31 de dezembro de 2011

Ilustres poetas desconhecidos II - Um feliz Ano Novo desejado por Cerevenise Stür

Cena do filme "A noiva-cadáver", de Tim Burton


 Gostaria de deixar como mensagem de Ano Novo, aos queridos leitores do Acedia, o texto de mais um ilustre poeta desconhecido. Cerevenise Stür é uma poetisa teutã, do século XVI. Não tenho ideia de como sua poesia foi traduzida para o Português, pois, ao contrário do que fiz com Clistarco Sepúlveda, acabei fazendo a besteira de não anotar a pequena introdução sobre Stür, que havia no livro do qual tirei as poesias dos que apelidei de "Ilustres Poetas Desconhecidos". Em outras postagens, contarei mais sobre este livro.


A noiva - poema de Cerevenise Stür

Tenho medo não de enfrentar a tristeza, mas de ser desleal no combate contra ela
E ser leal é reconhecer que esta adversária também é nossa amiga,
Tudo o que ela quer é nos ensinar a cicatrizar
Os ódios almejam ser eternos
As amizades almejam ser eternas
O amor almeja ser eterno
E tudo que a tristeza quer é cicatrizar as feridas
Para que a eternidade, em vez de um corte aberto,
Seja uma corte de esperanças
O mau não está na tristeza
Está nas eternidades que não cicatrizam
O mau não está na eternidade
Está nos disfarces de eterno trajados pela escravitude
A tristeza é uma bela moça de passagem
Recolhe do caminho as frustrações
Escolta os passos da fé
E convence a dor a desamarrar os cabelos
E os cabelos da dor quando soltos ao vento e ao sol
Serão qu'outra coisa que não a vitória da esperança?
A tristeza se permite ir embora
E se encanta ao ver que o rastro de sua distância
É uma grinalda de anos novos
De sonhos puros
Para os sérios,
Para os raivosos
Para os mansos
Para os extrovertidos
O buquê que a tristeza atira para trás
É amor
Amor desobsessionado, puro como a liberdade e a intenção que esvazia o inferno
Que colhe milagrosamente
Sorriso nos desertos da seriedade
E respeito nas miragens da galhofa cínica
Todos, homens e mulheres
Hão de querer pegar esse buquê
E se casar
Com os sérios
Com os gaiatos
Com os tácitos
Com os tagarelas
E se casar
Com o ser humano
Com este Novo Mundo
Cuja graça se divide
Entre o que dele se descobre
E o que dele se encobre
Com esta invenção
Que é antiga como o vento
Que sopra teu rosto agora
E nova como o vento que soprou teu rosto outrora
E sem tempo como o vento que sopr... teu rosto amanhã?
E a tristeza, além do buquê, atira para trás também a aliança
Pois seu compromisso - monsieur, madame - é não ter endereço
Que não seja a promessa de cicatrizar
Os tempos que se escondem na alma
As almas que se revelam nos tempos.



Um Feliz Ano Novo a todos e todas :D

27 de dezembro de 2011

O que comprar com a Mega da Virada: Caruaru, Londres ou a distância?

CHARING CROSS STATION, London. People walking beside a stationary train on platform 4 with the station roof reflected in a puddle in the foreground. Date range 1960-1972. John Gay.



A pergunta do ano, cujo prazo de validade começa e finda no mês de dezembro: o que você faria se ganhasse a Mega (Sena) da Virada?

De saída, não gosto dessas perguntas com tempo condicional, apelidado em Português de Futuro do Pretérito. Meu cérebro trava quando tenta pensar sobre o que fazer num futuro que não existe e que, ainda por cima, depende de um “se”, que também não existe, para pensar em existir... Como hoje acordei de bom humor (mentira), deixo o futuro do pretérito para o irritante Montesquieu com suas brilhantes ideias e sua resplandecente falta de coragem de expô-las.

Adorei (mentira, somente gostei) uma resposta de um amigo do curso de Francês. Ele disse que dividiria os 170 milhões de reais da Mega da Virada em duas partes. Ficaria com 60 milhões e doaria os outros 110. Afinal, argumentou ele, qual a diferença de ser milionário tendo 60, 110 ou 170 milhões? 

Jovem lúcido. E acrescentou ele: “Com ou sem esse dinheiro, eu faria as mesmas viagens, tudo que já faço”. Esse meu amigo é rico, mas não foi o esnobismo que regeu esta frase.  Lucidez: os caminhos e as viagens continuam as mesmas com 60, 110 ou 170 milhões. 

Mas, diriam meus opositores, quem tem mais pode viajar mais e encurtar as distâncias com a potência dos veículos, dos aviões...

Não nos enganemos. David Harvey está certo ao dizer que a toda compressão do tempo-espaço está associada uma dilatação do tempo-espaço, ou vice-versa. Diminui a distância em quilômetros, aumenta a distância em saudade. Diminui a distância em saudade, aumenta a distância em tédio. Diminui a distância em espaço, aumenta a distância em preconceitos. Nem 170 milhões vezes 7 seriam capazes de desmentir este fato.

Em 1290, o rei da Inglaterra, Eduardo I, mandou construir uma cruz em memória de sua amada Leonor de Castilha (sua "chere-reine"). Hoje, o lugar desta encruzilhada é habitado pela estação Charing-Cross. A encruzilhada é o lugar em que distância e proximidade se tornam uma mesma pessoa. Charing-Cross representa o paradoxo do ganhador da Mega: pode comprar o transporte, mas não pode comprar nem a distância nem a proximidade

Quando me foi perguntado o que faria se ganhasse a Mega da Virada, respondi, depois de lutar durante 30 segundos para destravar meu cérebro... 

“Compraria um apartamento em Caruaru, um em Recife e outro em João Pessoa”.  Minhas compras entregaram minha alma de pobre numa bandeja de prata. Afinal, com 170 milhões eu poderia comprar Londres em francês, português, inglês e quíchua...

E, depois de comprar Londres, seria um senhor feudal, mas não conseguiria ser nem amigo do rei. Quem dirá rei...

Viajar muito, comprar moradas em lugares que não sejam os nossos... Independentemente das compras que façamos, mora em nosso sonho de ganhar a Mega da Virada um desejo de comprar um ingresso pra nossa própria fuga e um terreno para erguer nosso esconderijo. 

