26 de março de 2012

Fina Estampa troca final com chave-de-ouro por final com chave-inglesa: lágrimas de Boccaccio e Agatha Christie

The patient Griselda - by Frank Cadogan Cowper (1877-1958)

A Ana Carolina Morais, cujas observações inspiram este texto




O ator Alexandre Nero tentou fazer jus ao sobrenome, mas não conseguiu lançar chamas sobre o aguado texto do último capítulo da novela Fina Estampa, de Aguinaldo Silva. Na verdade e na mentira, para salvar esta novela seria necessário que ela fosse reescrita por alguém cujo sobrenome fosse Taumaturgo (do grego: aquele que opera milagres).

O capítulo de Fina Estampa foi ao ar numa sexta 23 com jeito de sexta-feira 13. Funcionou como um despertador, rasgando a terra para perturbar o descanso de algumas personalidades do mundo literário, que tiveram suas obras citadas durante a exibição desta pérola digerida ao contrário pela ostra da teledramaturgia.

O capítulo pisou a já repisada fórmula da cena em que a mocinha é sequestrada pela vilã, fórmula esta cujo gosto de clichê só conseguiu ser suavizado na novela Selva de Pedra, escrita por Janete Clair, que não conseguiu escapar do despertador inoculado no enredo de Fina Estampa.

Agatha Christie foi das maiores escritoras que o mundo conheceu. Ela subverteu a lógica clássica que enlaçava, na narrativa, a origem, o clímax e o desenlace. A literatura, em Christie, coloca em suspensão esta sequência. A origem traz entre parênteses o clímax e o desenlace (a mesma coisa acontecendo com o clímax e o desenlace).

O derradeiro capítulo de Fina Estampa tentou aludir à obra de Agatha Christie. Uma das estratégias para lograr “êxito” neste empreendimento foi a de reunir grande parte do elenco na casa da protagonista a fim de solucionar o “mistério” Onde estará Griselda?, que havia sido, de uma só vez, sequestrada duas vezes: uma pela vilã, outra pelo mau uso de um cansado clichê. E, ao cabo, a funesta citação a Agatha Christie, conseguiu gerar o efeito-suspense: de deixar o espectador "ansioso", tentando imaginar qual era a próxima obviedade a se inserir na cadeia sintática de mesmices.

Reunidos na mansão da protagonista - personagem que remete, de forma dantesca (sem ofensas a Dante) a uma mistura frankensteineana de Luzia-Homem, Diadorim, Maria Bonita e Joana D’Arc  – os personagens lembravam a grandeza épica de Griselda: grandeza que alude (ou desilude) ao conto homônimo de Boccaccio.

De alguma forma, a Griselda de Aguinaldo Silva terminou se revelando uma “reencarnação”... Ironicamente, não uma reencarnação da Griselda de Giovanni Boccaccio, mas sim de seu par, o personagem Gualtieri. E como tal, fez da novela um jogo para testar, às últimas consequências, a paciência do telespectador. O pior é que, no fim, Griselda-Gualtieri recompensou sua "amada" esposa-audiência com uma boa dose de remédio para prisão-de-bocejo.

O mar foi o cenário de fuga da antagonista, Tereza Cristina. Uma referência, ao avesso, à esposa de Dom Pedro II, a personagem de Fina Estampa era igualmente amante da arqueologia. Grande parte de suas ações foram vestígios arqueológicos da novela anterior de Aguinaldo Silva. Com destaque para as técnicas de morticínio da vilã, que fazia questão de lembrar, depois de cada assassinato cometido, que sua musa inspiradora era a personagem Nazaré Tedesco, vilã de Senhora do Destino.

Mais uma vez a trama “a la Agatha Christie” reúne os personagens , que assistem à tentativa literalmente tempestuosa de fuga da vilã, a bordo de um naufrágio disfarçado de barco.

Na praia, os mocinhos reunidos aludem a uma confraternização de fim de ano dos Superamigos, com direito a frases de efeito como: “Pelas santas árvores loucas, esta mulher má não pode ficar impune”. Mas, longe do tom naif imortalizado nas frases de Tintim, as frases na boca dos personagens de Fina Estampa denunciavam a respiração ofegante de um enredo esgotado, à beira de um ataque de cinismo. Cinismo este emblematizado pela tentativa dos atores de controlar, diante de suas falas, a vontade de rir.

