31 de outubro de 2011

O último capítulo de O Astro não é culpa da Grécia nem do protóxido de hidrogênio

A primavera em Goscieradz - Léon Wyczólkowski
Talvez o último capítulo de O Astro seja exemplo de como nem mesmo o mundo da ficção tem escapado à tendência que vem atingindo as bolsas de valores mundiais: quedas bruscas, leves altas e ondas de medíocre estabilidade. Mas, por favor, façamos um esforço e não culpemos também a Grécia pelo modo como se desenrolou o final da novela.

Um ponto alto do pôr-de-sol de O Astro foi o trabalho hercúleo de atuação de Rosa Maria Murtinho. É louvável o esforço dela para salvar a emoção do rio da mesmice de um texto que não chamarei de incolor, inodoro e insípido para não ofender o protóxido de hidrogênio. 

Talvez as correntes impetuosas da mesmice tenham vencido ou eu estivesse de mau-humor, pois, a despeito da seriedade da atuação de Rosa Maria, acabei me derramando em risos. Um riso, bem verdade, todo original: de um espírito vítima de cócegas causadas pelo espinho de um script cínico e varado por preconceitos: tipo assim o da “tia coroa e invejosa que tinha um caso com o marido da sobrinha mais jovem para aproveitar as migalhas: única coisa a que ‘esse tipo de gente’ teria direito”.

De repente, um abismo se abre na narrativa. Após ser expulsa da casa da sobrinha traída, Magda, a personagem de Rosa Maria, segue sem rumo. Ninguém lhe dá abrigo e ela vai parar num refinado quarto de hotel, localizado provavelmente no último andar. 

Entra em cena outra dose de realismo fantástico, quando a personagem dá como gorjeta, para o funcionário que traz suas malas, notas de 50 e 100 reais (aos que no futuro lerem esta postagem, saiba-se que tais notas pertenceram ao panteão da pecúnia).

SalvadorDalí - Muchacha en La Ventana
Vestido numa camisola negra, perfumada com leve aroma de clichê, o talento de Rosa Maria é coroado pelo poema camoniano Erros meus, Má fortuna, Amor ardente, proferido pela personagem Magda. Nesse instante, o espinho cínico foi atordoado e a predisposição à galhofa ficou travada na garganta. Rosa Maria e aquela cena eram apátridas no enredo do último capítulo de O Astro.

A seguir, uma elegante e anacrônica cadeira, disposta à beira da janela aberta com cabelos de cortina ventilada, sugeria morte. Por um instante, a novela torna-se literatura, mas também arte plástica, visto que a cena cita pinturas como A primavera em Goscieradz (Léon Wyczólkowski) e Muchacha en La Ventana, de Salvador Dalí. De forma bela e enigmática, o enredo de O Astro perguntou: Para onde foi a moça pintada por Dalí quando sua juventude partiu?

Numa cena mais adiante, porém, o enigma de Rosa Maria foi ferido sem dó nem piedade pelo espinho cínico. A auxiliar de um delegado, cuja função na trama é a de investigar o “misterioso” assassinato do “importante” personagem Salomão Hayalla, revela: “Estão reunidos aqui todos os suspeitos, com exceção da dona Magda, que partiu desta para uma melhor.”.

Segue-se a montagem de um circo “inspirado” nos desfechos dos livros de Agatha Christie. 

Quem matou Salomão Hayalla? Não poderão me acusar de desmacha prazeres se eu entregar o ouro (ou melhor dizendo o arame), posto que a resposta é: todos mataram Salomão Hayalla, inclusive o mordomo da casa. Cada um dos suspeitos o matou um pouquinho. O mordomo colocou cápsulas de veneno no lugar dos comprimidos que Salomão costumava tomar. Quando começava a agonizar, Salomão recebe uma coronhada de revólver por parte de seu irmão, que não teve coragem nem competência para seguir o rótulo de instruções da arma.

Por fim, Salomão foi defenestrado por sua esposa Clotilde, interpretada por Regina Duarte. 

Meu impulso primeiro foi contrastar as interpretações de Rosa Maria e Regina Duarte. Mas logo vi que ambas foram igualmente magistrais, posto que nunca vi alguém representar tão bem o papel de atriz canastrona como Regina Duarte: é das melhores comediantes que já vi. Ela também foi uma apátrida no enredo de O Astro: alma de Greta Garbo presa na interpretação de Lucille Ball, ou vice-versa.