Merda de Londres! Quero mesmo é comprar a batcaverna. Mas tenho de comprá-la do Batman em pessoa! Melhor, comprarei o próprio Batman! Contudo, teria de ter cuidado para, no afã de comprar o impossível, não pagar o preço infame de escravizar os outros. Deste desejo sórdido não está imune a alma que anseia pela Mega da Virada.

Há ainda os desejos secretos, inconfessáveis, as mentiras que desejaríamos tornar verdade ao som do vil metal, das barras de ouro que compraríamos com 60, 110 ou 170 milhões. Sim, a primeira coisa a se fazer com a Mega da Virada é comprar barras de ouro, “que valem mais do que dinheiro”.

Mas há aqueles nobres, que ainda são capazes de se indignar com a 'Justiça' que pune os que, sem se dar conta, foram tragados pelos juros da conta de luz de 17 reais que não puderam pagar... Esta capacidade, sim, é uma mega virada. E valerá a pena ganhar a Mega da Virada para comprar a miserável capacidade de não mais se indignar?

Eu abro mão de todos os acúmulos da Mega, da Dupla, da Hiper, pelo amor do Nobre, que é capaz de se indignar seja em qual idioma for. Esse é meu desejo secreto de 2011.


P.S.: Posso mudar de ideia e ficar somente com um milhãozinho e comprar um apartamento em Londres com os rendimentos da Poupança? :D





24 de dezembro de 2011

Como teria sido o nascimento de Jesus se já houvesse as redes sociais?



Papel de parede Abraço


Muitos demonizam as redes sociais. "Coisa de preguiçoso, de depressivo, de quem não tem vida social, de fofoqueiro, de quem não cuida da própria vida...".

Mas, sempre vivemos na ponte aérea entre a vida concreta e a vida virtual. Na Idade da Pedra, virtual era o diálogo com a memória dos antepassados (será que não há algo em comum entre os tótens e a ferramenta "linha do tempo" do Facebook?).

O Cartesianismo inaugura a virtualidade do eu cogitante, isto é, da mente.

A Internet personifica o virtual em redes complexas.

Paranoias, obsessões, mentira, ilusão. Tudo isto sempre existiu tanto on line quanto em versão carne e osso. Nem a carne nem os ossos são garantia da verdade. E não há mentira maior do que a ideia de que a verdade se resume ao que tem massa e ocupa lugar no espaço. Não há mentira maior do que negar aos silêncios imateriais o lugar que eles, de fato, ocupam (ou esculpem) na estruturação da realidade.

A verdade é como um abraço! Mas no abraço verdadeiro não há somente carne e ossos. Há a virtualidade de todos os abraços que nos marcaram, de todos que desejaremos dar e de todos os que gostaríamos de ter dado. Um abraço verdadeiro contém incontáveis abraços: concretos e virtuais. Por isso, de certa maneira, duas pessoas que se abraçam abraçam humanidades inteiras.

Os átomos comprovam minha teoria. Troco qualquer definição já dada de átomo pela seguinte: átomos são abraços concretos que, virtualmente, contém outros abraços. Por este motivo, existem as ligações covalentes!

Esta postagem é, na verdade e na mentira, uma deixa para divulgar um vídeo feito pela empresa Excentric para simular como teria sido o nascimento de Cristo se, na época, a Internet e as redes sociais já fossem uma realidade.

O virtual pode isolar (e o material não?), mas também pode ser um convite a retornarmos a um mundo concreto menos amesquinhado, trazendo para ele o começo de abraços que a virtualidade nos ajuda a ensaiar. E, como sabem os atores, o ensaio é uma realidade vital, é cimento nas brechas do espetáculo finalizado.

A seguir, a história do natal digital. Aproveito para agradecer à professora Ângela Dionísio, por meio da qual soube da existência deste vídeo :)

21 de dezembro de 2011

O risco de o Natal ser esquartejado

Foto "Papai Noel está morto"

O Natal vem se tornando uma espécie de réu condenado ao esquartejamento. Seus braços e pernas, amarrados a valores conflitantes que, no coração, tornam-se fúria cavalar a dilacerar as gentes.

Amarrada ao braço esquerdo do Natal está a fúria cavalar do consumo, o deus falso que nenhum sacrificio humano conseguirá saciar.

As festas natalinas celebram o nascimento de Cristo, mas dialogam também com a celebração do sol e da luz, chamada, em culturas antigas, como a céltica, de sabá de Yule. Daí Yuletide ser uma das formas de se dizer Natal, na língua inglesa.

O problema é que, quando se converte o natal em época de consumo, troca-se a celebração do sol pela celebração do vampirismo. O consumo compulsivo é como o vampiro:

1. Solitário, deixa sua linha do tempo cheia de mortos à espera de um modismo que os ressuscite

2. Insaciável

3. Frio e sedutor

4. Um morto-vivo: o consumo compulsivo vive da sua própria morte. Pena que ainda parece longe o momento em que viver da própria morte será uma definição, no dicionário, para reciclagem.

O braço direito do Natal está amarrado à fúria cavalar da utopia, ao encanto das promessas. É triste quando a utopia se espelha no consumo. Nesse caso, a promessa se converte em dívida, juros e corrupção.

Mas, entenda-se. Estamos falando de fúrias cavalares. Consumo e utopia fazem parte do ser humano. Aquele é a imediação, esta, a mediação. Ambos são forças necessárias, mas que, em desequilíbrio, condenam o espírito à pena do esquartejamento.

A perna direita do Natal é puxada pela fúria cavalar da eternidade, a principal matéria-prima da publicidade. No Natal, queremos ser eternas crianças, como o eu-lírico da poesia "Versos de Natal", de Manuel Bandeira. A bem da verdade, o desejo de ser sempre criança não passa da vontade de ter sob controle a imagem no espelho. Tudo que a criança dentro de nós não quer ser é eterna.

Nem a criança e nem o velho, pois, desde que nascemos, estes dois dividem espaço em nossa alma. A criança não quer a eternidade, pois seu brinquedo predileto é a descoberta. O velho não quer a eternidade, pois do balanço entre o que se foi - a história - e o que permanece - a memória - tece a rede de sua sabedoria.