Com um ineditismo que faria Joyce corar, o “almirante” do barco que conduzia miss Tereza Cristina elogia a tempestade e resolve sair e se equilibrar na popa, entregando sua alma a Netuno.

Depois da aparente morte de sua inimiga, Griselda é convidada a proferir um discurso como paraninfa da turma de medicina de seu filho pródigo, Antenor. No discurso, a tônica é o slogan de cunho neo-conservador “O estudo ajuda, mas é o trabalho duro que dignifica”, coroando o abismo, à moda brasileira, que insiste em divorciar trabalho e estudo.

“Se estudou, tudo bem, se não, o que vale é o trabalho”, apregoa Griselda, convidando a audiência a contemplar, saudosista, o conformismo medieval com um mundo compartimentado e hierarquizado, onde os servos devem celebrar sua condição servil e ainda guardar entusiasmo para vibrar pela oportunidade de serem explorados pelos suseranos. E esse discurso soa ainda mais hipócrita ao ser contrastado com a fala de Antenor que, um pouco antes, solta a seguinte pérola: “Continuamos a mesma coisa que antes. A diferença é que agora temos muito dinheiro!”.

Mas, Netuno certamente não era fã da novela, pois, como se verificou adiante, Tereza Cristina, dada como morta, estava viva, numa alusão ao filme Sexta-feira 13, a Carrie, a estranha, de Stephen King e à série de filmes Pânico, de Wes Craven. E, com esta “reviravolta”, volta a tocar o despertador aos pés da cama de Agatha Cristie...

É quando Griselda, ao caminhar pela rua, é alertada por seu sentido de aranha, de que algo estaria errado. Ela percebe a aproximação de um carro noir, tipo High lux, que, também de forma inédita, foi utilizado como signo de status. O vidro do carro abaixa. Suspense... Revela-se Tereza Cristina. Aturdida, Griselda saca de sua bolsa uma chave-inglesa e diz: “Aqui, ó”.

Depois disso, aparece o nome Fim e sobem os créditos da novela ao som da música Recado, de Gonzaguinha, que tem a paz de seu descanso perturbada. Ele ainda tenta descobrir de onde vem o tom de galhofa do toque de um despertador chamado Fina Estampa.

Recado - Gonzaguinha


21 de março de 2012

“Só existem dois tipos de homens, amigo, os Teodoros e os Vadinhos”, garante Xico Sá

dona flor e seus dois maridos (homenagem a jorge amado) " dona flor and her two husbands ( tribute to jorge amado,brazilian's writer)"
Dona flor e seus dois maridos (homenagem a jorge amado) 
Pintura de Martinsland


A frase que serve de título a essa postagem abre o primeiro texto da série Grandes Canalhas da Literatura, de autoria de Xico Sá.  Trata-se de um aforismo, uma máxima ou sentença que acredita exprimir um princípio universalmente válido.

Vadinho e Teodoro, como é bem sabido por quem bem o sabe, são os dois maridos de Dona Flor, personagem principal da obra Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado.

"Interessante" que a referida frase é taxativa e restritiva, mas tenta se cercar de "generosidade", oferecendo ao leitor duas opções de essência: Vadinho e Teodoro. Mais adiante, o texto de Xico Sá desiste da tentativa de generosidade, ao designar como O sonho da Mulher o de ter um homem que seja ao mesmo tempo Vadinho e Teodoro, que seja, nas palavras de Xico Sá, “uma muqueca de machos fervida na testosterona”.

Interessante perceber que, neste texto de Xico Sá, “ser homem” e “sonho da mulher” compartilham do mesmo significado: falta de opção.

Pergunto-me se Vadinho e Teodoro não têm direito de ser algo distinto deles mesmos. E peço emprestada do Nobre uma pergunta perspicaz: “O que fazer se sou homem e, ao me olhar no espelho, não enxergo nem Vadinho nem Teodoro?” ou “Deixo de existir como homem se sou algo além ou aquém dos extremos Vadinho e Teodoro?”.

O que fazer quando me olho no espelho e me recuso a resumir minha hombridade a ser “um raparigueiro, um piolho de cabaré” (forma como Xico Sá descreve Vadinho)  ou  “uma máquina de cumprir deveres” (forma como Xico Sá descreve Teodoro).

O sonho de uma mulher pode ser resumido a ansiar por um "homem" que seja a mistura contraditória de estereótipos extremados de homem?

