21 de dezembro de 2010

Oficina da alma, Zélia Duncan e o verbo empinar = Feliz Ano Bom!




As imagens descrevem o que podemos ver.

Começar uma mensagem com este tipo de tautologia: nada mais ofensivo, nestes tempos, em que novidades se estapeiam por uma parte que as caiba no latifúndio da atenção.

Mas a afirmação inicial não é tautológica. Existe uma categoria de imagem que funciona como aparato tecnológico da teimosia: da teimosia de dizer o indizível, de fazer ver o invisível.

Assim acontece com as tentativas de dar contornos imagéticos à alma. Como diz o antropólogo Norbert Elias, o ser humano moderno, sem nenhuma evidência, instituiu como imagem mais definitiva da alma o “dentro”. A alma é o que está dentro de nós. Um dentro que se aproxima do coração, enquanto órgão associado ao centro da vitalidade: ânima.

Mas a alma é também imaginada como horizonte que, do infinito (cuja face desconhecemos), flerta conosco, ao mesmo tempo que nos esnoba, deixando-nos a opção de nos contentarmos com migalhas de seus reflexos: a vida. Mas, como lembra Cristo, as migalhas, à sombra da fé, do amor e da esperança, são como pérolas preciosas, como grãos de mostarda que trazem em si a mais frondosa das árvores, o mais fértil dos reinos.

Chamou minha atenção, ao fazer uma pesquisa básica sobre a alma, no Google, que um dos links apontava para um site chamado Oficina da alma (www.oficinadaalma.com.br). Comecei, então, a pensar na evolução do repertório de imagens relativas à alma.

Biblicamente, há imagens lindas descrevendo a intangibilidade da alma. Ela é descrita como sopro de Deus plantado na argila que, moldada pelo criador, dá origem ao ser humano. É descrita também como ave que, a despeito do caos circundante, paira sobre as águas, projetando a ordem da natureza.

Espero que seja esse o sentido que se aproxima da expressão “oficina da alma”: o de acreditar que a alma é obra de um artífice cuja preocupação primeira é não a obra final, mas a arte de descobrir, constantemente, novas formas de se burilar, sem desprezar nem o compromisso calçado na ordem nem tampouco a criatividade incubada no caos. Mas também sem sucumbir aos apelos totalitários dessas duas instâncias.

No Hinduísmo, a alma é imaginada como um oceano cósmico cujas ondas vão e vêm, oscilando entre o Nirvana - a perfeita harmonia dos opostos - e a existência material, atravessada pelos desequilíbrios. Os seres vivos são a onda que quebra na praia, refletindo, em gotas esparsas, a plenitude oceânica. Diferente das ondas, porém, o espírito humano não morre na praia e, após o ciclo da existência material, é recolhido de volta ao grande oceano: o seio do Deus/Deusa supremo/suprema. A imagem hinduísta da alma é a de um ciclo sem começo nem fim.

Outra imagem bíblica da alma, presente no livro Eclesiastes, a descreve como uma espécie de pipa, ligada ao corpo por meio de um cordão de prata. É uma forma de representar o não-lugar da alma, que ora erra pelos desertos do infinito, do sonho, do inconsciente, ora retorna ao cárcere do interior, o “dentro” do ser. Se bem que o infinito também pode ser visto como cárcere e o interior do ser não deixa de ser um deserto. Em sendo assim, a alma também pode ser imaginada como um prisioneiro ou uma miragem: uma flor perpétua.

Torço para que a expressão “oficina da alma” não seja sintoma de que o imaginário a respeito da alma está se reduzindo ao de um carro que, de tempos em tempos, precisa de uma revisão mecânica. E, se for assim, que a imagem mecânica da alma esteja mais para o Professor Pardal do que para João de Dondis.

Mas existem imagens contemporâneas da alma que preferem a leveza da poesia cotidiana à engenharia automotiva. Exemplo disso é a música “Alma”, composta em 2002 por Pepeu Gomes e Arnaldo Antunes e posta em vôo pelas cordas vocais de Zélia Duncan. A música subverte a metáfora do “dentro”, do quarto escuro, e lança a profundidade da alma na epiderme, na superfície.

O peso da alma, relacionado ao porão do inconsciente, habitado por traumas e perversões, é trocado pela leveza, o riso e a simplicidade que, sem a obrigação de fincar raízes, flutuam na superfície, como o suor. Este deixa de ser tratado como algo nojento e passa a ser visto como imagem da despretensão. O sentir na pele toma o lugar da inatingível alma concebida por Platão.

Mas a superfície da alma, nesta música, não deixa de remeter ao vôo que permite ao ser o prazer de, vez por outra, escolher lançar-se em órbita e perder-se ao espiar a evidente, porém indescritível, paisagem do planeta azul.

Esse é o significado mais próximo que posso encontrar para o verbo empinar. O gesto de empinar uma pipa revive a imagem da alma contida no Eclesiastes, mas também a magia da mecânica, a paisagem da janela do astronauta, o suor da despretensão: orvalho (suor da natureza).

A empresa Pipa Comunicação condensou vários aspectos do repertório de imagens da alma na sua vídeo-mensagem de ano novo. Nela, vemos como, catalisada pela música Alma e por imagens do cinema, uma pérola posta na palma da mão se torna sinônimo do primeiro passo de uma criança e a imensidão da alma pode revelar-se tanto em um conjunto de cataratas como num simples chafariz.

Inspirado por Sérgio Porto (ou Stanislaw Ponte Preta), escolho como imagem da alma, para finalizar, a de um “Feliz Ano Bom” para você e todos os seus.




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