A fúria da eterna juventude é um rosto sem tempo.

A perna esquerda do Natal está amarrada à fúria cavalar do ceticismo. O ceticismo também é vital, é a desconfiança necessária para que a sedução do consumo, da utopia e da eternidade não atire a gente no abismo. O problema é que o ceticismo, quando em fúria, não se contenta em duvidar, querendo jogar fora a vitalidade do consumo, da utopia e da eternidade. O ceticismo furioso só suporta a companhia da solidão.

Não contente em ter crucificado o Cristo, a humanidade agora quer esquartejá-lo com suas fúrias de consumo, utopia, eternidade e ceticismo. Mas o lado mais franco do Natal é que, mesmo correndo o risco de ser esquartejado pelas fúrias, ele não desiste de conspirar para que a boa-vontade vença a morte.


Versos de Natal - Manuel Bandeira

Espelho, amigo verdadeiro
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.

13 de dezembro de 2011

Ilustres poetas desconhecidos I: Uma roupa para o coração

Rua Paris, em Santiago @ Chile - Foto by Marcelo Costa
Clistarco Sepúlveda foi um poeta do século XII, nascido em Túnis, no norte da África. Há dúvidas sobre como as poucas poesias que escreveu chegaram aos dias de hoje. Certamente, não se pode exigir originalidade da leitura deste poeta, visto que só temos acesso a traduções de seus poemas feitas para o galego . Quem quiser ler o texto original, terá de ser paciente e vasculhar na Internet como eu fiz :)

Independentemente da intervenção dos tradutores, continua pulsante a originalidade nos silêncios da poesia de Clistarco. A seguir, uma delas:



Uma roupa para o coração

Vesti no meu coração uma roupa pelo avesso
E na etiqueta dessa roupa estava escrito: sonho
O primeiro homem soprou a palavra-chave
Nas brechas do descompasso do meu bater cardíaco
E a vida abriu-me as portas do intraduzível

Onde minha alma pulsa
Está por uma atriz
A deixa para que meu toque alcance
O abraço que tu'alma reserva
Para minha esperança cansada
Na equação da desmedida,
Esperança cansada = ternura

E me atrevo a reviver dores
Para que as tuas se enxerguem mudas, invisíveis

Tua dor não está só
Empresto a ela a companhia da minha

Quando quiseres me visitar,
Ou bater a minha porta
Só pra dizer Vou Revoar
Espero-te com o peito aberto
À tua decisão
Às tuas intranquilidades
Às tuas indiferenças
Às tuas iras, o teu Irei
Desde que seja eu palco
De tuas idas e vindas
De algum de teus sonhos todos
Ou dos avessos que vestem teu coração.

8 de dezembro de 2011

Um presente das Casas Zé Araújo à Imaculada Conceição


Foto: Ana Carla – blog Misturação



Dedicado a Nossa Senhora, a Leda Nagle e a Diego Rivera

Certamente, haverá aqueles que me chamarão de sacrílego, mas quero homenagear Nossa Senhora da Conceição, descascavilhando a memória dos antigos comerciais das Casas José Araújo. 

E acredito que estes comerciais têm muito a ver com Nossa Senhora, pois não recorrem ao sagrado como se este fosse um espaço de imunidade ao mundo. Nem tratam o profano como réu de morte à espera das pedras recalcadas na alma dos neuróticos. 

Nos antigos comerciais da Zé Araújo, sagrado e profano se revezam, lembrando a desobediência civil e religiosa praticada por Jesus. Sagrado e profano podem conviver, assim como Cristo dividia a mesa com prostitutas e cobradores de impostos. Cristo demonstra que o sagrado que se cega diante do profano, tentando escondê-lo debaixo do tapete, converte-se em hipocrisia. E talvez este seja o principal pecado contra o qual Cristo lutou.

Lembremos como Jesus deixou de guardar o sábado, ferindo a lei judaica. Numa das vezes que fez isso, o fez para curar uma pessoa. Ao ser questionado pelos doutores da lei sobre este gesto, que representaria flagrante violação do sábado, Jesus dirá que no sábado não é proibido fazer o bem. Em outra ocasião afirma que o ser humano é senhor do sábado e não o contrário.

Nossa Senhora também desobedeceu a Lei. Ela, ao aceitar ser a mãe do Messias, correndo o risco de tornar-se mãe solteira, renegou a lei para dar forma ao sonho de uma humanidade redimida.

Nos casos descritos, a reflexividade da ética ganha espaço em detrimento da cristalização inquestionada da moral.

Os antigos comerciais da Zé Araújo não optam pela visão tradicional do sagrado: um sagrado fechado a vácuo e asséptico. Trata-se de um sagrado que dialoga com o profano, emprestando espiritualidade à vivência cotidiana e tomando emprestado dela paixão e alegria.

A seguir, alguns dos antigos comerciais das Casas José Araújo, incluindo a homenagem a Nossa Senhora da Conceição, padroeira da capital pernambucana. Infelizmente, só consegui vídeos com o áudio dos comerciais. A imagem ficará por conta exclusivamente da lembrança e da saudade.

Não deixe de ler O Japão também tem uma Nossa Senhora.

"Nossa Senhora da Conceição" - Elias Francione / Morro da Conceição, Saúde - Rio de Janeiro
Senhora da Conceição
Minha Mãe
Minha Rainha
Dai-me a vossa proteção
Minha querida madrinha
Vela acesa, subo o morro
Pra pagar minha promessa
Vou vestir azul e branco
Pra pagar eu tenho pressa
Hoje minha mãe querida
Faço essa louvação
Com o povo rendo graças
À Virgem da Conceição




 













6 de dezembro de 2011

Geografia na poesia (poesia na geografia) de Herbert Vianna

Arte de Julian Beever

Em um de meus momentos de flâneur do ciberespaço *, deparei-me com um pedido inquietante feito por um estudante num fórum de discussões do Yahoo: “Por favor me ajudem nesse trabalho, da geografia na musica, expliquem essas musicas.?

