A primavera em Goscieradz - Léon Wyczólkowski |
Talvez o último capítulo de O Astro seja exemplo de como nem mesmo o mundo da ficção tem escapado à tendência que vem atingindo as bolsas de valores mundiais: quedas bruscas, leves altas e ondas de medíocre estabilidade. Mas, por favor, façamos um esforço e não culpemos também a Grécia pelo modo como se desenrolou o final da novela.
Um ponto alto do pôr-de-sol de O Astro foi o trabalho hercúleo de atuação de Rosa Maria Murtinho. É louvável o esforço dela para salvar a emoção do rio da mesmice de um texto que não chamarei de incolor, inodoro e insípido para não ofender o protóxido de hidrogênio.
Talvez as correntes impetuosas da mesmice tenham vencido ou eu estivesse de mau-humor, pois, a despeito da seriedade da atuação de Rosa Maria, acabei me derramando em risos. Um riso, bem verdade, todo original: de um espírito vítima de cócegas causadas pelo espinho de um script cínico e varado por preconceitos: tipo assim o da “tia coroa e invejosa que tinha um caso com o marido da sobrinha mais jovem para aproveitar as migalhas: única coisa a que ‘esse tipo de gente’ teria direito”.
De repente, um abismo se abre na narrativa. Após ser expulsa da casa da sobrinha traída, Magda, a personagem de Rosa Maria, segue sem rumo. Ninguém lhe dá abrigo e ela vai parar num refinado quarto de hotel, localizado provavelmente no último andar.
Entra em cena outra dose de realismo fantástico, quando a personagem dá como gorjeta, para o funcionário que traz suas malas, notas de 50 e 100 reais (aos que no futuro lerem esta postagem, saiba-se que tais notas pertenceram ao panteão da pecúnia).
SalvadorDalí - Muchacha en La Ventana |
Vestido numa camisola negra, perfumada com leve aroma de clichê, o talento de Rosa Maria é coroado pelo poema camoniano Erros meus, Má fortuna, Amor ardente, proferido pela personagem Magda. Nesse instante, o espinho cínico foi atordoado e a predisposição à galhofa ficou travada na garganta. Rosa Maria e aquela cena eram apátridas no enredo do último capítulo de O Astro.
A seguir, uma elegante e anacrônica cadeira, disposta à beira da janela aberta com cabelos de cortina ventilada, sugeria morte. Por um instante, a novela torna-se literatura, mas também arte plástica, visto que a cena cita pinturas como A primavera em Goscieradz (Léon Wyczólkowski) e Muchacha en La Ventana, de Salvador Dalí. De forma bela e enigmática, o enredo de O Astro perguntou: Para onde foi a moça pintada por Dalí quando sua juventude partiu?
Numa cena mais adiante, porém, o enigma de Rosa Maria foi ferido sem dó nem piedade pelo espinho cínico. A auxiliar de um delegado, cuja função na trama é a de investigar o “misterioso” assassinato do “importante” personagem Salomão Hayalla, revela: “Estão reunidos aqui todos os suspeitos, com exceção da dona Magda, que partiu desta para uma melhor.”.
Segue-se a montagem de um circo “inspirado” nos desfechos dos livros de Agatha Christie.
Quem matou Salomão Hayalla? Não poderão me acusar de desmacha prazeres se eu entregar o ouro (ou melhor dizendo o arame), posto que a resposta é: todos mataram Salomão Hayalla, inclusive o mordomo da casa. Cada um dos suspeitos o matou um pouquinho. O mordomo colocou cápsulas de veneno no lugar dos comprimidos que Salomão costumava tomar. Quando começava a agonizar, Salomão recebe uma coronhada de revólver por parte de seu irmão, que não teve coragem nem competência para seguir o rótulo de instruções da arma.
Por fim, Salomão foi defenestrado por sua esposa Clotilde, interpretada por Regina Duarte.
Meu impulso primeiro foi contrastar as interpretações de Rosa Maria e Regina Duarte. Mas logo vi que ambas foram igualmente magistrais, posto que nunca vi alguém representar tão bem o papel de atriz canastrona como Regina Duarte: é das melhores comediantes que já vi. Ela também foi uma apátrida no enredo de O Astro: alma de Greta Garbo presa na interpretação de Lucille Ball, ou vice-versa.
O maior mistério da trama ainda estava por vir. Até agora me pergunto se o personagem principal, Herculano Quintanilha está vivo ou morto.
Durante uma festa, Herculano celebrava a proximidade da felicidade eterna ao lado da personagem Amanda, vivida por Carolina Ferraz, que acabara de contar que estava grávida.
Uma “felicidade” no mínimo suspeita, posto que tinha como cenário um país chamado Santa Fé, no qual Herculano utiliza seus poderes mágicos para apoiar o ditador que governa o lugar. Suspeita também por ter sido precedida por uma tórrida noite de amor regada pela voz interior de Herculano que, na verdade, revela-se uma citação da poesia de Baudelaire: "Queria mesmo era colher o grito pleno/ da tua alma cheia de tormentos.”. Em tempos de crise, até a voz interior dos personagens tem pedido empréstimos...
Subitamente, a festa é invadida por guerrilheiros mascarados semelhantes aos integrantes das Farc. Os mascarados metralham tudo ao redor, incluindo Herculano, que vai ao chão agonizante.
Corte para uma cena numa praia paradisíaca em que Carolina Ferraz aproxima-se de uma criancinha e pergunta: “Meu amor, você tá aqui sozinho?”.
Eis que surge Herculano, dizendo: “Ele não tá sozinho não!”
A partir daí, mistério: Seria aquele um Herculano sobrevivente ou o espírito de Herculano. Se bem que, para dar crédito a esta segunda alternativa só com ajuda do realismo fantástico, posto que é difícil pensar num fantasma que beija e abraça uma mulher e ainda ensina truques de mágica para o filho pequeno.
Há ainda uma terceira hipótese. A de que o ataque dos guerrilheiros à festa tenha sido um plano de Herculano para simular sua morte e poder usufruir, posteriormente, uma “felicidade eterna” e anônima.
Por mais críticas que se queira fazer, não se pode dizer que o último capítulo de O Astro não foi marcante. Despertou do riso à perplexidade para quem não tem medo de enfrentar os espinhos cínicos da cultura.
Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente
Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!
Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"
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