o Nirvana - a perfeita harmonia dos opostos - e a existência material, atravessada pelos desequilíbrios. Os seres vivos são a onda que quebra na praia, refletindo, em gotas esparsas, a plenitude oceânica. Diferente das ondas, porém, o espírito humano não morre na praia e, após o ciclo da existência material, é recolhido de volta ao grande oceano: o seio do Deus/Deusa supremo/suprema. A imagem hinduísta da alma é a de um ciclo sem começo nem fim.

Outra imagem bíblica da alma, presente no livro Eclesiastes, a descreve como uma espécie de pipa, ligada ao corpo por meio de um cordão de prata. É uma forma de representar o não-lugar da alma, que ora erra pelos desertos do infinito, do sonho, do inconsciente, ora retorna ao cárcere do interior, o “dentro” do ser. Se bem que o infinito também pode ser visto como cárcere e o interior do ser não deixa de ser um deserto. Em sendo assim, a alma também pode ser imaginada como um prisioneiro ou uma miragem: uma flor perpétua.

Torço para que a expressão “oficina da alma” não seja sintoma de que o imaginário a respeito da alma está se reduzindo ao de um carro que, de tempos em tempos, precisa de uma revisão mecânica. E, se for assim, que a imagem mecânica da alma esteja mais para o Professor Pardal do que para João de Dondis.

Mas existem imagens contemporâneas da alma que preferem a leveza da poesia cotidiana à engenharia automotiva. Exemplo disso é a música “Alma”, composta em 2002 por Pepeu Gomes e Arnaldo Antunes e posta em vôo pelas cordas vocais de Zélia Duncan. A música subverte a metáfora do “dentro”, do quarto escuro, e lança a profundidade da alma na epiderme, na superfície.

O peso da alma, relacionado ao porão do inconsciente, habitado por traumas e perversões, é trocado pela leveza, o riso e a simplicidade que, sem a obrigação de fincar raízes, flutuam na superfície, como o suor. Este deixa de ser tratado como algo nojento e passa a ser visto como imagem da despretensão. O sentir na pele toma o lugar da inatingível alma concebida por Platão.

Mas a superfície da alma, nesta música, não deixa de remeter ao vôo que permite ao ser o prazer de, vez por outra, escolher lançar-se em órbita e perder-se ao espiar a evidente, porém indescritível, paisagem do planeta azul.

Esse é o significado mais próximo que posso encontrar para o verbo empinar. O gesto de empinar uma pipa revive a imagem da alma contida no Eclesiastes, mas também a magia da mecânica, a paisagem da janela do astronauta, o suor da despretensão: orvalho (suor da natureza).

A empresa Pipa Comunicação condensou vários aspectos do repertório de imagens da alma na sua vídeo-mensagem de ano novo. Nela, vemos como, catalisada pela música Alma e por imagens do cinema, uma pérola posta na palma da mão se torna sinônimo do primeiro passo de uma criança e a imensidão da alma pode revelar-se tanto em um conjunto de cataratas como num simples chafariz.

Inspirado por Sérgio Porto (ou Stanislaw Ponte Preta), escolho como imagem da alma, para finalizar, a de um “Feliz Ano Bom” para você e todos os seus.




17 de novembro de 2010

Como diz meu pai, os códigos binários têm coração!

First Dance - Por Carolina Pires

Como diz meu amigo Felipe, é mais fácil domar um touro do que botar colírio nos olhos de uma criança com menos de 3 anos

Comecei esse post, depois de visitar o Facebook. Lá, vi lindas fotos de meu amigo Felipe Marques e sua família. Surpresa minha: ele já tem um filhinho com mais de um ano. Numa das fotos, li o comentário da fotógrafa Carolina Pires, que, assim como Felipe, fez comigo o fatídico curso de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Antes de adicionar Carolina no Face, visitei dois de seus sites. Como todos sabem, as imagens demoram mais para carregar na Internet do que o texto. Em sendo assim, a primeira coisa que apareceu no blog de Carolina Pires foi a frase: “E como diria Fernando Sabino, no fim tudo vai dar certo”. E não é que, à medida que as fotos apareciam, eram como um desdobramento secreto do sonho e do otimismo da poesia de Fernando Sabino!