O maior mistério da trama ainda estava por vir. Até agora me pergunto se o personagem principal, Herculano Quintanilha está vivo ou morto. 

Durante uma festa, Herculano celebrava a proximidade da felicidade eterna ao lado da personagem Amanda, vivida por Carolina Ferraz, que acabara de contar que estava grávida. 

Uma “felicidade” no mínimo suspeita, posto que tinha como cenário um país chamado Santa Fé, no qual Herculano utiliza seus poderes mágicos para apoiar o ditador que governa o lugar. Suspeita também por ter sido precedida por uma tórrida noite de amor regada pela voz interior de Herculano que, na verdade, revela-se uma citação da poesia de Baudelaire: "Queria mesmo era colher o grito pleno/ da tua alma cheia de tormentos.”. Em tempos de crise, até a voz interior dos personagens tem pedido empréstimos...

Subitamente, a festa é invadida por guerrilheiros mascarados semelhantes aos integrantes das Farc. Os mascarados metralham tudo ao redor, incluindo Herculano, que vai ao chão agonizante.

Corte para uma cena numa praia paradisíaca em que Carolina Ferraz aproxima-se de uma criancinha e pergunta: “Meu amor, você tá aqui sozinho?”.

Eis que surge Herculano, dizendo: “Ele não tá sozinho não!”

A partir daí, mistério: Seria aquele um Herculano sobrevivente ou o espírito de Herculano. Se bem que, para dar crédito a esta segunda alternativa só com ajuda do realismo fantástico, posto que é difícil pensar num fantasma que beija e abraça uma mulher e ainda ensina truques de mágica para o filho pequeno.

Há ainda uma terceira hipótese. A de que o ataque dos guerrilheiros à festa tenha sido um plano de Herculano para simular sua morte e poder usufruir, posteriormente, uma “felicidade eterna” e anônima.

Por mais críticas que se queira fazer, não se pode dizer que o último capítulo de O Astro não foi marcante. Despertou do riso à perplexidade para quem não tem medo de enfrentar os espinhos cínicos da cultura.


Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente

Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"

Penúltimo capítulo de O Astro - realismo fantástico em mares nunca dantes navegados



Fonte: globo.com


Quando a estética do choque parece virar lugar-comum a ponto de transformar o choque em dormência, eis que surge O Astro. Ou, mais especificamente, eis que ressurge, em 2011, O Astro com um final surpreendente.

A surpresa está não no que é contado, pois tudo ocorreu conforme o protocolo. Os vilões ou morreram ou foram presos. E os heróis viveram felizes para sempre e comemoraram a “felicidade eterna” numa boate ao som de Glamurosa, de M.C. Marcinho.

O surpreendente revelou-se no modo como o clichê foi recontado. O efeito-surpresa contou com o auxílio luxuoso dos atores, que não conseguiram esconder a máscara de comédia que a trama tentou ocultar sob um véu quebradiço de seriedade que, não raro, almejava ser tragicidade.

O gatilho do choque foi disparado já no penúltimo capítulo, quando o personagem principal, Herculano Quintanilha, desafiou o gradiente de probabilidades estabelecido durante a novela. 

Herculano, a fim de fugir de uma perseguição policial, começa a levitar. De vidente, o personagem foi promovido a aeróbata. Logo a seguir, uma nova promoção. Quintanilha transforma-se num pássaro, da envergadura de um jatinho, e sai voando.Não foi o ato de voar que, por si só, surpreendeu, mas as duas promoções sucessivas. É como se lêssemos uma notícia sobre um advogado recém-formado que, de uma semana para a outra, torna-se desembargador e ministro do Supremo Tribunal Federal.

Ainda mais surpreendente foi o efeito especial utilizado para dar movimento ao pássaro, que batia as asas com a desenvoltura de um pterodátilo de filmes da década de 60: o padrão Globo foi “supreendentemente” ferido.   

Como bem classificou o ator Rodrigo Lombardi, em entrevista a Ana Maria Braga, esta cena é um exemplo de realismo fantástico. 