A maior parte das almas benevolentes que quiseram colaborar com o trabalho do referido pesquisador chamaram atenção para uma das mais conhecidas canções de Herbert Vianna: Alagados. Nesta música, o compositor menciona lugares que disputam a atenção das duas principais polaridades do olhar humano: ilusão e des-ilusão

O olhar ilusionista tende a silenciar as inadequações entre o que se vê e o que se acredita ver: é vacinado contra a ironia. E como tal tende a ser vítima de esperanças falsas, descritas pelo poeta como “esperanças que vêm das antenas de TV”. E também vítima da fé cega: vive-se da fé sem se saber mais o que é viver. A esperança da ilusão é cômoda.
Arte de Kurt Wenner

Já a polaridade da des-ilusão tende a detectar a ironia das situações.  No caso da música Alagados, a ironia é que os paraísos representados por lugares como Salvador, Rio de Janeiro e Kingston (Jamaica) abrigam extremos da miséria: a miséria dos que despudoradamente têm “tudo” e daqueles que têm muito menos que o mínimo necessário.  A esperança da des-ilusão é incômoda. Nasce dos cacos da des-ilusão, com sua força de resignificar os ideais.

Seria precipitado julgar a ilusão ou a des-ilusão como algo necessariamente bom ou mau. O olhar é análogo a um ímã, cujos pólos são igualmente necessários para manter o equilíbrio da força magnética. Nenhum olhar seria capaz de ser o tempo todo suspeição e ironia (des-ilusão), nem ser o tempo inteiro a plenitude ingênua da ilusão. Mas afirmar isso não descarta a responsabilidade de posicionar-se eticamente com relação aos vícios e virtudes da ilusão e da des-ilusão. 

Iludir-se também é uma forma não deixar o que há de melhor no ser humano esvair-se no rio dos detalhes sórdidos. E des-iludir-se, por sua vez, é uma forma de não ser obrigado a engolir a seco certezas que se afastam da convicção e aproximam-se da opressão.

Além da geografia humana, a geografia física é um dos afluentes que deságua na poesia de Herbert Vianna. Esta poesia geográfica (geografia poética) é - na música Lição de Astronomia - associada a elementos da mística cristã, e expressa por um eu-lírico à beira do niilismo.

Na música Tendo a lua, a referência astronômica torna-se uma crítica à burocratização dos sonhos e ao desencantamento das utopias. As instituições militares são tomadas como metáfora deste processo: “Tendo a lua, aquela gravidade onde o homem flutua... Merecia a visita não de militares, mas de bailarinos e de você e eu”.  


*Não, flâneur não é a palavra francesa para designar “flanelinha”. Detalhes do significado aqui.

Lição de Astronomia - Herbert Vianna

Tendo a Lua -  Os Paralamas do Sucesso



29 de novembro de 2011

Marina Colasanti, Almodóvar e o alerta de incêndio no cinema do shopping

Marina Colasanti - Fonte: Diário de Pernambuco
Um cheiro de gás carbônico (se era monóxido ou dióxido, não sou capaz de definir) entrou, hoje, na ponta dos pés, nas salas de cinema do Shopping Recife.

As pessoas se alvoroçaram, mas ninguém correu nem gritou. Todos saíam e, como manda a boa educação, paravam para dar licença a outros que também buscavam a saída.

No hall do Multiplex, não havia fumaça e, rapidamente, pessoas - sem temer pela pele em que habitavam - voltavam à sala de cinema. Estava tão perto o fim do filme de Almodóvar...

Ninguém se sentou. Ficavam todos de pé nos corredores laterais:. O bom senso... Este havia permanecido sentado, ignorando o alerta de incêndio.

A espera pelo final do filme fez as pessoas se esquecerem do cheiro de carbono. O medo estava em suspense até que se desligou a tela e todos se foram. O final do filme teve seu recomeço marcado para outro dia, uma outra alvorada qualquer, desde que se respeitando o prazo de validade do ingresso: de sete dias: o mesmo prazo de validade da criação do mundo?

As pessoas... Ligadas no fim do filme e esquecidas do cheiro de carbono. Pra que se importar com incêndios e com cheiro de carbono se o aquecimento do planeta é irreversível? Esta pergunta me lembrou uma que, recentemente, fiz à escritora Marina Colasanti, às margens do cais de Santa Rita, durante a Mostra Sesc de Literatura Contemporânea, em Recife.

Perguntei a ela qual era a diferença de se ter sonhos no passado e hoje. Ela respondeu que hoje, como em tempos de guerra, a esperança parecia estar em suspense, pois ficava difícil fazer planos e ter esperança quando o mundo tem um incêndio à porta.

"Os jovens de antes tinham como ideal tornar efetivo um projeto de vida. Os de hoje querem o sucesso imediato, independentemente de projetos", dizia a escritora.

O realismo de Marina Colasanti estava longe da amargura. Como ela indiretamente afirmou, evitar a amargura é a forma mais realista de se enfrentar os tempos de guerra, os tempos em que a esperança fica sob suspeita. E, como ela mesma disse: "As guerras sempre terminam".

19 de novembro de 2011

O que fazer quando se chega atrasado a um incêndio? Reflexões sobre o filme Incendies

Lubna Azabal em cena do filme Incendies (produção franco-canadense: 2010)


Cheguei atrasado à sessão do filme Incendies (de Denis Villeneuve), exibido e debatido durante a I Semana de Encontros de Francês (Senfle) da Universidade Federal de Pernambuco.

Mas isso foi útil. Éramos o filme, minhas lacunas e eu, na busca pela coerência! Logo percebi que Incendies era daquele tipo de filme que se passa uma parte na tela e outra no:

Opção A: coração
Opção B: mente
Opção C: espírito
Opção D: coração-mente-espírito

Só não dá pra se ter como opção: "Nenhuma das alternativas acima"! Alguém poderia dizer: "Mas isto que você está dizendo acontece com todo tipo de filme!"

Não. Existem filmes que fingem falar ao coração enquanto falam somente à mente. São, parafraseando Rodrigo Carreiro, filmes extratores de lágrimas, os quais funcionam como uma espécie de Pavlov vestido com requintes de cruelarte.