Daí a ideia, não de um gênio, mas de um sonhador Aladim: vou fazer um post falando sobre Fernando Sabino: o que não deixará de ser um post falando sobre Carolina Pires: sobre Felipe Marques e família: e também sobre Juliana Holanda, minha querida amiga, que me deu de presente meu primeiro contato com a obra de Fernando Sabino.

Juliana acaba de lançar um livro sobre os desafios do jornalismo científico e ambiental, publicado pela editora alemã LAP, a partir de suas pesquisas de mestrado na City University (Londres). Em "The challenges of scientific and environmental journalism", ela constrói sua reflexão com base em entrevistas com especialistas da área que trabalham como editores de publicações como o Financial Times, The Guardian, The Independent e The Sunday Times.

Fui, então, buscar matéria-prima para esta postagem. E achei  “As melhores crônicas de Fernando Sabino”, guardado dentro da embalagem de presente (não gosto de jogá-las fora), numa estante em meu quarto. Arrodeando, um cheiro de saudade e de esperança - disfarçado de caixa de sabonete de erva doce, que havia ganho de uma pessoa junto a quem havia feito uma oração- compunha a aura do livro.

Dizem que a Internet não tem alma. Que é só dados, só eletricidade, que é só. Mas isto não deve ser toda a verdade, pois, em dez minutos tive saudade, esperança e encantamento, numa rápida visita às memórias de apenas três de meus amigos do Facebook.

Este deve ser um dos desafios da ciência e, portanto, do jornalismo científico: salvar a humanidade selada no cofre da objetividade científica. O jornalista de ciência cativa as pessoas na medida em que expõe as contradições e possibilidades do diálogo entre as duas vidas que habitam a Terra: a vida-matéria (vida-evidência) e a vida-propósito (vida-vidência).

Refiro-me ao coração que pulsa, cheio de analogia, conflito e espírito nos códigos binários, nos diagramas e nas estatísticas. É o cheiro de saudade, de erva-doce, de amizade. Ou, como diria um repórter do Líbano que vi ser entrevistado no Roda Viva: "olho as montanhas banhando-se no horizonte e não consigo pensar nelas como mero aglomerado de moléculas. Isso me faz acreditar em Deus".

Acho que muita ou pouca gente que ler esse texto vai me acusar de tolice. Mas, deixar-me levar pela poesia é um crime pelo qual desejo ser condenado por unanimidade e cuja pena exijo que nunca prescreva.

O cheiro de saudade-natureza, de simplicidade calçada em elegância e refletida em perspicácia. Isso é um pouco da conexão improvável, mas merecida entre a poesia de Fernando Sabino, a fotografia de Carolina Pires, o recente livro de Juliana Holanda e a alegria de meu amigo Felipe e sua família.


Alguns trechos de “Como Dizia Meu Pai”, de Fernando Sabino:


JÁ SE TORNOU HÁBITO MEU, em meio a uma conversa, preceder algum comentário por uma introdução:

— Como dizia meu pai...

Nem sempre me reporto a algo que ele realmente dizia, sendo apenas uma maneira coloquial de dar ênfase a alguma opinião.

De uns tempos para cá, porém, comecei a perceber que a opinião, sem ser de caso pensado, parece de fato corresponder a alguma coisa que Seu Domingos costumava dizer. Isso significará talvez — Deus queira — insensivelmente vou me tornando com o correr dos anos cada vez mais parecido com ele. Ou, pelo menos, me identificando com a herança espiritual que dele recebi.

Não raro me surpreendo, antes de agir, tentando descobrir como ele agiria em semelhantes circunstâncias, repetindo uma atitude sua, até mesmo esboçando um gesto seu. Ao formular uma idéia, percebo que estou concebendo, para nortear meu pensamento, um princípio que se não foi enunciado por ele, só pode ter sido inspirado por sua presença dentro de mim.

— No fim tudo dá certo...

Ainda ontem eu tranqüilizava um de meus filhos com esta frase, sem reparar que repetia literalmente o que ele costumava dizer, sempre concluindo com olhar travesso:

— Se não deu certo, é porque ainda não chegou no fim.

(...)

[Meu pai] Tinha por hábito emitir um pequeno sopro de assovio, que tanto podia ser indício de paz de espírito como do esforço para controlar a perturbação diante de algum aborrecimento.