O ser homem pode se resumir a uma essência? E uma essência pode se resumir a duas opções? E duas opções podem se resumir a dois estereótipos referentes ao homem? E dois estereótipos referentes ao homem podem se resumir à imagem de uma genitália masculina sexomaníaca ou à imagem de uma carteira de dinheiro aberta e gentil?

Para onde vão, então, os homens, quando se cansam de ser, por pressão da cultura, Vadinhos ou Teodoros? 

Além disso, a pressão não deve ser entendida somente como obrigação, mas também como obrigação que se esquece de sua origem e se torna alvo de alienada celebração social: o que acontece com os estereótipos Vadinho e Teodoro.

Os aforismos de alguma forma me incomodam. E isso é bom nos tempos em que a paralisia da argumentação se disfarça de dialética e faz parecer que tudo é passível de se concordar com. Entre um aforismo selvagem e uma sucessão interminável de “Sob esse ponto de vista, até pode ser”, prefiro que haja os dois para que, do conflito entre eles, a dialética encontre força para driblar seus vícios.

Leia o texto de Xico Sá aqui.

17 de março de 2012

Por que Air Supply não canta mais Lonely is the night?



Estávamos chegando ao Chevrolet Hall, em Recife, para assistir ao show de Air Supply. Foi quando minha amiga Iliana comentou que a banda não cantaria a música Lonely is the Night. Como assim? Toda a propaganda do show havia sido ilustrada por essa música...

O britânico Graham Russell e o australiano Russell Hitchcock fizeram do filme "Por que não mais cantar Lonely is the night" uma obra de suspense digna de Alfred Hitchcock, mas sem dar direito à audiência de, ao final, ter o mistério desvendado...

Entrei no Chevrolet Hall tendo de administrar um dos mais velhos dilemas da espécie humana: o diálogo inconcluso entre esperança e desapontamento. Mas este dilema é bem mais sofrível de se lidar com quando a alma é encarada como um tipo de máquina polaroide da qual os sentimentos espirram como fotografias instantâneas que, logo mais adiante, vão se apagar...

...Os sentimentos devem ter uma parcela de imediato, mas, certamente também, são projetados e construídos. Não são tanto um crime premeditado. São mais uma peça arquitetônica. E digo isso porque acredito que o sentimento é resultante do não que somos capazes de dizer à natureza que habita em nós.

Como observa a filósofa Viviane Mosé, trazemos a natureza nos poros tanto do corpo quanto da alma. Somos o desejo imediato assim como um rio é o impulso imediato de seguir seu fluxo ou como uma fera é o impulso imediato de devorar. A humanidade em nós tem o poder de dizer não a este impulso. Não um não de um censor ditatorial ou de um carrasco que comanda um pelotão de fuzilamento (e se for assim, corre-se o risco de negar a animalidade em nós, transformando-nos em zumbis). Mas sim, um não de um artífice que precisa represar a água para ser capaz de conseguir o prêmio da energia elétrica.

...Os sentimentos nascem nesta encruzilhada entre a fluidez e a represa e, com eles, a dor, mas também a arte.

Graham Russell é o principal compositor das canções da banda Air Supply. Ele compõe diariamente e, ao longo do tempo, vai juntando os pedaços de sentimentos. Ele sabe que nenhuma esperança é completa, como também nenhum desapontamento o é.

E, mesmo sem haver sido tocada a música Lonely is the night, o show me deu oportunidade de represar o desapontamento e acender a faísca elétrica da esperança. Isso não vai garantir que a dor ou a solidão, ou o tédio ou a alternativa vai deixar de existir. Mas também que mania a nossa de querer que o amor amordace as alternativas e as lance no porão do esquecimento! Mas, né foda!

... Graham Russel, no meio do show, falou sobre como o amor se revela ao fazer de sua razão de ser ser como um rio que flui entre os seres. " We do not fall in love. It is love that fall in us". Porém, este fluir
é composto de egoísmos, mas também de abnegação; de doçura, mas também de cinismo...

Eu diria que nós caímos no amor e o que o amor cai em nós e que é incrível como estes dois tipos de queda já fizeram tantos mortos se reerguerem de suas tumbas.

- Você não se manca de ter esperança?
- Oui, Je me manque e sinto falta de mim quando não posso sentir falta de quem amo. Melhor dizendo, sentir saudade... Porque falta só sinto do que perco e saudade sinto até do futuro, mesmo que eu venha a ser desapontado.

