Fonte da imagem: site Os Vigaristas |
É difícil me contrapor ao pensamento de Emil Cioran. À
medida que o leio, sinto como se minhas palavras e meus silêncios tivessem sido
abortados antes mesmo da fecundação. Fernando Pessoa redime o ridículo,
concedendo-lhe indulgência em forma de amor. Já Cioran não é piedoso com o ridículo, os excessos, os gemidos e a epilepsia do espírito. Contudo, mesmo sendo avesso a tudo
que religião respira, ele não consegue fugir da função de inquisidor, condenando à
“morte” todos os que não comungam de sua crença na impossibilidade da comunhão.
Tentativas de fugir da solidão existencial se tornam, no
discurso dele, uma forma de as pessoas se forçarem umas as outras a
compartilharem a opressão que as sufoca. Nesta perspectiva, o consenso se torna
a vitória do vírus devastador da verdade, que ergueria seu trono perante uma
multidão sem fim de mortos-vivos para os quais o privilégio da dúvida deixa de
ser possível.
Edificantes são as palavras de Cioran quando expõem a
tirania e a miséria que habitam dissimuladamente o coração de valores como a fé
e a verdade. Ele consegue detectar como pode ser tomado pela lepra o lirismo
presente em sentimentos que costumamos interpretar como o bem absoluto. Se bem
que fica até difícil fazer um elogio a este filósofo, visto que considerar suas
palavras edificantes significaria, sob o olhar dele, transformar estas palavras
em monumentos ao terror e ao estupro do direito de duvidar.
Além disso, será sempre difícil ser sincero com Cioran
porque ele considerará um inimigo todo aquele que falar perto dele sobre
sinceridade, ideal ou futuro.
A verdade, os ideais, a fé. Esta tríade, para Cioran, roubou
do ser humano o direito de se deixar profanar pela dúvida, pela preguiça e de
se guiar pela lanterna da indiferença e do cinismo, passando adiante a tocha
carregada pelo filósofo Diógenes.
Mas, Cioran leva tão a ferro e fogo estes sentimentos, como
se neles se escondesse, pelos séculos dos séculos, uma conspiração para dominar
o mundo. Ele encara os sentimentos que aspiram à transcendência como atentados
violentíssimos ao despudor ou como colonizadores que querem fazer caber a pulso
o latifúndio da eternidade no microcosmo da subjetividade.
Para ele, os mártires são fascistas em potencial que, por obra e graça do
destino, terminam com seus pescoços cortados antes de despontarem para o estrelato. Mas, os mártires não foram, muitas
vezes, pessoas que escolheram acreditar que a liberdade de expressão do
indivíduo era mais importante que manter a cabeça no lugar às custas do
respeito à violência institucionalizada que força cultura, convenção e espírito
a serem partes integrantes de um amálgama?
Diante das ideias desconcertantes (talvez esse elogio
agradasse minimamente Cioran) deste pensador, resta terminar o texto não com
argumentos, mas com perguntas.
Só é possível fazer parte da existência dos outros como
terrorista que, nas escoras da pressão e do totalitarismo, funda os alicerces
de sua influência?
A eterna dúvida não seria também um tipo de êxtase fanático
que nos assalta? O que torna tão certa a ideia de que o êxtase e o delírio são
privilégios da busca pela verdade e que a dúvida é abrigo da liberdade e da
ponderação?
Valores incondicionais seriam sempre imposturas de seres
corruptos incapazes de enxergar a própria cegueira e dispostos a alastrar a
tirania da verdade como um tipo de versão nostálgica da peste negra?
A incondicionalidade, além do sentido que Cioran lhe atribui,
não poderia ser encarada como um “estar de passagem”? Explico-me. O amor
incondicional, por exemplo, aquele que ama sem exigir nada em troca.
Impossível, de fato. Afinal, tudo exigiria algo em troca... Esta é a lógica
implícita ao pensamento de Cioran: é impossível caminhar nas terras do outro
sem deste outro exigir algo em troca, sem cobrar pedágio. Porém, penso eu – e talvez esteja
minimamente certo – se não fossem os gestos de amor incondicional, por mais
diluídos e inevidentes que sejam, até mesmo os semáforos seriam inúteis. Aliás,
todos os sinais seriam inúteis.
A lei e o terror não teriam força, por si sós, de fazer os
sinais operarem corretamente. Em parte, os sinais são obedecidos (em parte são
coação). Mas, em uma parte consideravelmente maior, são amor incondicional. É
isso que torna possível a pessoas, independentemente de se conhecerem, optarem
por se render ou não aos sinais.
Não atravessar o sinal vermelho pode ser cumprir uma
obrigação, mas também é uma forma de amar incondicional e anonimamente alguém do outro lado do cruzamento, alguém que, muito talvez, não veremos mais. Da mesma forma, o amor incondicional pode
ser entendido menos como ausência de condições e mais como o questionamento
das condições.
Nesse sentido, é simples compreender o gesto de fazer o bem
sem esperar algo em troca. Não esperar algo em troca significa menos um
altruísmo ingênuo e desinteressado do que uma forma de expressar a indiferença
aos condicionamentos vigentes ou, quem sabe, um modo de guardar memórias do
tipo “além de mim mesmo” para no futuro ser capaz de, na senda de Epicuro,
desintoxicar-se do "si mesmo" quando o “si mesmo” for uma grande dor
(coisa que acontece com certa frequência para quem leva minimamente a sério os
espelhos espalhados nos labirintos da existência).
A seguir, um trecho do instigante e controverso pensamento de Emil Cioran. Veja o texto na íntegra no blog Um Ano Existencialóide. Aproveito para, mais uma vez, agradecer a Raphael Tenório que, com suas reflexões tem estimulado reflexões do blog Acedia.
"Basta que eu escute alguém falar sinceramente de ideal, futuro, de filosofia, escutá-lo dizer “nós” com uma inflexão de segurança, convocar os “outros” e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. Vejo nele um tirano falido, quase um verdugo, tão odioso como os tiranos e verdugos de grande classe. É que toda fé exerce uma forma de terror, tanto mais temível quando os “puros” são os seus agentes." - Emil Cioran
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