— As coisas são como são e não como deviam ser. Ou como gostaríamos que fossem.

Este pronunciamento se fazia ouvir em geral quando diante de uma fatalidade a que não se poderia fugir. Queria dizer que devemos nos conformar com o fato de nossa vontade não poder prevalecer sobre a vontade de Deus - embora jamais fosse assim eloqüente em suas conclusões. Estas quase sempre eram, mesmo, eivadas de certo ceticismo preventivo ante as esperanças vãs:

— O que não tem solução, solucionado está.

E tudo que acontece é bom — talvez não chegasse ao cúmulo do otimismo de afirmar isso, como seu filho Gerson, mas não vacilava em sustentar que toda mudança é para melhor: se mudou, é porque não estava dando certo. E se quiser que mude, não podendo fazer nada para isso, espere, que mudará por si.
(...)

O texto acima foi publicado originalmente no livro "A Volta por Cima" e extraído de "Fernando Sabino - Obra Reunida, Vol. III", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1996, pág.611.


O conteúdo entre colchetes é acréscimo meu a fim de preservar a coerência textual.


Autora da foto: Carolina Pires - www.carolinapires.com.br

16 de novembro de 2010

Violência contra mendigos e policiais, a dupla face do anonimato e o temível exército das benditas Virgens Marias Negras

Virgem Negra de Czestochowska.
Fonte das imagens desta postagem: Wikimedia Commons


Uma senhora alagoana, mendiga e de idade avançada, não se lembrava de quem, como, quando ou por quê. Só se lembrava de ter sido atingida por uma pedrada na cabeça enquanto fazia uma pausa em sua jornada pelas ruas. Ela escapou de ser a trigésima terceira moradora de rua a ser exterminada em Alagoas este ano.

Na cidade de São Bernardo do Campo, uma câmara de vigilância fornece praticamente o lead completo de uma matéria sobre a violência contra um policial: um rapaz, de vinte e quatro anos e com planos de se casar em breve. Poderia ter matado o ladrão, mas não o fez. E, ao tentar imobilizá-lo, caiu no chão, sendo morto, a seguir, com vários tiros.

Mendigos e policiais estão sendo vítimas de um estranho mecanismo de identificação. Criminosos estão formando uma auto-imagem que combina anonimato e brutalidade: sendo a brutalidade uma estratégia para compensar a frustração e criar um ilusório e impossível equilíbrio para a balança da impunidade.

Mas, o anonimato não é necessariamente covarde. Grandiosas demonstrações de ética e altruísmo elegem como personal stylist o anonimato. A dupla face do anônimo é bem representada pela Virgens Marias Negras.

Estava enganado ao pensar que Nossa Senhora Negra era patrimônio exclusivo do Brasil. A Mãe Aparecida foi encontrada no fundo de um rio. Contudo, outras madonas negras também vieram de profundezas como descreve a wikipedia: achadas em catacumbas, criptas e abismos.

Estas expressões de Nossa Senhora, ao representar a esperança gerada no ventre das profundezas, subvertem o senso comum que associa o "de profundis" ao inferno. Outra ironia é o fato de as imagens de madonas negras aparecerem em lugares de etnia predominantemente caucasiana, a exemplo de Nossa Senhora de Altötting, na Baviera. Na França, ocorrem diversos casos, como N. S. de Rocamadour, N. S. dos Anjos em Boulogne-sur-mer, N. S. dos Milagres em Orléans, de São Vitor em Marselha, além da Virgem Negra de Toulouse.

As madonas negras podem ser relacionadas à proteção das minorias, como, no caso de Nossa Senhora Aparecida, eleita defensora dos escravos. Por extensão, são concebidas como defensoras dos anônimos, dos esquecidos.

Maria, que, biblicamente, é descrita como mulher de dores e silêncio, que guarda tudo o que lhe acontece, meditando com amor, é também simbolizada como mulher vestida de sol, um temível exército em ordem de batalha. Representa os "soldados" sem armas, que lutam, no silêncio, pelo resgate dos esquecidos, dos que, ao olhar dos holofotes da mídia parecem ter morrido em vão.