16 de março de 2012

A música triste do Chaves e seu misterioso elo com Shakespeare, Cervantes e os origamis

Chaves



Roberto Bolaños, criador das histórias do personagem Chaves, recebeu, recentemente, homenagens de 17 países das Américas. O evento aconteceu no México, onde Bolaños é mais conhecido como Chespirito, diminutivo carinhoso de Shakespeare (ou Chekspir, em Espanhol). 

Este apelido foi dado pelo cineasta Agustín P. Delgado a fim de destacar a semelhança entre o dramaturgo inglês e o dramaturgo mexicano.

Estão presentes, nas histórias Del Chavo Del Otcho, ingredientes shakespeareanos. Um tom trágico se ergue como paisagem de fundo de uma narrativa em que a comédia não é propriamente um fim, mas um meio, um desvio que nos conduz meio que desavisadamente aos domínios da tragédia.

Basta lembrar certas situações de alguns episódios, como o momento em que a personagem Chiquinha, interpretada pela atriz Maria Antonieta de las Nieves, pergunta a Chaves se ele conhecia o mar. Ele mentiu, dizendo que sim. A seguir, Chiquinha, para testar a veracidade da afirmação, pergunta a Chaves qual o tamanho do mar. Ele responde, com um gesto, que o mar tem a medida da distância entre suas duas mãos separadas (menos de um metro). Chiquinha pergunta de onde ele tirou aquele absurdo e ele diz que aquele era o tamanho do mar quando visto na tela de uma televisão.

Assim como acontece nas histórias de Chaves, na obra de Shakespeare, era comum a oscilação entre tragédia e comédia. Porém, a presença da comédia era restrita, funcionando de certa maneira como um momento de intervalo. 

Além disso, os lances de comédia eram providenciados por personagens que não pertencem à elite. Como observa o antropólogo Norbert Elias, esta estratégia de Shakespeare – hoje considerada como algo revolucionário - era vista com maus olhos pela nobreza de outros países europeus. A mistura de diferentes estratos sociais era entendida como um insulto ao formato canônico da tragédia.

Na versão brasileira das histórias do Chaves, a música de fundo para os momentos mais tristes é de autoria do musicista clássico John Charles Fiddy, da Grã-Bretanha. Talvez isto seja um indicativo inconsciente da conexão entre as histórias de Bolaños e as de Shakespeare. 

Não seria estranho se em vez de Chespirito, Bolaños tivesse sido apelidado de Cervantito, em alusão a Miguel de Cervantes. A figura de Chaves também remete à obra Dom Quixote, porém de modo peculiar, promovendo, nos diferentes personagens, a fusão contraditória do caráter naif de Dom Quixote e da astúcia de Sancho Pança.

Os origamis são a arte japonesa de criar diferentes representações com dobras geométricas de uma peça de papel, sem cortá-la ou colá-la. O sentido da dobradura, no origami, é a exploração artística da vacilação, da hesitação, da indecisão. É uma arte que se pauta pela oscilação.

A narrativa de Chaves tem um caráter análogo ao do origami. Um dos grandes elementos causadores do riso, em Chaves, é a oscilação de caráter dos personagens, que, num momento comportam-se como crianças inocentes e no seguinte como adultos cruéis. E o contrário também ocorre. Os adultos são tomados pela inocência e as crianças pela crueldade. Portanto, outro apelido que Roberto Bolaños poderia receber é o de Akirito, em referência ao japonês Akira Yoshizawa, o principal responsável por conferir à técnica do origami o estatuto de arte.

Não dá pra deixar de mencionar a controvérsia com relação à autoria e ao nome da música triste do Chaves. Alguns pesquisadores admitem que a música se chama Farewell my lovely e é de autoria do também britânico Alan hakwshaw.

Saiba mais sobre John Charles Fiddy e sobre a controvérsia com relação à autoria da música triste do Chaves.

John Charles Fiddy - Mum
ou Farewell my lovely de Alan hakwshaw?


Boa Noite, vizinhança!

