Leitura - Antônio Hélio Cabral ( Brasil, 1948)
óleo sobre tela, 30 x 40 cm
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Sim, interpretar um texto é brincar com os sentimentos dos
outros! O texto alheio torna-se, para
quem o lê, uma extensão do seu céu particular, seja este céu o Céu, o banheiro,
o closet, um disco de Céu, uma mensagem de voz do Cel ou um cartão postal de
Seul.
Quem vai ler se depara com uma encruzilhada repartida entre
a preguiça e o desafio e, mesmo optando por um dos caminhos, não tem como
deixar de levar o outro ancorado em seu calcanhar de Heitor, visto que Aquiles
não leem livros, pois são invulneráveis e não têm coragem de expor o calcanhar
a tapa.
Durante o percurso da leitura, somos assaltados pelo dilema
de Ulisses e como é grande a vontade de lá pelo meio do livro, isto é, no
primeiro parágrafo, abandonar o projeto de retornar pra casa e ficar luxuriando
com Circe e as sereias até que não sobre mais um ossinho que não tenha sido
devorado pelas bestas-feras..
.E ainda me espicaça a coluna, diria o bem-aventurado leitor de boa-vontade, a irritante mania que tenho de prever o futuro. Repouso as mãos sobre o título de cristal e, por um portal de translucidez, vejo o futuro se erguer e jogar na minha cara que a continuidade daquela leitura é um esforço inútil.
.E ainda me espicaça a coluna, diria o bem-aventurado leitor de boa-vontade, a irritante mania que tenho de prever o futuro. Repouso as mãos sobre o título de cristal e, por um portal de translucidez, vejo o futuro se erguer e jogar na minha cara que a continuidade daquela leitura é um esforço inútil.
Mas, como é sabido por quem bem o sabe, não há boa-vontade
sem rebeldia e obstinação, e, assim, Ulisses, ou o leitor, viaja em rumo a sua
jornada.
Na leitura do texto alheio, um dos momentos mais perigosos é
quando o texto mostra sua face de ciclope e faz o leitor sentir-se um ninguém.
Como suportar o fato de que amarei tanto uma leitura ao ponto de beirar a
idolatria e me ver impelido a querer jogar tudo o que até então me eram caras
verdades numa latrina qualquer, pero très
chic visto ter sido importada de Flandres.
O leitor que se preza tem um vício miserávi de fazer do autor
um ideal. E assim dá uma de Lois Lane e sai com o autor em direção ao oitavo
céu para, do alto do maior edifício estelar que houver pelas bandas de lá,
empurrar o Super-Homem para uma queda mortal, não pela queda em si, mas pela
decepção de ter sido defenestrado após ter sido tão incondicionalmente amado.
É que o amor é incondicional até que o clímax do livro prove
o contrário... Mas poderia ter sido pior, pois triste do texto que cai nas mãos
de um leitor que sentiu seu amor não correspondido. Nestes casos, o autor, que
já sofre por ser um fantasma a penar nas páginas bem-assombradas dos livros,
será vítima da pior tortura que o leitor lhe pode infringir: a de ser, em
virtude do que escreveu, confundido consigo mesmo sem pausa para o cafezinho, a
despeito de ter se tornado um imortal da Academia Pernambucana de Letras. Isto
porque, como é sabido por quem bem o sabe, tudo em Pernambuco é a maior coisa
do mundo das Américas, incluindo o cafezinho e os amores não correspondidos: as
lindas luas pernambucanas não me deixam mentir.
Ler é um exercício com dois pesos: o da crueldade e o da
condescendência. E a arrogância maior, porém indispensável, do leitor é achar
que terá, após o “término” do livro, força igual nos dois braços para carregar
o mundo ou os mundos. Sinto te decepcionar, Raimundo, mas por mais sonho e
esperança que o ler nos traga, nenhum livro apagará a parcela de imundo que há
em nós. O máximo que fará é torná-la em bom adubo para as rosas falantes que,
cada leitura, faz a presepada de plantar em nós.
Cada leitura, mesmo que seja a infinda leitura do mesmo, que
não cansa de se reescrever no não-dito, no interdito e na desdita, é uma chance
de reduzir o texto a uma transparência diáfana que permite olhar o outro como
uma vida que, mesmo anencéfala, traz o penhor de uma melodia que faria o
humilde Beethoven esperar ansioso pela enésima sinfonia, ainda que não tenha
sido escrita por ele.
Ler é se dar conta de que algum de todos os nossos sentidos
é defeituoso e, mesmo com estes falhos sentidos, não desistir de ouvir a
sinfonia do texto como se fôramos Sherlock Holmes: com desconfiança, mas com
respeito e aberto a uma segunda opinião: pois o que seria de Holmes sem o caro
Watson?
Leitura - música composta por Mazinho, Gunane e Barney
Intérprete- Maria da Graça
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