As mães em busca dos seus filhos desaparecidos, as que tiveram seus filhos assassinados, a exemplo das mães da Candelária, no Brasil, cabem na noite estampada no manto da Virgens Negras. Talvez não seja por acaso que uma das madonas negras seja a Virgem negra da Candelária, presente tanto na Colômbia quanto em Tenerife.

A imagem de Nossa Senhora Aparecida foi achada com o corpo separado da cabeça, precedendo o milagre da multiplicação dos peixes. Representa, dessa forma, o sopro de esperança e fecundidade que vence a tortura e a violência fundadas na exploração de um ser humano por outro.

Esta postagem é uma tentativa de orar – e, portanto, de denunciar - pedindo a intercessão das Virgens Negras, advogadas de defesa da justiça anônima e advogadas de acusação do anonimato covarde e cruel, veiculado por câmeras escondidas, pelo bullying (tanto presencial quanto virtual), pelo terrorismo e outros tipos de violência rotuláveis, mas as quais não se é capaz de nominar.


Virgem Negra na Áustria.


Nossa Senhora de Altötting.

Nossa Senhora de Aparecida



6 de novembro de 2010

So pq Mario Frias curte Luis Miguel ele é cafona? Os cafonas são defensores do meio-ambiente

Charge do blog Jornal da Besta Fubana: uma gazeta da bixiga lixa


A pergunta que dá título a esse post foi feita por minha amiga Ivana Perobelli, no twitter.

Seria possível dizer que cafona é quem curte expressões culturais antiquadas. Mas o sentido de "antiquado" tem sido reformulado nesta época de desenvolvimento sustentável. A lógica dos tempos modernos - de a cada minuto recomeçar do zero, deixando tudo para trás - revelou-se um impulso por gerar lixo sem saber onde enfiá-lo.

Em sendo assim, os adeptos de ondas retrô, vintage, pastiche (ou outro nome que se queira dar), como o foram os hippies e são, atualmente os hipsters (se bem que esse rótulo surge nos anos 40) são, consciente ou inconscientemente, incentivadores da reciclagem.

Embora, seja possível dizer também que existem os nostálgicos de vitrine que se esbaldam na onda consumista do novo-velho, a exemplo das novas coleções de jeans surrado ou das roupas de couro premeditamente envelhecido, além dos tecidos calculadamente esgarçados. Trata-se de uma dose de masoquismo tomada por Alice antes de se olhar no espelho.

A despeito de gostar ou não de Luís Miguel, respondo a pergunta do título com um novo questionamento: em vez de condenar os cafonas e exaltar os antenados, não é mais válido pensar como, em nossas atitudes, dialogam ou discutem tanto a tirania da novidade quanto a ditadura da nostalgia?

Não quero ser desanimador ou colocar o leitor na corda bamba do impasse. Só gosto de pensar sobre os sonhos e terrores secretos, escondidos nas convicções dos que acusam os outros de cafona ou de outros rótulos que, oportunamente, abordaremos.

O novo e o velho são irmãos na defesa do meio-ambiente, que não se restringe à biomassa, mas do qual faz parte também o artifício: a cultura.

Como Guilherme Arantes, "hoje quero a companhia preciosa do amor, o velho amor. Roupa leve, colorida com a aura do amor, o novo amor. A atmosfera limpa com essência do amor, o puro amor. E um pôr-de-sol dourado, que conheço quando estou apaixonado".




30 de outubro de 2010

As andorinhas voltaram e eu também voltei

Por Camila Feitosa

Melancolia não-arrogante e comprometida com a esperança sertaneja de acreditar que amanhã será um novo dia. A música do trio parada dura tem, por vezes, tom de tristeza, mas uma tristeza que faz parte do processo de cicatrização da vida ferida que deseja ardentemente continuar vivendo.


10 de agosto de 2010

A polêmica entre plágio e intertextualidade no caso de amor entre Fagner e Cecília Meireles

Cecília Meireles 

Se me perguntassem o que eu entendo por plágio, responderia por meio de uma metáfora fundada numa situação concreta. Refiro-me a algo ocorrido quando estava no início da faculdade de Jornalismo.

Ao cursar a disciplina de Introdução à Fotografia, amigos de turma e eu fizemos um ensaio, fotografando o Recife Antigo. Na época, o processo de revelação química ainda sobrevivia, vindo a ser logo substituído pela digitalização.