Realmente, uma expressão nunca dantes vista do fantástico, posto que outros personagens, ao verem a metamorfose do protagonista de O Astro, inspiraram surpresa e expiraram  um artificial “Ah, para o Herculano isto é normal!”. 

Eu, contudo, mantive o fôlego paralisado pela perplexidade e, como nunca dantes, vi nascer a comédia no terreno do realismo mágico.

29 de outubro de 2011

O risco da citação na troca de olhares entre Perseu e Medusa

Perseus: by VampireBait

Começo esta postagem contrariando uma recomendação do filósofo e teórico da literatura Lourival Holanda: a de que o pesquisador deve evitar tornar-se refém do citacionismo, que, como bem explica ele, é um mal-estar cujo sintoma principal é pedir licença a referências bibliográficas para poder pensar.

Apesar de estar sujeita a desvirtuar-se em citacionismo, a citação tem seu valor. Ela é sempre um risco, a bem da verdade e da mentira. Mas também é capaz de salvar vidas. Que o diga Perseu... 

Como se sabe, a estratégia deste guerreiro para destruir a medusa é simplesmente uma citação. Perseu acompanha o movimento da medusa, por meio do reflexo dela projetado em seu escudo. Ele, ao captar os movimentos do outro por meio do reflexo, está praticando a citação. 

E, por mais que se louve e engrandeça a pessoa citada, o gesto de citar requer que o citado seja sacrificado: simbolicamente morto: ao menos em parte. Caso contrário, o destino do conhecimento seria transformar-se em pedra, isto é, paralisar-se.

A citação é como a cabeça da medusa incrustada no escudo de Perseu. Em parte está morta, mas ainda é capaz de suscitar o horror e a perplexidade que paralisam.  A paralisia do conhecimento seria, assim, causada pela reapropriação vazia do texto citado: resultado da transformação do Apud em uma faceta do TOC (transtorno obsessivo compulsivo).

Cabem então ao que cita, inclusive o que cita a “si mesmo”, poucas opções: deixar-se petrificar (e, então, anular as duas opções seguintes); sacrificar o citado, salvando-se...

Uma terceira opção toma como exemplo um episódio pertencente aos arquivos secretos da mitologia, guardados a setenta vezes sete chaves pela NASA (Noite anterior ao Sempre Antes). 

Sabe-se que depois de cumprir seu destino, Perseu pede ao deus Vulcano que crie um novo corpo para a cabeça da Medusa. E, assim se fez... E Perseu cegou-se a fim de poder olhar de frente aquela que amava e com a qual queria ficar. 

Na verdade, Perseu mata a medusa e deixa o destino se cumprir para enganar os deuses. Mas, depois que o destino se cumpre, Perseu o descarta. Assim também faz a Medusa. 

Do encontro entre os amantes que cumpriram seus destinos como forma de enganar os deuses, nascem o amor e a vontade.  

Esta versão apócrifa do mito lembra que o gesto de citar é pressionado de um lado pelo destino e, de outro, pela vontade. E que citar é assumir o risco de ter um caso de amor com quem pode te destruir ou te salvar, dependendo do ponto de vista. 

Mas, o insólito caso de amor entre Perseu e Medusa está longe de ser o fim de um filme de Hollywood, o que sugere algumas reflexões.

Quem cita – Perseu - se cega. Isto não significa necessariamente aceitar cegamente a opinião de quem é citado, mas sim silenciar a tendência de acharmos que nossa visão é plenamente capaz de dotar o mundo de sentido.

Quem é citado – Medusa - continua capaz de petrificar. Mas, o caso de amor inaugurado pela citação pode proporcionar uma alegria não antes experimentada pela Medusa: a de ter seu olhar devolvido. Tudo que Medusa queria,  e o destino havia lhe negado na versão oficial do mito, é poder ver refletido em seus olhos a alteridade viva: com direito ao amplo contraditório.

Derivações deste caso de amor entre Perseu e Medusa – ou entre quem cita e quem é citado – poderão ser vistas no IV Seminário de Línguas e Literaturas Clássicas :  O Arco e a Lira. O evento, promovido pelo Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ocorre de 9 a 11 de novembro no Centro de Artes e Comunicação.
Perseus and Medusa: by humon

A temática este ano será Literatura Clássica e as Forças Renascentistas. A ideia é compreender como o imaginário clássico é citado – com requintes tanto de “crueldade” como de amor – na transição entre Feudalismo e Renascimento. Neste contexto, a citação da literatura clássica vivencia um diálogo tenso, porém rico, com os imaginários cristão e oriental.