Carreiro aproxima este tipo de filme do que conhecemos como melodrama, o gênero da emoção fácil. E, como destaca ele, o melodrama é necessário e, em certa medida inescapável. Mas, como se sabe, o melodrama em suas origens requer um certo analfabetismo da mente (da racionalidade) e uma intensificação do lado emocional para ter êxito. Não é à toa que o pipoco desse gênero coincide com a expansão da alfabetização na Europa (fins do século XVIII e início do XIX?), momento em que a gramática dos afetos tentava fugir, romanticamente, do impulso monopolizador da racionalidade iluminista .

Em sendo assim, o que acontece marcadamente em parte do cinema hollywoodiano, que fala à mente fingindo falar ao coração, seria de fato melodrama ou uma simulação deste gênero? Adotarei a estratégia daqueles que não acham resposta para as perguntas que inventam: seguir em frente!

Existem filmes que falam prioritariamente à mente - tipo os documentários. E há também os que falam ao espírito. Neste grupo, incluem-se os filmes que, de algum modo, remetem àquela experiência relatada pelas pessoas que tiveram experiência de quase-morte e descrevem como um dos sintomas o de ver diante delas o filme da própria vida. Contudo, eu é que não vou me arriscar a dizer que tipo de filme fala ao espírito. Trata-se de uma experiência íntima, intransferível e da qual só a poesia, em sua hermosa precariedade, pode se aproximar.

O que me chama atenção em Incendies é que esse filme me faz ficar indeciso com relação à lista de opções escrita acima. Isso faz com que uma cena que, na linearidade do melodrama, causaria "naturalmente" lágrimas, seja recepcionada por sentimentos indecisos. A emoção, assim como o filme, fica fraturada e a lágrima, prestes a cair, fica em suspense, atravancada por sentimentos paralelos como a aridez, o desencanto e a desesperança.

O filme nos lança de volta à atmosfera da tragédia grega, como observou Gustavo Táriba, mediador do cine-debate e professor da Aliança Francesa do Recife. E os personagens tentam fugir dessa atmosfera trágica com nobreza e valentia. Por meio da tentativa de acessar as raízes familiares, desafiam a força do destino que diz "É assim!" e deixam que sua jornada seja motivada pela pergunta: "Como poderia ter sido?".

Busca tola e previamente frustrada? Isso cabe a cada um que assiste ao filme responder. Mas outra hipótese que o filme nos permite formular é a de que quando não se pára de cavar diante da frustração e da camada superficial do "É impossível",  o terreno arqueológico da vida revela camadas profundas de surpreendente esperança, amor e fé. São as chamas que sobrevivem, teimosas e cativantes - aos incêndios da jornada humana:  "A morte nunca é o fim de tudo. Sobram traços".

Mas, chega de melodrama. E que Pavlov descanse em paz!

Confiram o blog da I Semana de Francês Língua Estrangeira (Senfle).

Confiram também uma boa resenha do filme Incendies.

17 de novembro de 2011

O primeiro emoticon ou sobre o risco de exercer a liberdade e de se apaixonar depois de ler Nietzsche

O Smiley original - 29 anos de existência



Li Nietzsche hoje de manhã: a Gaia Ciência.

Depois tive aula inesquecível sobre o tema com o filósofo Lourival Holanda.

Conclusão: vontade de ser menos racional e enfrentar o perigo libertador do dionisíaco.

À noite, declarei a paixão que sentia por meio do olhar.

De madrugada, por meio de palavras

Obtive resposta.

Utilizei o Google tradutor para traduzir a resposta e tive um choque

Quem não tiver coração forte, não use o Google tradutor (:

Preferi confiar no meu precário poder tradutório: mais seguro que o do Google

Confiei também nos indícios que um emoticon de sorriso me trazia ao fim da mensagem de resposta que recebi.

Agora, espero que a ferida que a liberdade nitzscheana me abriu cicatrize

E que bom que tive a coragem de me ferir com esta espada de liberdade...

15 de novembro de 2011

O que é macroeconomia? Pergunte à paixão! O que é ouro? Pergunte à bijuteria! O que é capitalismo? Pergunte à igualdade!


Fonte da imagem: blog do Fernando Nogueira


Macroeconomia (do grego: μακρύ-ς /ma΄kri-s/ grande, amplo, largo e οικονομία /ikono΄mia/ lei ou administração do lar) é uma das ramificações da ciência econômica, dedicada ao estudo, medida e observação de uma economia regional ou nacional como um todo.

Indagado por alguém recentemente, sobre o que era macroeconomia, respondi conforme a definição acima. Na verdade, não foi bem uma indagação que partiu deste alguém, mas sim uma leve indignação, uma suspeita quase: "De que wikipedia ou bula de remédio ou orelha de livro terá vindo este conhecimento?".

Quando dei a resposta ou tentei dar, fui interrompido: interdit de donner ma reponse. Em seguida à interdição, uma resposta formulada por meu "oponente": "A macroeconomia está ligada a outras variáveis que não a demanda, a oferta, etc.".

Estávamos ambos certos - o alguém e eu. E eu não tive forças para lutar por minha certeza. Foi como se estivesse numa cruz e um martelo socrático quebrasse meus joelhos. Não tive forças para brigar por minha certeza porque estava-estou apaixonado por Alguém. 

Enfim, entendi a filosofia de Sócrates. Ele não buscava fazer dos outros portais para alcançar certezas plenamente despidas de dúvida. Sócrates (ao menos o Sócrates que Platão não platonizou) queria que olhássemos nossas certezas como quem está apaixonado, pois a certeza, sem a ferida da paixão-dúvida, é menos equilíbrio e mais anestesia. É melhor estarmos em dívida-paixão com a certeza do que nos deitarmos com ela na pedra gelada do necrotério-avareza.

Estamos entrando numa era perigosa, mas libertadora. Agora, há bijuterias que, pelo conceito que encarnam, tornam-se mais preciosas que o ouro. Programas de computador permitem que potenciais criativos, antes inibidos pelo monopólio da técnica e do saber especializado - aflorem radiantes.

O mundo, com isso, pergunta-se como vai ser possível vivermos num mundo em que todos podem expressar igualmente seu potencial criativo e onde o ouro vale menos que a bijuteria. Como sobreviverá a ideia de valor, diante da igualdade desconcertante que nos assalta?