No laboratório de revelação, havia varais nos quais pendurávamos as fotos recém-nascidas, à espera de secagem.

Ana Carolina, até hoje das melhores amigas que é possível ter, alertou-me que um sem-vergonha que estudava conosco rondava o varal, pensando em voz alta: “Não fiz o ensaio que a professora mandou. Vou pegar uma dessas fotos que estão no varal e apresentar como sendo de minha autoria”.

Esse rapaz não tinha percebido que, em meio àquela quase escuridão total, Ana ouviu o que ele dissera. Sem pestanejar, a moça denunciou o caso à professora. Mas, as falhas da justiça brasileira revelam-se não só nas altas esferas do Judiciário. A professora puniu o delito presenteando o “malandro” com a nota 4,5. Enquanto isso, eu tirei 9,5.

Lamúrias à parte, este caso ilustra bem o que entendo por plágio. Plágio é catar as ideias de alguém, penduradas no varal da existência: ideias estas frutos de inspiração, privações, sacrifício, isto é, da criatividade. Nesse processo, de forma torpe, “apagam-se” as marcas de autoria, apropriando-se, indevidamente, do mérito criativo de outras pessoas.

O Caso Cecília Meireles

Este preâmbulo, versando sobre o plágio, é para lembrar uma polêmica que terminou dez anos atrás e que envolveu a dificuldade de se reconhecer a fronteira entre o plágio e a intertextualidade.

No site do cantor Raimundo Fagner (http://www.raimundofagner.com.br/cecilia_meireles.htm), são descritos todos os passos do chamado “Caso Cecília Meireles”, referente ao processo judicial ao qual respondeu o cantor e sua gravadora, entre fins de 1970 e o ano 2000, pela acusação de plagiar a poetisa autora de Romanceiro da Inconfidência.

Na época do processo, não havia a tendência atual de só dar início a ações judiciais após falharem as tentativas de acordo entre as partes. Acredito que, no contexto atual, o processo judicial referente ao “Caso Cecília Meireles” teria sido desnecessário.

Com base na noção de intertextualidade, o inelutável diálogo que qualquer texto faz com outros, é claramente perceptível que a música Canteiros, interpretada por Raimundo Fagner, não é um plágio.

Na época de início do Caso Cecília (1977), a noção de intertextualidade, formulada por Julia Kristeva, era uma criança pequena, de apenas nove anos. Grande parte dos conceitos das ciências humanas leva décadas para ser incorporado no repertório dos círculos de discussão acadêmica.

Para influenciar a vida prática, então, o tempo é maior ainda. Basta pensarmos que, até hoje, as noções de polifonia e dialogismo – formuladas por Bakhtin e inspiradoras de Julia Kristeva – geram forte polêmica em áreas diversas como Linguística, Filosofia, Psicologia e Comunicação Social.

No Brasil, a noção de intertextualidade só começa a popularizar-se por volta de 2000, retomada por pensadores como a linguista Ingedore Koch.

Coincidente ou providencialmente, o ano em que, por meio de um acordo com as filhas da poetisa, tem fim o Caso Cecília. Nesse ano, Fagner regrava Canteiros numa gravação ao vivo.

Na música Canteiros, Fagner não comete plágio. Ele não roubou as ideias que Cecília Meireles pendurou no varal da existência e não trabalhou no sentido de ocultar a autoria dos versos da poetisa. Ao contrário, Fagner realçou a presença de Cecília ao emprestar-lhe tocante melodia.
O que Fagner fez é um caso de intertextualidade implícita, mais popularmente conhecida como paráfrase. Em contraste com a intertextualidade explícita, cujo maior exemplo é a citação, a implícita está presente o tempo todo nas paródias, nas versões e traduções: é encontrada em produções culturais que vão de Ariano Suassuna a Stephanie Crossfox.

Além disso, o próprio Fagner reconhecia, ao fazer shows, que Cecília Meireles é co-autora de Canteiros. Atualmente, creio eu, Fagner e sua gravadora, responderiam por negligência, por não citar Cecília Meireles no encarte do disco, e não por plágio.

Não se pode esquecer que em Canteiros, Fagner homenageia seu amigo e companheiro de composições (como a linda canção Mucuripe), Belchior, como também Tom Jobim.

