18 de fevereiro de 2011

Os filhos da puta da Filosofia e os budas ditosos no banco dos réus




"Platão, aquele filho da puta, responsável pelo fascismo tecnocrata da República, babaca, devia ser castigado com uma encarnação perpétua como Ministro da Administração do Brasil. Babaca, eu não posso ler A República sem ficar com vontade de ir lá e escumbalhar Sócrates, aquele veado sebento – isso era o que ele era, um veado sebento e burro, que não comeu Alcibíades, ora homem, creia, não comer Alcibíades, quem era ele para não comer Alcibíades, quando qualquer um de nós comeria?" - trecho de A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro

Nesta postagem, plantarei sementes de irresponsabilidade teórica no solo do exercício frouxo da reflexão, ou, melhor dizendo, da reflexão frouxa. Como a personagem central de A Casa dos Budas Ditosos, regurgito aqui uma dose de revolta contra a filosofia.

“Platão, aquele filho da puta!”, diria ela, com o verniz de paráfrase por mim aplicado. A crítica da personagem dirige-se ao fato de o filósofo ter lançado as bases de uma cultura que coloca a satisfação humana num extra-mundo, relegando a corporalidade e a sensorialidade ao lugar de cópia mal-acabada da perfeição, do ideal.

Em verdade, não é este o único modo de conceber o platonismo, visto que Platão levava sim em consideração o valor da beleza corporal e da sexualidade. Mas, não como pódio, como faz a atual cultura erotizada.

Em Platão, a sexualidade e a sensorialidade representavam a largada, a porta de entrada para o universo do ideal, das formas perfeitas e transcendentes: a maior porção do iceberg, representada pelo Mundo das Ideias. Se este mundo das ideias é descorporificado ou, contrariamente, é a experiência utópica da sensorialidade plena, isto ainda não consigo decifrar.

Mas, hoje, quero concordar com a prostituta de João Ubaldo e dizer que Platão é um filho da puta, que preferia a tirania à democracia, que fazia a filosofia encher a boca de arrogância e cuspir na cara da arte: para ele imitação redundante e desnecessária da natureza.

Se eu estiver errado em minha análise, quero esquecer da culpa e do impulso de me redimir, que se acorrentam a meu calcanhar: quero, ao menos hoje, concordar com a prostituta e dizer que Platão é um filho da puta.

E não é só Platão que é um FDP.

Sócrates? Indo de porta em porta, na casa de pessoas que nem o conheciam, para jogar na cara delas que tudo que elas achavam ser verdade não passava de comodismo mofado.

Aristóteles? Por causa dele, fiz papel de bobo no 3º ano. O professor chegou com um exercício: Qual destas afirmações é verdadeira:

  1. Uma caneta que acabou de secar deixa de ser uma caneta.
  2. Uma galinha que acaba de morrer deixa de ser galinha.
  3. Todas as afirmativas são falsas.

Marquei a terceira opção.
“Vejo que você não é tão inteligente assim”, traumatizou-me o professor, que também é um filho da puta...

Tanto a afirmativa 1 quanto a 2 eram verdadeiras, na concepção do meu professor e, claro, na concepção de Aristóteles! Para ele, o ser é a combinação de forma (ação e evolução) e conteúdo (matéria). Faltando algum desses elementos, não há ser.

Vê só que filho da puta! Eu, acostumado com a ideia platônica de que a essência liga-se à alma eterna, imortal e transcendente, nunca entenderia como sendo lógica a afirmação de que uma caneta deixa de ser caneta por falta de tinta. Para mim, o ser da caneta era o ideal de caneta marcado na minha mente. A tinta era só um acidente de percurso, adquirível em qualquer papelaria.

Descartes? Um transtornado obsessivo compulsivo. Converteu em discurso do método a vontade inconsciente de habitar um mundo embalado à vácuo, livre de qualquer grão de poeira, inclusive dos radicais livres. Um mundo sem dúvida e incerteza e sem sonho: um rosto sem rugas: um código genético para a proteína do Adobe Photoshop... Sim, o filho da puta do Descartes brincou com o discurso do método como os designers brincam com o Photoshop.

Hegel e sua dialética?  O sim que, ao mesmo tempo, é não. A síntese dos contrários. Tudo depende, tudo é relativo, tudo é nada. Filho da puta omisso: Hegel dispensou completamente o Photoshop, mas difundiu o uso de uma das piores máscaras: o centralismo político. Tudo bem que ajudou a combater o radicalismo, mas em nome de um radicalismo igualmente danoso: o da abstenção.

Marx: sorveu o sangue de Hegel até a última gota e ainda criticou o sabor. Fez isso com outros: Feuerbach, Demócrito. Pregou o comunismo, mas era sustentado por um burguês (Engels).

Descartes incentiva a pecar por pensamentos. Marx por atos. E Hegel, por omissões. E a culpa, a tão grande culpa: recai sobre os que seguem suas ideias.

Platão me roubou a lógica corporificada. Aristóteles me roubou a lógica idealista.

Nietzsche roubou-me a lógica. “Uma montanha pode ser uma estrela dançante. Basta que você deixe de se comportar como um macaco que escraviza a razão, em nome da lógica: convenção convertida em verdade por força da repressão e da culpa. Abra caminho para o Além-do-Homem”.

Esta paráfrase do pensamento de Nietzsche pode parecer mesquinha e selvagem. Mas garanto que não é mais selvagem que os aforismos deste filho da puta.

“Os subjugados lutam por justiça porque têm inveja da capacidade dos poderosos de pisar no pescoço dos fracos com salto agulha”, diria o nazista do Nietzsche, com tons de paráfrase por mim aplicados.

Adorno e Horkheimer? Execraram o pensamento de Walter Benjamin para, depois de sua morte, sugar o melhor de sua filosofia e convertê-la numa colcha de retalhos. Refiro-me à Dialética do Iluminismo.

Benjamin era um verdadeiro crítico, que combinava a leveza da curiosidade infantil com o inconformismo cristão. Pecou por ser muito sensível e por ter recusado o convite para lecionar na Universidade de São Paulo (USP). Pecou por confiar no filho da puta do Adorno.

Adorno converteu a razão em cálculo frio, estratégia de guerra, burocratização da existência e crueldade institucionalizada. Fez do pessimismo crítico de Benjamin – que apontava para um horizonte de esperança ressurgida da opressão derrotada – um pessimismo acrítico: um beco-sem-saída.

Já Horkheimer? Um boneco de ventríloquo nas mãos de Adorno.

São muitos os filhos da puta da filosofia. Depois falo de outros.

Mas, como a filosofia seria filosofia se não fosse puta, se fosse totalmente pudica, recatada e intocada?

Agora posso voltar a admirar estes filhos da puta e descansar em paz.

Quem tiver olhos para ler anagramas de trás pra frente, que julgue este texto!


P.S.:

FILOSOFIA E PROSTITUIÇÃO - Emil Cioran
O filósofo, desiludido dos sistemas e das superstições, mais ainda perseverante nos caminhos do mundo, deveria imitar o pirronismo de trottoir que exibe a criatura menos dogmática: a prostituta...
Continue lendo a comparação que Emil Cioran faz entre a filosofia e a prostituta em: Um ano Existencialóide

Aproveito para indicar o blog Dédalo e Ícaro, do professor Francisco Lopes, do qual foi retirada a charge que introduz esta postagem. O blog traz vídeos, textos de apoio, ensaios, reflexões, crónicas, documentos e livros para download.


Vídeo contendo trecho encenado de A casa dos budas ditosos - Julgue por si mesmo e me livre deste fardo:


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