8 de março de 2012

O dia em que o poeta homenageou a mulher e agradeceu pelo não-beijo de quem ama

Esperança - Foto by Clécio Vidal


Poema sem título
Autor: Carvaille Lope (1810-1860)


As mulheres aprenderam a dar a volta ao mundo a bordo de seus silêncios
E a dar mundo às voltas e idas, através de seu grito
Grito seu de través, idas e voltas, ás, mundo de ar, de ais

A mulher não temeu dar à luz mesmo sendo virgem
Virgem, mesmo sendo a luz, dá-me teu não, Mulher
Dá-me teu não, amor! E eu oferecerei meu sim a contra-tapa

Não sei de qual devassidão saí(saíste), mas, quero lançar segundo por segundo
Toda a pureza que me resta neste não sei onde
Por favor, proíba-me de te amar, de falar no meu idioma
Proíba-me, pra que assim, diante de tua face rubra de raiva
Eu seja impedido de seguir adiante
Adianta seguir desimpedido e jazer no meu próprio eu?
Obrigado pelo receio que me fazes sentir de te olhar,
Pois este receio é um jeito de te abraçar sem braços
Já que com os braços não posso

Que felicidade me é tua ira,
Testemunha de que estás vivo e forte (se forte e vivo estás de que me servem testemunhas?)
E lutando para me vencer
E se o desprezo que eu ganhar for o preço a ser pago pela tua vitória
Deixe que eu tenha o privilégio de te entregar o troféu

Não me importa esquecer como se olha para outras pessoas
Desde que seja para deixar meu olhos em vigília, em espera orante por teu não-sorriso
Se minha pele desacorrentar o sentido do tato
É para deixá-lo livre para comemorar sua liberdade em compasso de espera por teu não-abraço

Quando o gosto se divorciar da minha língua,
Iniciará uma jornada em busca do teu não-beijo
Se o não-beijo, o não-toque e o não-sorriso te fazem presente em minha vida
Vida minha em presente te fazem o não-sorriso, o não-toque, o não-beijo, o se
Então, muda-te para perto de mim com tua distância, teus nãos e esse jeito de se fazer
Presença subentendida, ardendo secretamente, sub-repticiamente doce, veladamente terna
Presença que me ama quando se despe dos escombros do não-amar.


No Surprises - Radiohead

6 de março de 2012

Faltam cinco minutos para o Apocalipse: o dilema do Tic-Tac entre milagre e paranóia

Melting Clock
Fonte: Amazon


Recentemente, o relógio do apocalipse, localizado na Universidade norte-americana de Princeton, foi adiantado em um minuto, passando a marcar cinco minutos para a meia-noite. Diferentemente dos relógios comuns, o do apocalipse anda para frente e para trás. O parâmetro para o caminhar dos ponteiros é o surgimento ou a intensificação de fatores que colocam a Humanidade em risco de ser extinta.

Criado em 1947, o relógio do apocalipse é o que se poderia chamar de cúmulo simbólico. O próprio relógio já é a materialização de um tipo de paranóia (ou paranoia, conforme a nova regra ortográfica :P).

Costuma-se definir a paranóia como um delírio autotrófico. Em outras palavras, é um delírio que se auto-alimenta, que se funda e se reflete em sua própria lógica interna, bloqueando pontos de diálogo e de enfrentamento com lógicas vindas de fora. Em sendo um delírio fundamentado logicamente, não se subordina a alucinações, como é o caso da esquizofrenia paranoide.

O relógio, em seu formato moderno, caracterizado pela sucessão ininterrupta de parcelas de tempo que se subdividem ad infinitum, tem raízes no século XVI, estando relacionado à descoberta da lei do pêndulo por Galileu Galilei.

Daí, já podemos traçar um perfil resumido das características psicológicas do relógio mecânico. Em sendo filho do pêndulo, o relógio está ligado ao hipnotismo, ou à capacidade de uma voz de outra pessoa limitar (porém, sem anular) nosso auto-controle, inserindo-se em nosso terreno psíquico.

Comumente, as pessoas superlativizam os termos ligados a estados mentais, esquecendo-se que, muitas vezes, os estados mentais fazem parte da vida de qualquer ser humano, em doses diferentes. O transe hipnótico, por exemplo, pode ser provocado por uma imagem bonita, uma aula bem dada, uma conversa interessante, uma leitura prazerosa. É o mecanismo psíquico responsável por aquele momento da atenção em que saímos de nós e “mergulhamos” no outro. Claro, que, em situações normais, o ciclo do “prestar atenção” é finalizado com o retorno a nós mesmos.

Do mesmo jeito acontece com relação à paranóia. O bom e velho ser humano normal tem seus momentos paranóides.  Imagine-se ao chegar num ambiente em que pessoas mencionam seu nome e depois fazem silêncio... Onde há reticências, há um quezinho de paranóia. Nossa lógica interna começa a montar um enredo a fim de completar as lacunas que a situação social não preencheu.