Uma marca do plágio é roubar do plagiado não o texto em si, mas sim a possibilidade de que dele seja reconhecida a autoria. Coisa que acontece, por exemplo, com determinados “autores” de novelas brasileiras que fazem fama em cima da corveia anônima de escritos depositados na Biblioteca Nacional.

Na arte de Fagner, assim como na Benjamin e de Joyce, a noção de intertextualidade cometeu o pecado de ser vanguarda. Mas, sem este tipo de pecado, a arte ficaria presa no paraíso da mediocridade.


Eis, a título de curiosidade e comparação com a letra cantada por Raimundo Fagner, o poema ''Marcha'', original de Cecília Meireles (Fonte: http://www.raimundofagner.com.br/cecilia_meireles.htm):

''Quando penso no teu rosto, fecho os olhos de saudade
Tenho visto muita coisa, menos a felicidade
Soltam-se meus dedos tristes
dos sonhos claros que invento
Nem aquilo que imagino
já me dá contentamento


Gosto da minha palavra pelo sabor que me deste
Mesmo quando é linda, amarga
Como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga, é tudo que tenho
entre o sol e o vento.
Meu vestido, minha música,
meu sonho, meu alimento.''


Música de Belchior, citada em Canteiros:


NA HORA DO ALMOÇO

No centro da sala,
diante da mesa,
no fundo do prato,
comida e tristeza.
A gente se olha,
se toca e se cala
E se desentende
no instante em que fala.

Cada um guarda mais o seu segredo,
sua mão fechada
sua boca aberta
seu peito deserto,
sua mão parada,
lacrada,
selada,
molhada de medo.

Pai na cabeceira: É hora do almoço.
Minha mãe me chama: É hora do almoço.
Minha irmã mais nova, negra cabeleira...
Minha avó me chama: É hora do almoço.

... E eu inda sou bem moço
pra tanta tristeza.
Deixemos de coisas,
cuidemos da vida,
senão chega a morte
ou coisa parecida,
e nos arrasta moço
sem ter visto a vida
ou coisa parecida aparecida
(essa é a parte citada por Fagner).




Canteiros
Fagner, baseado no poema "Marcha" de Cecília Meirelles
Músicas incidentais :
Na hora do almoço (Belchior), Águas de Março (Antonio C. Jobim)
dos discos "Manera Frufru Manera" e "Ao Vivo - Duplo" (Fonte: http://www.fagner.com.br/letras/L_canteiros.html)


Quando penso em você
Fecho os olhos de saudade
Tenho tido muita coisa
Menos a felicidade

Correm os meus dedos longos
Em versos tristes que invento
Nem aquilo a que me entrego
Já me dá contentamento

Pode ser até manhã
Cedo, claro, feito o dia
Mas nada do que me dizem me faz sentir alegria

Eu só queria ter do mato
Um gosto de framboesa
Pra correr entre os canteiros
E esconder minha tristeza
E eu ainda sou bem moço pra tanta tristeza ...
Deixemos de coisa, cuidemos da vida
Senão chega a morte
Ou coisa parecida
E nos arrasta moço
Sem ter visto a vida

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um toco sozinho ...
São as águas de março fechando o verão
É promessa de vida em nosso coração


6 de agosto de 2010

Mais algo sobre a acedia

Acedia - Por ~jvg246, do blog DevianART

Fraqueza nos joelhos, insônia, dores nos membros, mal-estar generalizado. Se só forem estes os sintomas, você pode estar com dengue ou com a doença que os médicos incompetentes mais admiram: a virose.

Falta de atenção, tédio, insatisfação com a vida. Isto pode significar, dentre outras coisas, que a pessoa está apaixonada por alguém que não dá a mínima para ela.

Porém, se aos sintomas dos dois parágrafos acima se somam a negação do movimento, do crescimento emocional, da pro-atividade. E se esta soma é “motivada” por uma preguiça que o indíviduo sente não somente no corpo, mas na alma: então, provavelmente a pessoa está sendo vitimada pela acídia ou acedia.

A acedia, no período medieval era listada entre os sete pecados capitais (hoje em dia, é mais comum falar-se na preguiça). Ela era vista como um mal que afligia particularmente as pessoas de vida solitária e reclusa como os monges.

