1 de julho de 2012

Novo código penal e apartheid jurídico


Fonte da imagem: site Sul21



Em uma conversa sobre a reformulação do código penal, uma amiga me fez uma observação certeira. O Brasil sempre molda seu espaço jurídico de modo a ter uma brecha para efetuar uma divisão entre cidadãos de primeira e de segunda classe. E, com base nesta divisão, tenta conferir eficácia a suas leis.

O propósito, aqui, não é discutir a criminalização ou descriminalização, mas sim como as mudanças da legislação penal são propostas de modo a, sob a rubrica de “fazer justiça”, camuflar um apartheid jurídico entre os cidadãos.

Exemplo disso é a proposta de reformulação do status criminal do aborto, que propõe, com base na legislação norte-americana, que o aborto somente seja considerado crime depois do terceiro mês de gestação.  Segundo uma parcela dos estudiosos, esse seria o tempo necessário para que a mulher fosse capaz de amadurecer a decisão de ter ou não o filho, decisão esta baseada no princípio da liberdade de consciência, relacionado por sua vez ao princípio da dignidade da pessoa humana.

O problema é que ao se tomar a decisão sobre o aborto como espelho da livre consciência converte-se, ilusoriamente, o efeito (a decisão) em princípio jurídico. E, neste movimento, viola-se uma das cláusulas pétreas da Constituição: aquela que considera inviolável o direito à vida, que a todos caberia indistintamente.  Em sendo de aplicação indistinta, o direito à vida se estende à vida em formação. Portanto, excluir os três primeiros meses de vida do alvo do referido princípio constitucional significa reduzir o ser humano em formação ao estatuto de cidadão de segunda classe.

Diferente é a possibilidade de prática do aborto no caso de a gravidez oferecer risco à vida da gestante. Neste caso, está em jogo a opção pela sobrevivência de duas pessoas igualmente ameaçadas, o que torna o aborto uma manifestação de legítima defesa e não uma violação ao princípio constitucional do direito à vida.  Uma mudança na lei, acolhendo a possibilidade de aborto até os três meses de gestação representa uma disparidade com relação ao critério que norteia as exceções à prática do aborto.  Este critério seria o da falta de escolha por parte da gestante tanto no caso do risco de morte quanto no caso de ter sido vítima de estupro.

A lógica da falta de escolha também não é aplicável aos casos de anencefalia, visto que a decisão de ser mãe traz em si uma grande parcela de imponderabilidade, de indecibilidade. Abortar tendo em vista um diagnóstico do “destino” da criança não deixa de ser um tipo de seleção eugênica. Pensar no aborto como um gesto de poupar a mãe do sofrimento é algo irreal, pois a condição da maternidade e da paternidade inclui graves e imponderáveis sofrimentos como o de ter seu filho morto pela falta de infraestrutura hospitalar, sanitária e nutricional ou ainda por causa da violência urbana.

Portanto, as alterações propostas com relação à descriminalização do aborto representam mudanças drásticas no critério de aplicação da lei e não devem ser encaradas como decorrentes de uma lógica natural e irresistível, colocando-se os opositores a estas mudanças na posição de alienados aberrantes.

Sem pretender esgotar o assunto, podemos abordar também a proposta de criminalização da homofobia. Infelizmente o Brasil se vê diante da necessidade de criminalizar a homofobia o que, legalmente falando, deveria ser desnecessário, pois as agressões deveriam ser tratadas pelas rubricas já existentes como as relativas aos crimes contra a honra (a exemplo da difamação) e contra a integridade física (a exemplo da lesão corporal).

Estas mesmas rubricas deveriam valer para o caso da violência contra a mulher e o negro. Mas, como sabemos, a lei no Brasil está longe de ser vendada como prescreve o símbolo da deusa Têmis. De maneira redundante, a lei brasileira precisa ser endereçada às "minorias" para poder surtir efeito.

Na verdade, é como se as particularizações (lei Maria da Penha, anti-racismo e anti-homofobia) fossem como leis complementares que direcionam as rubricas já existentes. Agora, certamente, essa postura terá seu ônus, como as distorções geradas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas, o Direito é naturalmente sujeito a distorções e a reformulação do código penal, prevendo punições contra a homofobia, acaba sendo necessária para que a cultura não transforme brechas da lei em janelas de impunidade.

Uma questão recorrente tem sido: “Se eu chamar um homossexual de feio, por exemplo, estarei sujeito a ser condenado por homofobia?”.

Este receio, provavelmente não vai se concretizar devido ao princípio da eficiência.  Os juízes, muito provavelmente, não reconhecerão o mérito de julgamento para queixumes inúteis, estando os proponentes sujeitos a multa ao fazerem a Justiça perder tempo com denúncias desprovidas de mérito.

O que a criminalização da homofobia deve fazer é conferir aplicabilidade imediata à punição contra graves violências de ordem física e simbólica. Neste caso, a revisão do código penal contribui para que seja sanada uma distorção na aplicação das leis vigentes que, por força de preconceitos culturalmente arraigados, não têm amparado os homossexuais.

De qualquer forma, a criminalização da homofobia não deixa de revelar a triste tendência da legislação brasileira de dividir os cidadãos entre primeira e segunda classe. Considerados culturalmente como cidadãos de segunda classe, os homossexuais precisam contar com uma categoria à parte no código penal para poderem ser afetados pela legislação que já os deveria proteger.

Há pessoas que consideram que a criminalização da homofobia, contrariamente, criará um privilégio para os homossexuais, colocando-os na condição de cidadãos de primeira classe em relação aos demais.

Talvez, o que incomoda uma parcela dos opositores não é o fato de se sentirem cidadãos de segunda classe, mas sim a dificuldade de lidarem com o fato de estar sendo reduzido o espaço em que a prática do bullyng era considerada algo “normal”. 

E, certamente, os gays - ou o que socialmente se convenciona definir como gay - representaram uma arena em que os praticantes do bullying acreditavam ter liberdade total pra agir. Algo semelhante aconteceu com relação aos negros e, num passado mais distante (quando o bullying era praticado, mas nem sonhava em se tornar conceito), com relação aos leprosos. E ainda acontece com relação aos portadores de doenças como o HIV/Aids.

Em certa medida, o bullying é uma mistura de medo e ódio projetado contra algo que se acredita ser uma doença capaz de contagiar a “sã” e celebrada “normalidade”. Uma sociedade que cultivou desde sempre o mau-costume de pautar sua “normalidade” na estigmatização de pessoas “eleitas” para ocupar o cargo de anormais sente-se aflita ao ter de reformular este modelo de “normalidade”.

Contudo, o desafio atual é o de não confundir o enfrentamento do bullying  – que é um tipo de estigmatização com endereço definido e características de uma tortura contínua e persistente – com atitudes de censura à liberdade de expressão decorrentes do vício no politicamente correto.

Tanto o bullying quanto o politicamente correto rebaixam o cidadão ao status de cidadão de segunda classe.

Leia aqui o texto que deu origem a esta reflexão.

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