As inscrições e submissão de comunicações podem ser feitas, gratuitamente, até o dia 31 de outubro de 2011. Mais detalhes no site do Seminário.

Na ocasião, serão oferecidos os mini-cursos Hebraico Bíblico, ministrado pelo professor Vicente Masip, e Memórias Arquetípicas e Filosóficas em Narrativas de Super-Herói, ministrado pelo pesquisador Cláudio Eufrausino. Ambos os ministrantes são da UFPE.

16 de outubro de 2011

"A vida, meu caro, é dose única e letal" - versão β de uma teoria dos fatos

Cindy Sherman - Untitled Film still #2, 1978
(Silver print, 8x10 inches)
As aulas de Teoria da Literatura, na Universidade Federal de Pernambuco, têm me rendido altos dividendos. Lá, tenho dividido misérias gloriosas e gloriosas misérias pelos números mais complexos: o 1 (o enigma do si mesmo), o 2 (o enigma do outro) e o três (o enigma da decifração).

E, como quociente, tenho conseguido uma boa dose de indulgência, suficiente, ao menos, para inspirar algumas postagens deste blog.

E “ao menos”, no campo da poesia, equivale a “plenária” no que diz respeito à indulgência que, menos do que significar "poupança da misericórdia", significa confiança na reverberação do perdão.

E, quem escreve e tem esperança de ser lido e, até, admirado um pouco que seja muito, precisa perdoar-se e ser perdoado. 

É que as ideias só saem da mente de quem escreve para o papel e deste para outras mentes quando recebem a absolvição de quem escreve e de quem lê. Certamente, porém, as pessoas continuam achando que a fogueira é um atalho para que as almas - e as ideias - cheguem à absolvição.

Numa das aulas de Teoria da Ficção, estudávamos, recentemente, os afastamentos e aproximações entre história e poesia, entre fato e ficção. Depois desta aula, comecei a pensar...

(E, realmente, pensar é, predominantemente, um “depois”, visto que o “durante” é voltado para o co–empreender: mais conhecido como compreender).

Depois de começar a pensar, dei-me conta de que a poesia relata fatos. Exemplo disso é o poema cujo um dos versos empresta título a esta postagem.

Neste poema, deparo-me com fatos inquestionáveis (???), alguns por sua evidência, outros por sua persistência, outros, como diria Olgária Matos, por sua vidência. Seguem, apenas alguns exemplos, antes que rareie a indulgência do leitor:

Fato 1: “Já disse pra olhar mais pra você. Mas olhar pra mim como? Se quando me vejo, logo me perco?”

Eis um fato evidente, persistente e vidente: sou capaz de me olhar, mas, ao me ver, saio de mim e acabo me perdendo. A fotógrafa Cindy Sherman não me deixa mentir.

Fato 2: “Mas se você não estiver pronto, o mundo não vai saber recebê-lo.”

Fato persistente: o mundo exige, recorrentemente, a prontidão. Ela, como evidência, não é fato, visto que mesmo quando morremos não ficamos prontos.A frase "Pronto, acabou-se" é uma ilusão necessária para continuarmos.

Se, na pior das hipóteses, pensarmos a morte como porta de entrada para o vazio, não temos garantia de que este vazio é pronto. Teorias da física quântica e áreas afins demonstram que o vácuo é menos vazio que intervalo tenso entre as pulsações de partículas subatômicas.

Portanto, a ideia de “se estar pronto” é fato, não por evidência, mas sim por persistência.

Fato 3: "A sensação que tenho, é de que falo somente para os astros e fantasmas que vivem comigo."

Fato evidente e vidente: Os mapas, o GPS, a filosofia. Todos são formas de ligar (ou religar) a vida terrena – particularizada – à vida cósmica – constelar.

E, como se sabe, o céu é o maior cemitério que há, visto que grande parte das estrelas já morreu. Contudo, numa outra perspectiva, o céu é prova viva da ressurreição, visto que as estrelas são mortas em suas coordenadas de origem, mas retornam à vida, na luz que projetam ao longo do sem fim do universo.

