By Gustavo Azeredo - Jornal Extra |
Valesca Reis Santos poderia ser considerada uma artista do
nível do pintor Arcimboldo (séc. XVI), um dos maiores representantes da
estética do Grotesco, mas falha por um pequeno detalhe.
Uma definição possível de grotesco é a do esforço artístico de
abrir uma ferida na visão clássica da natureza. Quando um pepino faz uma “migração”da
lavoura ou de uma salada para o rosto humano, tornando-se metáfora de um nariz
(como ocorre no quadro Verão, de
Arcimboldo), a analogia gerada causa um sentimento que, rapidamente, pode
oscilar entre o riso, o medo e a repugnância. É na dança entre estas sensações
que o grotesco se coreografa.
O palavrão é o grotesco que se torna lugar-comum e se
esquece de suas origens. Assim acontece, por exemplo, com a palavra “rola” (leia-se
rôla) que faz a imagem de um tipo de pássaro usurpar, metaforicamente, o lugar
do órgão sexual ou do termo “ovo” (leia-se ôvo) quando se faz passar pela
gônada sexual masculina.
Somam-se, comumente, aos palavrões doses de estigmas ou
traumas ancestrais. Daí, o fato de muitos palavrões serem anacronismos que
invocam doenças já totalmente debeladas a exemplo da peste bubônica.
Assim acontece quando os palavrões rememoram situações que,
em tempos passados, foram consideradas crimes, a exemplo da sodomia (nome que
era dado ao envolvimento sexual entre homens). Daí, expressões como “tomar no
cu” e “dar o fundo” serem palavrões desdobrados em locuções.
Certamente talvez, exista uma classe de palavrões que
trabalhe construindo metáforas grotescas por meio da condensação de terrores
que afligem a alma humana. Exemplo é o corriqueiro “Foda-se”, que, em casos
extremos, evoca a mistura de solidão, “crime” e tortura.
Arcimboldo, 1573, Verão, óleo sobre tela, Louvre. |
Por mais incômodas que as letras de Valesca sejam a nossos
ouvidos imaculados pela herança pequeno-burguesa, a Popozuda trabalha a
estratégia da ironia, buscando tornar o grotesco um tipo de crônica do
quotidiano. A grande concentração de palavrões por minuto quadrado choca não
por remeter a traumas, crime ou doença, mas por pretender fazer o palavrão
adquirir o status de palavra corriqueira. O maior pecado do palavrão é querer,
a despeito da “moral e dos bons costumes” compartilhar o espaço da palavra “pura”.
O palavrão é tímido, uma tímida expressão do grotesco que
pede licença para fazer entradas pontuais na encenação da comédia humana.
Nestas curtas inserções, ele chama para si todos os holofotes: tanto os de luz
quanto os de sombras.
Não é o que acontece com a poética de Valesca, que converte
o palavrão no próprio holofote, reduzindo o choque a um ator coadjuvante
ofuscado.
O caráter irônico da nova fase da carreira de Valesca é
denunciado pelo início da música Catra-Mama,
no qual ela anuncia que se “converteu” e abandonou os palavrões. De algum modo,
ela critica a crítica que lhe é feita: de fazer apologia ao sexo explícito. Na
ironia da autora encontra-se um questionamento; onde está, atualmente, o sexo
implícito para que alguém possa explicitá-lo?
A indiferenciação entre a palavra e o palavrão pode ser
analisada por outro lado: o de como as palavras comuns, vitimadas por contextualizações
precárias, como a das citações facebookianas, acabam por adquirir a carga
pejorativa do palavrão.
O sentimento de inadequação entre palavra e contexto ganha
enorme proporção nas redes sociais. A pressão de resumir o pensamento a cento e
poucos caracteres reflete-se na tendência de tornarmos as palavras reservas de
expectativa concentrada: verdadeiras minas terrestres virtuais. E, por vezes,
um “ingênuo” Curtir do Face deflagra uma explosão, como se os
usuários fizessem das palavras uma deixa para elegerem um alvo do
linchamento-web. Talvez, o leitor já tenha experimentado a sensação de ter
feito um comentário e se ver cercado por todos os lados por comentários que se
juntam para reduzir o comentário e o comentador a pixels.
A poética de Valesca Popozuda chama atenção para uma mudança
de paradigma em que se percebe que, muitas vezes, o palavrão ou a palavra não
são tanto o problema, mas sim o modo como organizamos na equação do comunicar as
fronteiras complexas entre ética, moralismo e hipocrisia.
Meu agradecimento a Renata Marques e a Thayse Medeiros que debateram comigo sobre o caráter comunicacional do fenômeno Valesca Popozuda.
Valesca Reis canta Catra-Mama
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