O maior desafio/graça a ser enfrentado/alcançada pelo Capitalismo não é a ameaça da igualdade de iguais, mas sim a efetivação da igualdade de diversidades.

Antes, a estratégia para se desmerecer um pensamento era desmascarar-lhe os limites, revelando o que vulgarmente é chamada de burrice. Hoje, busca-se mascarar a inteligência própria e a dos outros, a fim de se gerar o efeito-burrice, num gesto desesperado de enfrentar algo que nosso aparelho psíquico ainda não é capaz: um mundo em que todos são, de fato, e estão, de direito,  tornando-se igualmente inteligentes.

A estratégia de Alguém (ou que moi, Je lui donne suscité pour ma espoir/trompe-l\'œil) continua surtindo efeito. É o efeito da pergunta-encantamento de amor: "O que é macroeconomia?". Termino esta postagem ainda apaixonado, sem resposta e, portanto, meio burro. Porém, com certeza, longe do necrotério-avareza!

A charge que abre esta postagem vem do blog de Fernando Nogueira Costa e ilustra um texto sobre as variáveis "não-racionais" que influenciam a economia, mais especificamente a paixão e o amor.

A música abaixo vai para alguém e Alguém.


Overjoyed - by Steve Wonder

10 de novembro de 2011

Venti del cuore e a cicatrização das feridas abertas pela aprendizagem de um novo idioma

Fonte: Instituto de Pesquisas Projeciológicas e Bioenergéticas



Ontem, num resto de madrugada implícita de eternidade espontânea, conversava com uma grande amiga de nome russo, cujas letras só consigo escrever com ajuda da tecla CTRL.

Анушка Ваз e eu lembrávamos de como a música ajuda aquele que está aprendendo um novo idioma. E descobrimo-nos ambos devedores de um professor de italiano que, sem se dar conta, deve ter ensinado italiano a muitas pessoas. Renato Russo, com seu disco Equilíbrio Distante, de 1995, doa-nos o que ele chama de Venti del cuore (ventos do coração).  

Esses ventos existem de fato como têm revelado imagens feitas pelo sempre mais recente telescópio inventado: o Poiesis. E têm poder cicatrizador. E sabe-se que uma nova língua é uma ferida aberta rumo a uma cicatrização que nunca ocorrerá em plenitude, visto haver entre os idiomas um abismo tradutório intransponível como o que separa os vivos e os mortos. Mas, mesmo assim, conseguem-se bons índices de cicatrização.

Entre as referidas feridasestão a memória rivalizante do idioma natal e o medo de andar sobre a corda bamba que se estende sobre o abismo que separa os dois idiomas. Esta corda é feita com o mesmo tipo de material do fio de prata que prende a alma ao corpo e que, nas viagens astrais e nos sonhos, permite que viajemos pelo universo, até um determinado limite...

Aprender nova língua é conviver com o abismo e pra isso não vale sonegar o desequilíbrio dos passos na corda bamba. Os ventos do coração ajudam-nos a dar coreografia aos desequilíbrios, fazendo deles espécie de balé ou outro tipo de dança, conforme a paixão com que estes ventos sopram.

Perguntem-me de que são feitos estes ventos e eu, sem tê-los visto, mas os tendo sentido, precipito-me em dizer que são feitos do idioma da música, a quem foi concedido o direito de, sem palavras, vencer os abismos tradutórios plantados pela queda da Torre de Babel.

Mas, não se pode confiar completamente nos ventos, nem na música. Os dois são como os anjos do poema de Renato Russo. Eles passam por nós, nos tocam com a memória do paraíso, onde havia uma língua clara e universal, mas, a seguir, nos abandonam com a fome de retorno ao paraíso perdido e a fome de palavras, decorrente da afasia posterior aos raros e intensos contatos com a eternidade.

A explicação dada pelas correntes neopentencostais ao dom de falar em línguas estranhas resume bem o proósito de aprender um novo idioma. Não aprendemos nova língua pra dizer o que poderíamos dizer com nossa língua materna. Aprendemos porque as línguas estranhas ou estrangeiras nos permitem falar de algo que nossa linguagem familiar não nos permite.  

No dom das línguas (um dos dons do Espírito Santo), contudo, esta necessidade atinge o clímax, ligando-se a um momento em que se escolhe uma língua impossível de ser traduzida pela linguagem humana para dar conta dos mistérios que a mesma linguagem humana não consegue abraçar.

Assim, aprender um novo idioma é o esforço de apreender o mistério de nosso idioma materno. Perseguir este mistério é seguir os rastros deixados pelo que, tomando emprestado a expressão desenhada por Renato Russo, chamaria de "fantasmas do amor".



E i venti del cuore soffiano
e gli angeli poi ci abbandonano
con la voglia di voci e di persone
seguendo fantasmi d'amore
i nostri fantasmi d'amore,
seguendo fantasmi d'amore
i nostri fantasmi d'amore,
Quando i venti del cuore soffiano
seguiamo fantasmi d'amore
i nostri fantasmi d'amore.
Quando i venti del cuore soffiano
seguiamo fantasmi d'amore
i nostri fantasmi d'amore.
seguiamo fantasmi d'amore
i nostri fantasmi d'amore.







31 de outubro de 2011

O último capítulo de O Astro não é culpa da Grécia nem do protóxido de hidrogênio

A primavera em Goscieradz - Léon Wyczólkowski
Talvez o último capítulo de O Astro seja exemplo de como nem mesmo o mundo da ficção tem escapado à tendência que vem atingindo as bolsas de valores mundiais: quedas bruscas, leves altas e ondas de medíocre estabilidade. Mas, por favor, façamos um esforço e não culpemos também a Grécia pelo modo como se desenrolou o final da novela.

Um ponto alto do pôr-de-sol de O Astro foi o trabalho hercúleo de atuação de Rosa Maria Murtinho. É louvável o esforço dela para salvar a emoção do rio da mesmice de um texto que não chamarei de incolor, inodoro e insípido para não ofender o protóxido de hidrogênio. 