Na literatura, a poesia é o “equivalente” deste movimento das estrelas.

Na história, o diálogo com os antepassados é uma paráfrase de nosso diálogo com as estrelas.

Em todo estes casos, é fato vidente que nossa vida é cercada por fantasmas.

Fato 4: “A vida, meu caro, é dose única e letal.”

Fato evidente, vidente e persistente: ilusão!

Estes fatos foram retirados do poema Diálogo pertencente ao blog Coisas de Nuvens, do historiador-poeta Marcos Vidal.

14 de outubro de 2011

O requinte do clichê: também e sobretudo!

Foto: Karla Vidal


Não foram somente livros que levei para casa, ao sair da bienal do livro de Recife, ocorrida nos últimos dias de setembro. Foi pra casa comigo a escultura que abre esta postagem. Esta imagem teria passado despercebida não fosse o convite da minha irmã a olhá-la. 

“Descoberta”: o olhar não é somente um evento foto-sensível, mas uma sugestão, um convite. Não parte exclusivamente do eu para o outro: requer que um terceiro elemento, um outro-eu ou um eu-outro, erga-se como ponte, ou, melhor dizendo, como apelo para que o ato de olhar se torne efetivo. Do contrário, o que se tem é a cegueira ilustrada, que acompanha nosso olhar cotidiano e sedentário.

“Cachaça também é cultura” era a frase que, na escultura, fazia o papel de coração.  Um coração cercado e asfixiado por hipérboles com a pretensão metonímica de fazer a parte se tornar o todo: de fazer o ato de beber ser o núcleo vital da pobreza. E, feridas pela hipérbole, pobreza e bebida tornam-se, respectivamente, miséria e vício.

Eis o requinte do clichê. Sua força maior não está na repetição de imagens cansadas, mas sim em habilidades adicionais. Entre elas, a de ferir o sentido com a hipérbole e abanar a ferida com a metonímia, transformando o exagero em normalidade.

Porém, o clichê mais hábil é aquele que dispensa imagens, nutrido de consensos silenciosos e nutridor de uma normalidade sem rosto, literalmente des-carada. È esse tipo de clichê que é denunciado pela expressão “também é cultura”. A ideia da cultura como solo sagrado imune ao vício e à miséria é ironizada pela entrada da cachaça no rol dos bens culturais. 

A palavra “também”, nesse caso, termina por ser um abismo que divide a identidade dos sentidos. Na imagem em questão, “aparecem”, em conflito, sentidos dúbios como, por exemplo: cachaça-culta versus cachaça-viciante, pobreza-multiculturalista versus pobreza-miserável. O “também”, desta forma, tempera o controle fascista do clichê com o descontrole anárquico da ironia.

Numa recente propaganda da Jhonnie Walker, o clichê fere o sentido não com a hipérbole, mas com seu irmão siamês: o eufemismo ou a hipérbole suavizadora. 

Mesmo sem se fazer visível, a palavra “sobretudo” percorre todo o anúncio, no ritmo dos passos do gigante adormecido: personagem principal da micronarrativa. Senti como se a publicidade quisesse vender a ideia de que o Rio de Janeiro é, sobretudo, beleza; não violência.  

O gigante que dormia e, de repente, ganha vida própria, representa o clichê da cultura, entendida como beleza sublime que, como uma força telúrica ou uma essência transcendente, subjaz vitoriosa aos conflitos sociais, eufemismezando-os.

Mas, certamente, não é absurdo ver nos passos do gigante não um “sobretudo”, mas sim um “também” a relativizar o peso que a violência teria na composição da imagem do Rio de Janeiro perante a opinião pública mundial. 

Neste caso, estaria justificada a opção publicitária da Jhonnie Walker. Ao eleger como garota-propaganda o Rio, um lugar dividido entre o encanto da natureza e o desencanto da violência,  a empresa faz da cidade prateleira simbólica de uma bebida cuja imagem se pauta na ideia: “Sou vício, mas, sobretudo, requinte! Sou bebida, mas estou longe de ser cachaça!”.

Mais imagens da Bienal do Livro de Recife no site da Pipa Comunicação.

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