O ciúme é uma manifestação de paranóia, bem como a megalomania (quando a pessoa crê que sua coerência interna a torna auto-suficiente). Há quem diga que mesmo o amor tem uma dose de paranóia, visto que os amantes, ao se amarem, precisam ignorar muitas perturbações externas para que o relacionamento preserve a auto-sutentabilidade. O temor da paranóia, com relação a interferências externas, explica o dito popular “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

A mania de perseguição é só uma das formas pelas quais a paranóia se expressa. Certamente, existem graus intensificados de manifestação paranóide. Mas, isto já é terreno para intervenção psiquiátrica.

Porém, tem sido comum a tendência de encarar os outros como paranóicos em virtude do medo que estamos adquirindo dos tesouros gratuitos. Temos tido medo da gentileza, da atenção, como se estas fossem armadilhas esperando bobearmos para nos capturar. Numa outra direção, temos medo do contraditório, da divergência, como se o consenso pleno e irrestrito fosse o melhor dos mundos. Mas, como diria Habermas, o consenso é um dos momentos da estrutura de diálogo da sociedade, mas não é e nem deve ser encarado como momento único. Quando só há consenso, a ignorância, o fanatismo e a tirania (os piores males segundo Fernando Pessoa) tornam-se armadilhas quase incontornáveis.

Voltando para trás no tempo, quando falávamos do relógio... O relógio hipnotiza, pois diante dele abrimos mão de uma parcela de nosso auto-controle. Não há como nos deixarmos reger pelo relógio sem nos tornarmos um pouco paranóicos. O relógio só surte efeito, só “cola”, porque incita nossa mania de perseguição. O medo de chegar atrasado é o medo de que seja desencadeada uma onda de consequências danosas devidas ao fato de o tempo ter nos alcançado. A pontualidade não significa estarmos quites com o relógio, mas sim mantermos o ponteiro – a nova roupagem da flecha atirada por Páris – longe de nosso calcanhar de Aquiles: a falibilidade.

O tic-tac é o alerta de que uma bomba está prestes a explodir e que precisamos estar vigilantes e prontos para desarmá-la. Mas, como descendentes de Sísifo, sabemos que ao desarmar uma bomba, encontraremos dentro dela outra armada até os dentes. Ou como diria Benjamin, no texto das Passagens, o relógio é como uma roda de jogo, sendo as horas, minutos e segundos, casas à espera de que apostemos nelas sonhos, expectativas e também dinheiro.

A última vez que o relógio do Apocalipse foi atrasado foi em 2007, quando a eleição do presidente norte-americano, Barack Obama, aumentou as esperanças de uma maior cooperação mundial. Nesta ocasião, o relógio marcava seis minutos para a meia noite.

Contudo, as coisas já estiveram piores. O relógio do apocalipse chegou a marcar dois minutos para a meia-noite em 1953. Era o ápice da Guerra Fria, ocasião na qual os Estados Unidos e a antiga União Soviética testaram armas nucleares.

Relógio do Apocalipse (Universidade de Princeton)
Fonte: Revista Veja
Em 1991, houve o maior “atraso” desse relógio. Era o último suspiro da Guerra Fria. O relógio marcava 17 minutos para a meia noite, quando norte-americanos e soviéticos assinaram um tratado de desarmamento, abrindo espaço para que  a chamada "cortina de ferro" se rasgasse.

Na Bíblia, há um episódio em que também é encarado de forma positiva o andar para trás do relógio. Um rei chamado Ezequias estava prestes a morrer. O profeta Isaías havia sido incumbido de selar o destino desse rei por meio de uma profecia. Diante da sincera e profunda tristeza-vontade-de-viver de Ezequias, Deus se compadece e dá a ele a chance de continuar vivo. 

Como sinal deste milagre, Deus fez a sombra do relógio solar andar para trás. Por amor, Deus desmente o destino e se permite se arrepender e “voltar atrás”. No seio de uma atmosfera épica, Deus se permite uma atitude romântica, contrariando a profecia e antecipando o discurso de São Paulo sobre o amor: Passarão as profecias, o conhecimento, mas o amor não passará.