Talvez as correntes impetuosas da mesmice tenham vencido ou eu estivesse de mau-humor, pois, a despeito da seriedade da atuação de Rosa Maria, acabei me derramando em risos. Um riso, bem verdade, todo original: de um espírito vítima de cócegas causadas pelo espinho de um script cínico e varado por preconceitos: tipo assim o da “tia coroa e invejosa que tinha um caso com o marido da sobrinha mais jovem para aproveitar as migalhas: única coisa a que ‘esse tipo de gente’ teria direito”.

De repente, um abismo se abre na narrativa. Após ser expulsa da casa da sobrinha traída, Magda, a personagem de Rosa Maria, segue sem rumo. Ninguém lhe dá abrigo e ela vai parar num refinado quarto de hotel, localizado provavelmente no último andar. 

Entra em cena outra dose de realismo fantástico, quando a personagem dá como gorjeta, para o funcionário que traz suas malas, notas de 50 e 100 reais (aos que no futuro lerem esta postagem, saiba-se que tais notas pertenceram ao panteão da pecúnia).

SalvadorDalí - Muchacha en La Ventana
Vestido numa camisola negra, perfumada com leve aroma de clichê, o talento de Rosa Maria é coroado pelo poema camoniano Erros meus, Má fortuna, Amor ardente, proferido pela personagem Magda. Nesse instante, o espinho cínico foi atordoado e a predisposição à galhofa ficou travada na garganta. Rosa Maria e aquela cena eram apátridas no enredo do último capítulo de O Astro.

A seguir, uma elegante e anacrônica cadeira, disposta à beira da janela aberta com cabelos de cortina ventilada, sugeria morte. Por um instante, a novela torna-se literatura, mas também arte plástica, visto que a cena cita pinturas como A primavera em Goscieradz (Léon Wyczólkowski) e Muchacha en La Ventana, de Salvador Dalí. De forma bela e enigmática, o enredo de O Astro perguntou: Para onde foi a moça pintada por Dalí quando sua juventude partiu?

Numa cena mais adiante, porém, o enigma de Rosa Maria foi ferido sem dó nem piedade pelo espinho cínico. A auxiliar de um delegado, cuja função na trama é a de investigar o “misterioso” assassinato do “importante” personagem Salomão Hayalla, revela: “Estão reunidos aqui todos os suspeitos, com exceção da dona Magda, que partiu desta para uma melhor.”.

Segue-se a montagem de um circo “inspirado” nos desfechos dos livros de Agatha Christie. 

Quem matou Salomão Hayalla? Não poderão me acusar de desmacha prazeres se eu entregar o ouro (ou melhor dizendo o arame), posto que a resposta é: todos mataram Salomão Hayalla, inclusive o mordomo da casa. Cada um dos suspeitos o matou um pouquinho. O mordomo colocou cápsulas de veneno no lugar dos comprimidos que Salomão costumava tomar. Quando começava a agonizar, Salomão recebe uma coronhada de revólver por parte de seu irmão, que não teve coragem nem competência para seguir o rótulo de instruções da arma.

Por fim, Salomão foi defenestrado por sua esposa Clotilde, interpretada por Regina Duarte. 

Meu impulso primeiro foi contrastar as interpretações de Rosa Maria e Regina Duarte. Mas logo vi que ambas foram igualmente magistrais, posto que nunca vi alguém representar tão bem o papel de atriz canastrona como Regina Duarte: é das melhores comediantes que já vi. Ela também foi uma apátrida no enredo de O Astro: alma de Greta Garbo presa na interpretação de Lucille Ball, ou vice-versa.

O maior mistério da trama ainda estava por vir. Até agora me pergunto se o personagem principal, Herculano Quintanilha está vivo ou morto. 

Durante uma festa, Herculano celebrava a proximidade da felicidade eterna ao lado da personagem Amanda, vivida por Carolina Ferraz, que acabara de contar que estava grávida. 

Uma “felicidade” no mínimo suspeita, posto que tinha como cenário um país chamado Santa Fé, no qual Herculano utiliza seus poderes mágicos para apoiar o ditador que governa o lugar. Suspeita também por ter sido precedida por uma tórrida noite de amor regada pela voz interior de Herculano que, na verdade, revela-se uma citação da poesia de Baudelaire: "Queria mesmo era colher o grito pleno/ da tua alma cheia de tormentos.”. Em tempos de crise, até a voz interior dos personagens tem pedido empréstimos...

Subitamente, a festa é invadida por guerrilheiros mascarados semelhantes aos integrantes das Farc. Os mascarados metralham tudo ao redor, incluindo Herculano, que vai ao chão agonizante.

Corte para uma cena numa praia paradisíaca em que Carolina Ferraz aproxima-se de uma criancinha e pergunta: “Meu amor, você tá aqui sozinho?”.

Eis que surge Herculano, dizendo: “Ele não tá sozinho não!”

A partir daí, mistério: Seria aquele um Herculano sobrevivente ou o espírito de Herculano. Se bem que, para dar crédito a esta segunda alternativa só com ajuda do realismo fantástico, posto que é difícil pensar num fantasma que beija e abraça uma mulher e ainda ensina truques de mágica para o filho pequeno.

Há ainda uma terceira hipótese. A de que o ataque dos guerrilheiros à festa tenha sido um plano de Herculano para simular sua morte e poder usufruir, posteriormente, uma “felicidade eterna” e anônima.

Por mais críticas que se queira fazer, não se pode dizer que o último capítulo de O Astro não foi marcante. Despertou do riso à perplexidade para quem não tem medo de enfrentar os espinhos cínicos da cultura.


Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente

Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"

Penúltimo capítulo de O Astro - realismo fantástico em mares nunca dantes navegados



Fonte: globo.com


Quando a estética do choque parece virar lugar-comum a ponto de transformar o choque em dormência, eis que surge O Astro. Ou, mais especificamente, eis que ressurge, em 2011, O Astro com um final surpreendente.

A surpresa está não no que é contado, pois tudo ocorreu conforme o protocolo. Os vilões ou morreram ou foram presos. E os heróis viveram felizes para sempre e comemoraram a “felicidade eterna” numa boate ao som de Glamurosa, de M.C. Marcinho.

O surpreendente revelou-se no modo como o clichê foi recontado. O efeito-surpresa contou com o auxílio luxuoso dos atores, que não conseguiram esconder a máscara de comédia que a trama tentou ocultar sob um véu quebradiço de seriedade que, não raro, almejava ser tragicidade.