A solidão, contudo, não é o elemento principal da acedia. Ela tem origem, segundo São Tomás de Aquino, quando o espírito humano deixa de crer na própria fé, quando ele, nas palavras da psicóloga Silvana Martani, sente-se incapacitado de cumprir seus objetivos e realizar seus sonhos.

O texto em que Silvana Martani aborda o tema da acídia está disponível no site administradores.com.br (http://www.administradores.com.br/informe-se/informativo/acidia-setimo-pecado-capital/7345/).


O título Acedia


O título deste blog pode gerar algumas conclusões erradas. Geralmente os títulos são encarados como representações de verdades das quais o coração do escritor seria admirador ou devedor. No caso do blog Acedia, ocorre algo diferente. O título é uma ironia. Na verdade, trata-se de um combate à acedia.

Lembram-se de um filme, protagonizado por Júlia Roberts, chamado Dormindo com o Inimigo? O blog poderia muito bem se chamar Dormindo com a acedia. Portanto o título Acedia é uma maneira de expor a nudez de um inimigo e não de homenageá-lo.

Não se pode esperar que toda forma de enfrentar a acedia resuma-se a publicar no orkut sorrisos photoshopados e depoimentos espelhando um otimismo insípido, como se o mundo fossem só as cores de uma felicidade plena que, na vera, não passa de uma cobrança cruel e de um quadro incolor.

Lembro uma passagem da II carta aos Coríntios,capítulo 7, versículo 10, em que São Paulo fala sobre dois tipos de tristeza:

"Pois a tristeza segundo Deus produz o arrependimento e, assim, leva à salvação. E isso ninguém lamentará! Mas a tristeza segundo o mundo produz a morte".

O pensamento de Paulo é importante para alertar que a tristeza faz parte de nossa condição de seres limitados, que devem reconhecer que precisam do arrependimento, precisam enfrentar o fato de que serão vítimas de frustrações. Isto nada mais é do que o reconhecimento de que fazemos escolhas, mas não temos total controle sobre os resultados. Enfim, não somos onipotentes.

Neste sentido, o título do blog refere-se ao enfrentamento da tentação que temos de achar que é simples e óbvio categorizar as pessoas entre felizes e infelizes. E, assim, têm início as intermináveis guerras orkutescas pra ver quem é mais feliz ou pra ver quem é mais melancólico. Desta forma, caricaturas da felicidade e da tristeza, carregadas de efeitos especiais cada vez mais sofisticados, disfarçam o desejo dos internautas de pertencer ao Movimento Eu Sou Cultural (Mesc).

Quando este blog se propõe a desbravar o potencial crítico e artístico da tristeza, não está fazendo apologia à depressão. Até porque depressão não é acedia. Depressão é um estado psicossomático, sujeito à terapia e ao auxílio medicamentoso. A acedia revela-se em sinais somáticos, mas seu fundamento é espiritual. Ou seja, ao falar sobre a acedia, destaca-se o diálogo entre as dimensões natural e sobrenatural, entre fenômeno e númeno.

“Portanto, se eu vos escrevi, não foi por causa do ofensor, nem por causa do ofendido. Foi para provocar entre vós uma clara manifestação da vossa solicitude por nós, diante de Deus. Isso nos consolou” (II Coríntios, 7, 12-13).

Logo, a solicitude está longe de ser altruísmo romantizado. Pauta-se no reconhecimento de que mesmo quando aceitamos os reinos do mundo inteiro que nossos demônios nos oferecem, não deixamos de ser, a exemplo do Cristo tentado, peregrinos famintos vagando pelo deserto e à beira de abismos. Mas, mesmo assim, Cristo teve coragem de optar por não duvidar da fé.

As manifestações culturais rotuladas de depressivas ou melancólicas no mais das vezes nos mostram a necessidade de estarmos atentos para a cilada que os discursos sobre a felicidade e sobre a tristeza podem nos armar.

Temos regurgitado no Hiperurânio inodoros modelos de felicidade e, como títeres de nós mesmos, deixamo-nos guiar por eles. A felicidade passa a ser entendida como acordo tácito com tudo a nossa volta. Desfigura-se a noção de comunhão universal com o cosmos, transformando-a em pacto inconteste com o repertório das instituições (mercado, Igreja, universidades e as demais).