Este episódio foi, no século XV, associado à figura da Virgem Maria pelo poeta italiano Bernardino de Bustis, autor do Ofício da Imaculada Conceição. Bustis compara Maria a um relógio que andando atrasado serviu de sinal ao Verbo divino (Jesus Cristo). O andar atrasado, neste caso, pode simbolizar tanto o atraso do ciclo menstrual, denotando a gravidez, quanto o momento em que o impossível se converte em possível (uma moça virgem gerar uma criança). A seguir, o referido verso de Bernardino de Bustis:

Deus vos salve, relógio, que, andando atrasado, serviu de sinal ao Verbo Encarnado.
Para que o homem suba às sumas alturas, desce Deus dos céus para as criaturas.
Com os raios claros do Sol da Justiça, resplandece a Virgem, dando ao sol cobiça.
Sois lírio formoso que cheiro respira entre os espinhos. Da serpente a ira Vós a quebrantais com o vosso poder. Os cegos errados Vós alumiais.
Fizestes nascer Sol tão fecundo, e como com nuvens cobristes o mundo.
Ouvi, Mãe de Deus, minha oração. Toquem Vosso peito os clamores meus.

O relógio - Vinícius de Morais - versão cantada por Walter Franco

O relógio - Vinícius de Morais


4 de março de 2012

Ferido mortalmente por sir Lancelot e por um Australopithecus

Fenearte 2011


Marcel Frey é um poeta alemão nascido no início da década de 1980. Ele não tem, no campo da poesia, a mesma notoriedade que possui como designer gráfico. Impressionam, na poesia deste ilustre desconhecido, as referências ao universo poético brasileiro e sua refinada ironia no que diz respeito ao conflito entre ciência e religiosidade. A seguir, um de seus poemas, traduzido para o português de Portugal.


Lancelot

Na vida atual, nasci sem acreditar em reencarnação
E noutra d’antes vivi tant’inferno
Que não sobrou crença para o diabo
D’homem tão dividido que fui,
Como ter alma o bastante
Para reencarnar ou ressuscitar?
Meu corpo foi mutilado
Pela guerra, por Lancelot, por Caim
E por um Australopithecus filho da mãe dele
E, nessa vida, vivo
A me esconder dos sustenidos que
Povoam o fio da lâmina de Jack, o estripador
Resultado: nem ateu de ser seria capaz
Pois como ser ateu sem o ser de corpo e alma?
No meu chacra frontal, mora Voltaire: de aluguel
No meu terceiro olho, mora Cruz e Souza: de favor
Na minha mão esquerda, mora Platão, desde
Que foi expulso de uma república de jovens
Resultado: tenho duas mãos direitas!
Na ponta de minha pena, mora Graciliano:
E cobra caro para morar de favor
E, no meu tinteiro, vivem Cecília, Clarisse, Coralina,
Todas aos cuidados de Hipárquia
É o tinteiro que salva o que escrevo
E que aduba minhas palavras colhidas em Luxemburgo
Entre minha cabeça e o tinteiro,
Há um escorrego onde brincam
Almas de poetas ancestrais
E par’onde poetas do futuro
Insistem a subir em contrafluxo.

1 de março de 2012

Como estar perto, estando por longe e estar longe, estando por perto? Primeira reflexão sobre a arte de Sônia Noronha


Passagem - pintura de Sônia Noronha


"Vejo os grandes e largos rios como passagem que tem a capacidade de nos guiar para um destino melhor. essa foi a inspiração que me moveu a pintar esta cena" - Sônia Noronha

Dedicado a G. T.


Um dos quadros da pintora Sônia Noronha retrata o curso de um rio cercado por densa e verde mata. Uma linha imaginária divide este rio em dois “hemisférios”. Apesar de ser escoltado por vegetação em ambas as margens, o rio, misteriosamente, só reflete esta vegetação em um dos hemisférios. Reflexo e ausência de reflexo são metáforas da presença e da ausência, da distância e da proximidade.

Este rio conduz um barco invisível: o enigma da presença (ausência). Assim como se relacionam o rio e a vegetação que o margeia, relacionam-se as pessoas. As margens do rio estão sempre ao seu lado (imagem da vegetação refletida pelo rio), mas, como são terra-firme, estão igualmente distantes (imagem não refletida).

Quantas vezes perdemos a chance de estar perto de quem amamos porque temos medo de nos refletirmos neste quem e assim termos roubada a sensação de sermos terra-firme... O medo é a pior armadilha em que nossos espelhos podem cair. E também temos medo de nos aproximarmos e não conseguirmos refletir nada no outro.  É o medo de em nada correspondermos às expectativas alheias, medo de que nossas próprias palavras se tornem como vampiros: irrefletidas pelo espelho que bate no peito daqueles que desejamos tornar vítimas de nossa atenção.