O gatilho do choque foi disparado já no penúltimo capítulo, quando o personagem principal, Herculano Quintanilha, desafiou o gradiente de probabilidades estabelecido durante a novela. 

Herculano, a fim de fugir de uma perseguição policial, começa a levitar. De vidente, o personagem foi promovido a aeróbata. Logo a seguir, uma nova promoção. Quintanilha transforma-se num pássaro, da envergadura de um jatinho, e sai voando.Não foi o ato de voar que, por si só, surpreendeu, mas as duas promoções sucessivas. É como se lêssemos uma notícia sobre um advogado recém-formado que, de uma semana para a outra, torna-se desembargador e ministro do Supremo Tribunal Federal.

Ainda mais surpreendente foi o efeito especial utilizado para dar movimento ao pássaro, que batia as asas com a desenvoltura de um pterodátilo de filmes da década de 60: o padrão Globo foi “supreendentemente” ferido.   

Como bem classificou o ator Rodrigo Lombardi, em entrevista a Ana Maria Braga, esta cena é um exemplo de realismo fantástico. 

Realmente, uma expressão nunca dantes vista do fantástico, posto que outros personagens, ao verem a metamorfose do protagonista de O Astro, inspiraram surpresa e expiraram  um artificial “Ah, para o Herculano isto é normal!”. 

Eu, contudo, mantive o fôlego paralisado pela perplexidade e, como nunca dantes, vi nascer a comédia no terreno do realismo mágico.

29 de outubro de 2011

O risco da citação na troca de olhares entre Perseu e Medusa

Perseus: by VampireBait

Começo esta postagem contrariando uma recomendação do filósofo e teórico da literatura Lourival Holanda: a de que o pesquisador deve evitar tornar-se refém do citacionismo, que, como bem explica ele, é um mal-estar cujo sintoma principal é pedir licença a referências bibliográficas para poder pensar.

Apesar de estar sujeita a desvirtuar-se em citacionismo, a citação tem seu valor. Ela é sempre um risco, a bem da verdade e da mentira. Mas também é capaz de salvar vidas. Que o diga Perseu... 

Como se sabe, a estratégia deste guerreiro para destruir a medusa é simplesmente uma citação. Perseu acompanha o movimento da medusa, por meio do reflexo dela projetado em seu escudo. Ele, ao captar os movimentos do outro por meio do reflexo, está praticando a citação. 

E, por mais que se louve e engrandeça a pessoa citada, o gesto de citar requer que o citado seja sacrificado: simbolicamente morto: ao menos em parte. Caso contrário, o destino do conhecimento seria transformar-se em pedra, isto é, paralisar-se.

A citação é como a cabeça da medusa incrustada no escudo de Perseu. Em parte está morta, mas ainda é capaz de suscitar o horror e a perplexidade que paralisam.  A paralisia do conhecimento seria, assim, causada pela reapropriação vazia do texto citado: resultado da transformação do Apud em uma faceta do TOC (transtorno obsessivo compulsivo).

Cabem então ao que cita, inclusive o que cita a “si mesmo”, poucas opções: deixar-se petrificar (e, então, anular as duas opções seguintes); sacrificar o citado, salvando-se...

Uma terceira opção toma como exemplo um episódio pertencente aos arquivos secretos da mitologia, guardados a setenta vezes sete chaves pela NASA (Noite anterior ao Sempre Antes). 

Sabe-se que depois de cumprir seu destino, Perseu pede ao deus Vulcano que crie um novo corpo para a cabeça da Medusa. E, assim se fez... E Perseu cegou-se a fim de poder olhar de frente aquela que amava e com a qual queria ficar. 

Na verdade, Perseu mata a medusa e deixa o destino se cumprir para enganar os deuses. Mas, depois que o destino se cumpre, Perseu o descarta. Assim também faz a Medusa. 

Do encontro entre os amantes que cumpriram seus destinos como forma de enganar os deuses, nascem o amor e a vontade.  

Esta versão apócrifa do mito lembra que o gesto de citar é pressionado de um lado pelo destino e, de outro, pela vontade. E que citar é assumir o risco de ter um caso de amor com quem pode te destruir ou te salvar, dependendo do ponto de vista. 

Mas, o insólito caso de amor entre Perseu e Medusa está longe de ser o fim de um filme de Hollywood, o que sugere algumas reflexões.

Quem cita – Perseu - se cega. Isto não significa necessariamente aceitar cegamente a opinião de quem é citado, mas sim silenciar a tendência de acharmos que nossa visão é plenamente capaz de dotar o mundo de sentido.

Quem é citado – Medusa - continua capaz de petrificar. Mas, o caso de amor inaugurado pela citação pode proporcionar uma alegria não antes experimentada pela Medusa: a de ter seu olhar devolvido. Tudo que Medusa queria,  e o destino havia lhe negado na versão oficial do mito, é poder ver refletido em seus olhos a alteridade viva: com direito ao amplo contraditório.

Derivações deste caso de amor entre Perseu e Medusa – ou entre quem cita e quem é citado – poderão ser vistas no IV Seminário de Línguas e Literaturas Clássicas :  O Arco e a Lira. O evento, promovido pelo Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ocorre de 9 a 11 de novembro no Centro de Artes e Comunicação.
Perseus and Medusa: by humon

A temática este ano será Literatura Clássica e as Forças Renascentistas. A ideia é compreender como o imaginário clássico é citado – com requintes tanto de “crueldade” como de amor – na transição entre Feudalismo e Renascimento. Neste contexto, a citação da literatura clássica vivencia um diálogo tenso, porém rico, com os imaginários cristão e oriental.

As inscrições e submissão de comunicações podem ser feitas, gratuitamente, até o dia 31 de outubro de 2011. Mais detalhes no site do Seminário.

Na ocasião, serão oferecidos os mini-cursos Hebraico Bíblico, ministrado pelo professor Vicente Masip, e Memórias Arquetípicas e Filosóficas em Narrativas de Super-Herói, ministrado pelo pesquisador Cláudio Eufrausino. Ambos os ministrantes são da UFPE.
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