Não sei definir o que é a felicidade ou a tristeza verdadeira, mas sei que é possível refletir sobre os limites que os discursos (escritos, imagéticos e de outras naturezas) acerca da felicidade e da tristeza apresentam. Este é um dos objetivos desse blog.

Portanto, não se pode falar em apologia à acedia. Como explica Walter Benjamin, a acedia se funda na empatia para com os vencedores. E este blog cultiva simpatia pelos vencidos.

Antes de outro mal entendido, outra explicação. Não queremos louvar a derrota. Ao falarmos de simpatia pelos vencidos, estamos nos referindo àqueles que, por força da ideia de vitória cultivada por detentores de poder e status, são rotulados de fracassados ou, na “melhor” tradição americana, de losers. Em sendo assim, os vencidos que admiramos não são nem derrotados nem vencedores: são um e outro: entrelugares (usarei essa palavra, por enquanto e por não achar outra melhor no momento).

E este entrelugar será interpretado com acedia pelos que acham que a felicidade e a tristeza são o trem único da existência, o último cavalo selado, a última coca diet do deserto. Para outros, espero eu, ser um entrelugar pode significar a percepção de que felicidade e tristeza não se esgotam em nenhuma receita ou fórmula.

Tudo em palavras parece fácil. Então não nos guiemos pela aparência das palavras. Discutamos, dialoguemos com elas e as silenciemos e as estilhacemos com a vida.

Creio que um começo para o enfrentamento da acedia é não encarar o desespero e a fé como água e óleo. Se, no desespero, acreditamos que não somos dignos de ter fé, a acedia se instala de com força. Mesmo que a fraqueza nos joelhos, a insônia e o mal-estar digam o contrário, somos dignos de ter fé, mesmo quando estamos desesperados.

2 de agosto de 2010

As almas, os sertanejos e a lembrança de Luiz Gonzaga


Dizem que quem reza pelas almas só morre às segundas-feiras (dia das almas). Não sei qual era o dia da semana em 2 de agosto de 1989. Mas hoje, segunda-feira, faz 21 anos a partida deste músico cuja melodia traz o cheiro da hora do Ângelus e do silêncio orante pelas almas.

Nas suas canções, Luiz Gonzaga fez da interjeição uma estrela de primeira grandeza. Consegue inflamar o elo que existe entre a alma dos jovens internautas e a dos retirantes nordestinos. Por força da musicalidade deste pernambucano, o lamento nordestino tem impresso em seu inconsciente a sonoridade nômade de ciganos, judeus e mouros.

Êxodo, lamento e prece aproximam a música de Luiz Gonzaga do quadro Angelus Novus (figura acima), de Paul Klee, retratando um anjo que, com as asas, tenta conter uma tempestade que o varre para longe do paraíso. Os links, na Internet, não deixam de ser novas versões da pintura de Klee: ora representando o paraíso perdido, ora os ventos impetuosos: façam suas apostas! Por sua vez, o esquelético anjo de Paul Klee, com asas esculpidas na Ave-Maria sertaneja, sobrevoa a arte de Cândido Portinari.

A vídeo-colagem, de Rocir Santiago, postada abaixo, parece compartilhar das ideias deste artigo.

No nordeste, fala-se em diferentes tipos de almas: vaqueiras, tíbias, apressadas, almas necessitadas, almas no fogo do purgatório, almas benditas, santas almas, almas lembradas e almas esquecidas.

A música de Luiz Gonzaga é amiga dessas almas e abre as feridas que linkam o inferno de Dante, as reflexões de Walter Benjamin, o sertão nordestino e o ciberespaço.

Uma dica: quem estiver com pressa para alcançar uma graça pode rezar para as almas apressadas. Quem precisa reencontrar alguém, reze para as almas esquecidas. E quem quiser morrer na segunda-feira, reze para todas elas.

Ave-Maria sertaneja

Quando batem as seis horas
de joelhos sobre o chão
O sertanejo reza a sua oração
Ave Maria
Mãe de Deus Jesus
Nos dê força e coragem
Pra carregar a nossa cruz
Nesta hora bendita e santa
Devemos suplicar
A Virgem Imaculada
Os enfermos vir curar
Ave Maria
Mãe de Deus Jesus
Nos dê força e coragem
Pra carregar a nossa cruz (2X)

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