Friné em frente ao Areópago, 1861,Jean-Léon Gérôme. |
Talvez a ideia de recato tenha nascido na Grécia Antiga,
onde a arquitetura das casas desenhou o espaço feminino como uma área
interditada ao intercâmbio com a rua. O androceu, lugar do lar reservado ao
homem, era uma área aberta a visitas indiscriminadas, possuindo inclusive uma
porta para a rua, mesmo que fosse utilizada somente como porta de saída.
Já o gineceu, numa direção contrária, foi concebido para ser
uma metáfora em “concreto” do útero, sem contato com o exterior. Mas, na verdade, trata-se de uma metáfora
eivada de vício, tendo em vista que uma metáfora justa levaria em conta que a
mulher dá à luz, não sendo, portanto, o aparelho reprodutivo feminino uma
prisão sem escapatória, imagem distorcida de onde derivam outras como a de que
o pensamento feminino não deve vir à luz ou de que resta a ela o silêncio
resignado.
Certamente, talvez, a noite, a lua e o inconsciente são
imagens associadas à feminilidade pela história e também pelo imaginário
coletivo. Mas, o reforço dado à noção de que a luz lunar é mero reflexo da
boa-vontade do sol é uma leitura de uma cultura patriarcal e monoteísta, cujo
significado do poder está ligado a concentração e ao monopólio.
A noite não se alimenta dos restos da luz solar, mas,
parece-me, convida esta luz a descansar no mistério. Porém, o ponto a ser
cosido aqui é o do recato.
Sabe-se que a herança judaica considerava inadmissível que a
mulher expusesse a moldura do rosto, isto é, os cabelos. Isto talvez seja por
que as ondas capilares remetem a uma memória ancestral que o patriarcado lutou
para varrer da história: a da associação figurativa entre a mulher e o mar (ou
La Mer, como dirão os franceses).
A Mar, afinal de contas, é o lugar onde a vida tem
origem e para onde convergem as rotas. É também o espelho do céu que, com a
instituição do patriarcado, tornou-se morada dos deuses supremos e elitistas,
que não se misturam com a telúrica, com as coisas do mundo ou do imundo, termo
cunhado com o tom pejorativo que o Platonismo lega aos contrastes da natureza
palpável e efêmera.
Além disso, a Mulher vestida de Mar está, na verdade, nua e
através de seu corpo circulam todos os seres, o contrário da mulher-mônada (câmara
secreta), imagem que a cultura patriarcal criou para isolar a potência vital
feminina e sua capacidade de promover diálogos inusitados entre razão e emoção,
entre o dia e a noite.
Deve ser do primado do patriarcado que deriva a imagem, ainda
hoje endossada pela sociedade, de que quanto menor o traje, menor o recato. Ser
recatada, nesta perspectiva pobre, é se contentar com o recanto. Uma mulher
recatada seria como uma cebola, repleta de camadas de veste e de pudores que
separam seu corpo do olhar externo e sua voz da arena dos debates.
É cruel pensar que, diante das transformações que vêm
ocorrendo no teatro dos gêneros, ainda
há aqueles que insistam em resumir a dignidade feminina à imagem grega do
recato, condenando as mulheres que interagem social e politicamente inclusive
através de seus corpos.
A “mulher recatada” é a mulher mantida em “cárcere privado”
na esclerosada memória do gineceu grego. Neste sentido, não é de se espantar
que a “falta de recato” seja associada a gestos que marquem a inserção feminina
na ágora, no espaço público, o que inclui o bar.
A Idade Média tem uma lição a nos dar a esse respeito. Como
lembra Norbert Elias, eram usuais as casas de banho em que homens e mulheres compartilhavam,
nus, o mesmo espaço, de modo similar ao que acontece nas praias de nudismo.
Nesses espaços, mantinha-se submersa a noção de recato e ficava em suspenso o
tabu da nudez.
O cenário atual tem investido em espaços onde se colocam em
suspenso outros tabus, permitindo que homens exponham fragilidades e mulheres
se dispam de fragilidades. São espaços de intercâmbio de características entre
os gêneros, sem que o mapa da masculinidade e da feminilidade tenha obrigação
de acorrentar suas coordenadas a quaisquer estereótipos.
Nos próximos anos, a expressão “mulher da vida”
provavelmente ganhará outra conotação bem como a expressão “homem vivido”. E, com esta mudança, o fato de a mulher expor
o corpo ou tomar um porre deverá deixar de ser encarado como um convite ao
insulto e outros tipos de violências físicas ou sexuais, como se só tivesse
direito a ser tratada com respeito a mulher-gineceu. Do mesmo jeito, o homem
que cuida da casa e das crianças ou divide as despesas com a mulher não será
tratado como indigno de botar a cara na rua.
Certamente, porém, as mulheres que saem do gineceu rumo ao mar estão sujeitas ao impeachment instigado pelos defensores do patriarcado e, a exemplo da grega Friné, terão contra si erguidos tribunais escorados em acusações, no mínimo, desarrazoadas
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