Um dos motes da poesia de Radiohead é a ideia de que o
convívio é um fardo e que o amor e seus et
ceteras são tentativas de manter as pessoas presas umas as outras e imersas
no asfixiante aquário da vida em sociedade. Não seria estranho pensar que a
madrasta de Branca de Neve - conforme é retratada no filme Espelho, Espelho Meu, dirigido por Tarsem Singh - tenha mergulhado nesta vertente da obra da banda Radiohead. Outra hipótese é que a Rainha Má tenha se apropriado, com requintes de crueldade, da proposta poética da canção Coração Pirata, da banda Roupa Nova.
Independentemente do gosto musical da Rainha Má, a chance dada a ela de dar sua versão da história,
contrariando a história oficial dos contos-de-fada, é a maior graça de Espelho, Espelho meu, estrelado por Julia Roberts e Lily Collins.
Para a Rainha Má (Julia Roberts), o convívio é um fardo e o
amor é só mais um dos tratamentos estéticos necessários para manter em dia o
viço de sua pele. O esforço de se adaptar a regras de convívio é só uma etapa
dolorosa, um fingimento necessário até se obter poder o suficiente para
transformar os convivas em servos.
Esta personagem não encara a vida solitária - o
ensimesmamento - como algo traumático, ou
torturante, ou como sequela de traumas
do inconsciente. É uma opção, da qual a madrasta só abre mão quando percebe que
para manter seus luxos e salvar o reino da bancarrota terá de se casar com o
dote de alguém bem abastado. Isto – e uma atração física violenta – a levará a
se aproximar do príncipe encantado, uma figura que, com um toque de American Pie, destoa da entediante e
apática versão do clássico de Walt Disney.
Interessante é perceber que a Rainha Má, diferentemente da
versão de Walt Disney, não é uma encarnação apática do mal, mas sim uma hábil
política. Ela segue as dicas de Maquiavel e funda suas alianças não no amor,
mas na sedução (traduzida em feitiços) e no medo. Tudo para conseguir o que
tantos seres humanos sempre almejaram (almejam): fazer do mundo um closet que
caiba na suíte presidencial de seu ego com vista para o próprio espelho.
Como se sabe, o espelho, na história de Branca de Neve, é
uma versão do mito de Narciso. Versão que abre mão da autoconfiança e a
substitui pela inveja e pela auto-depreciação. Porém, a Rainha Má, ao se deixar
levar por seu ego refletido no espelho, caminha para o mesmo fim trágico de
Narciso: afogar-se na imagem que faz de si mesmo.
Em Espelho, Espeho Meu,
a voz do espelho é a própria personagem da Rainha Má. Mas, este alterego é
esvaziado das paixões, caprichos, ódios, invejas... É carregado de uma
neutralidade perturbadora, confirmando a vocação política da personagem e nos
permitindo refletir sobre como a paixão narcísica quando levada às últimas
consequências é um tipo de suicídio, que, por sua vez, é menos uma atração
irresistível por si mesmo e mais um medo incontrolável de se sentir atraído
pelo Outro.
No filme, a Rainha Má reverte, em certa medida, o caráter
trágico do mito narcísico. Ela mergulha e desmergulha do espelho sem sucumbir
diante da atração por seu próprio ego. Como hábil política, ela acredita ser
capaz de controlar sua própria imagem, tornando-a colaboradora servil do seu
sonho de, ao fim, tornar-se imperatriz e serva de si mesma. É um delírio
semelhante ao de Thomas de Quincey, no livro Confissões de um comedor de ópio, no qual o vício é encarado como
forma de tornar viável a edificação de uma igreja em que o viciado é deus e
devoto de si mesmo: a fusão entre alfa e ômega.
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