Há ainda um outro terrível medo, o medo de deixarmos de ser presença e nos tornarmos ausência; medo de deixarmos de ser margem refletida e virarmos margem tingida de invisibilidade. Talvez seja o pior medo, mas também a maior esperança. Quando nos percebemos como um rio dividido entre a presença e a ausência, percebemos que nem a presença nem a ausência anulam a profundidade que existe em nós.

Pouco importa se haverá momentos em que faltarão palavras. Quem ama um amor que é rio profundo saberá que as palavras que faltam são reflexo de uma só das margens desse rio. É por isso que existem pessoas que por mais distante que estejam no tempo e no espaço, quando se reencontram parece que sempre estiveram juntas. Isso acontece porque estas pessoas já se deram conta de que a presença e a ausência estão menos ligadas ao tempo e a distância do que ao modo como nos permitimos espelhar o outro no mais profundo de nós.

Não invente de ter medo quando faltar assunto ou quando aparecer aquele tema que vocês discordam ou quando pintar aquele clima tipo “Ele ou Ela e tão inteligente e eu tão burro ou burra” ou “Só tenho uma frase para dizer” ou “Não vou conseguir ser alegre o bastante ou sério o bastante” ou “Ele ou Ela vai preferir outra pessoa” ou  “Eu tenho de ser sempre motivo de orgulho” ou “Eu preciso ser desimportante para não correr o risco de ele ou ela fazer de mim uma ausência em sua vida” ou “Ele ou Ela terá nojo de mim” ou “Amanhã, não se lembrará do meu nome” ou “Se ele enxergar minha fraqueza, a utilizará um dia contra mim”...

Ou “Eu preciso ser mais foda do que ele ou ela para que ela ou ele dependa da minha presença e da minha ausência”. Sim, nós corremos o risco de nos tornarmos dependentes químicos da ausência dos outros. E o tratamento, por mais redundante que pareça, é amar o outro com suas presenças e suas ausências.

Medo e desconfiança são extensões do instinto de sobrevivência, mas não vale a pena fazer do instinto de sobrevivência desculpa para olharmos para os outros e para nós mesmos como sendo puramente presença ou puramente ausência. Se alguém é para nós puramente presença ou puramente ausência, não passará de um desconhecido. Como dirá a pintora Sônia Noronha, somos uma passagem, e, como passagem, somos ou uma ausência em busca da presença que perdeu ou uma presença em busca da ausência que perdeu. A presença não é presença se não tem encontro marcado com a ausência (a recíproca é verdadeira até que se prove o contrário).

Este tipo de recomendação não garante que teremos um milhão de amigos no Facebook, mas pode nos incitar a abrir o livro que se esconde na face de um amigo. E temos medo de abrir esse livro porque queremos fazer dos amigos um eterno final feliz quando se sabe que a amizade é uma obra aberta, cujo clímax está no enfrentamento das complicações da história.

Pare pra pensar se não haverá momentos em que estando ausentes é que nos fazemos mais presentes. E momentos em que nos fazemos tão presentes que acabamos tornando o outro uma ausência ambulante. Podemos estar presentes na vida do outro tanto como presença quanto como ausência e podemos estar ausentes da vida do outro tanto como presença quanto como ausência: C’est la vie, mon ami (já dizia o narrador de O Pequeno Príncipe)!

Por isso, não nos iludamos com a ideia de que ao concordar em tudo nos fazemos presentes ou de que para nos fazermos presentes é necessário tornar o mundo inteiro uma ausência na vida do outro.

Deixar o emprego, ficar trancado ou então ter o melhor emprego e estar cercado de amigos por todos os lados. Nada disso vai mudar o fato de que somos um rio que em uma das margens reflete a presença e na outra a ausência. O desfecho inevitável do sonho e do pesadelo é acordar e acordar não seria se dispor a administrar as presenças e ausências que vão sendo cultivadas ao longo do dia, do mês, dos anos, da vida, da eternidade...?

E quão excitante é descobrir que amar não é compartilhar a presença com os outros, mas sermos com eles a profundidade de um rio formado tanto por presenças quanto por ausências.




Stay - shakespeare's sister



Trecho do filme Tão longe, tão perto, de Win Wenders
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