4 de fevereiro de 2013

Coca-Cola devolve à loucura a razão, o chão e a cidadania




Cena da campanha da Coca-Cola

Lembra Foucault, em sua História da Loucura, que, no período renascentista, a loucura é considerada força viva e secreta da razão. De algum modo, este ideário, seja ou não por força do apelo vintage, é retomado pela publicidade contemporânea, como atesta a nova campanha da Coca-Cola: Let’s go crazy!

Nesta peça publicitária, a loucura é vista como associada a sentimentos que estão se tornando raros, a exemplo da gentileza. E também como o desafio de dar contornos estéticos ao ridículo, em vez de mantê-lo isolado numa espécie de terra de ninguém. Fico imaginando se esta publicidade não bebeu nas "Cartas de Amor Ridículas" de Fernando Pessoa...

Certamente talvez, a propaganda tenha um apelo de classe média, visto que, nem todos têm a oportunidade ou o espaço para se darem ao luxo de agir ridiculamente e, ainda assim, manter a vibe de garoto propaganda da Calvin Klein ou de modelo dos cosméticos da Mac.

Contudo, o mais tocante da proposta é libertar a loucura de uma geografia que lhe tem sido imposta desde o século XVIII: a do ostracismo. No comercial da Coca, a loucura pode voltar a flanar pelas ruas com roupas leves e coloridas e vestindo a nudez de ideais nobres como a compreensão e a prestatividade. Estes  deixam de ser a aspiração pela perfeição e passam a ser a inspiração de um cotidiano onde o banal adquire raízes fortes (mesmo que sejam raízes aéreas).

A ideia, tipo século XIX, de que o louco deve estar atrás das grades ou à deriva num entrelugar (tipo uma ilha deserta perdida no meio do oceano) é desafiada. É uma dinamite em cima das metáforas que, corriqueiramente, estabelecem uma relação inelutável entre loucura,doença e animalidade. Mais uma vez mencionando Foucault, sabe-se que esta relação é uma produção histórica datada. 

Os hospitais que, no período medieval, trancafiavam leprosos (e assumiam o controle de seus bens), não podiam, com o avanço da medicina, perder sua “utilidade”. Começaram a ser reaproveitados para “abrigar” outras pessoas “sem cura e sem perspectiva”. Primeiramente, as vítimas de doenças venéreas, depois outros tipos de "doentes". 

Com o passar do tempo, foi sendo montada a figura pejorativa do “louco”, a partir da mistura de referências a comportamentos que, supostamente, estariam associados a doenças ou maldições. Pra se ter ideia, só depois de 1900 é que a palavra insanidade (ausência de saúde) começa a ser utilizada como sinônimo de loucura.

Mas, nem sempre foi assim: isto porque, até o século XVIII, a loucura, bem como o erro, a dúvida e a arte, eram vistos como algo capaz de ajudar a razão a se exercitar. Como se a loucura fosse a academia de ginástica da razão.

A partir do Oitocento é que a loucura começa a ser posta de fora do diálogo com a razão e, em decorrência, o louco é excluído do direito à pátria e à vida política. Com a difusão da literatura, o discurso da loucura tem sua respiração represada nas páginas dos livros, onde é pasteurizado pelos controles da erudição livresca. O louco torna-se, nas palavras de SabrinaCamargo, alguém sem chão, sem razão e sem cidadania. A utopia da Coca-Cola, na mentira e na verdade que a constituem, é a de devolver à loucura o chão e a cidadania.

A seguir, o comercial da Coca-Cola e outro do Honda CR-V em que o ator Matthew Broderick revive o personagem de Curtindo a Vida Adoidado (Ferris Bueller's Day Off), outro esforço de reconfigurar a geografia da loucura.



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