Fonte: Globo.Com |
O bullying tem a peculiaridade de inserir as pessoas, inseri-las
em comunidades de exclusão.
O que aconteceu com a atriz mirim Ana Karolina Lannes foi só
um esforço para consolidar uma comunidade de exclusão. Na tentativa de erguer
este tipo de espaço público, as pessoas despendem quantidade de energia
equivalente àquela que poderia ser utilizada para manter em operação o afeto e
o respeito necessários para reforçar elos comunais benéficos. No balanço energético das relações humanas, a
exclusão não significa a mera falta de inclusão, mas sim um trabalho dobrado de
incluir + revirar os afetos pelo avesso.
Nesse sentido, o bullying é um louvor, preenchido, porém,
pela anti-poesia.
Certa vez, ouvi dizer de uma história de alguém que, por
amor, fez chegar a quem amava uma flor todos os dias (mal percebera este alguém
que a prova de amor não era entregar todos os dias uma flor, mas sim entregar a
uma flor todos os dias...). No bullying, há uma encomenda semelhante: não de
flores, mas daquilo que Vinícius de Morais chamou de anti-rosas.
Quem pratica o bullying reza um anti-terço, cujas contas em
vez de Ave-Marias são cansaços doloridos de quem é “bullyingnado”. Lembremos
que o anti-terço não tem mistérios e nem Salve Rainha. O bullying é óbvio,
embora a dor que ele causa seja sempre inédita.
O bullying trabalha com falta de requinte e crueldade o mito
do destino e o mito do acaso. O que é bom no indivíduo é rebaixado a excrescência
do acaso e o que é entendido como ruim é elevado a decreto irrevogável do
destino.
A celebração de Corpus Christi está relacionada ao gesto da
divindade de fazer de si mesma alimento e tornar-se memória. No bullying, o
outro é devorado para que, em lugar de sua memória, fique a memória do insulto.
Triste a sina de quem pratica o bullying, pois não percebe que deixou o insulto
se tornar maior do que ele.
Desnecessário é dizer que o bullying é falacioso, pois
inverte a relação de causa-efeito. É como culpar a fome pela falta de comida. Se bem que o propósito do bullying não parece ser culpar, pois a
culpa pressupõe o perdão (mesmo que seja a falta de). O que está em jogo não é
o fazer o indivíduo se sentir culpado, mas deixar acesa em sua mente a dúvida
ininterrupta: E se eu for culpado? Ou: e se eu for inocente?
A vítima do bullying é como uma sombra perdida no deserto,
sem ter onde amarrar sua pessoa.
Lembremos as comunidades do falecido Orkut: elevavam um
indivíduo ao status de rei, coroando-o de infâmia disfarçada de opinião casual.
Oremos!
É bem a cara de nossa época, que trata as homenagens
sinceras como ardis importados de Game of
Thrones, preferindo homenagens ao avesso, como aquelas estampadas nas
lápides que se insiste em chamar de postagens. Mas, esse comentário é,
certamente talvez, exagero da minha parte.
Ana Karolina Lannes não teve seu destino violentado por ser
filha de pais gays, pois o bullying não é regido pela relação lógica de
causa-efeito. É como um imã absurdo que sai conectando preconceitos numa
varredura em busca dos mais ancestrais arroubos de crueldade.
Talvez o que eu queira dizer fique mais claro se John Lennon
me ajudar na explicação: “A mulher é o negro do mundo. A mulher é a escrava dos
escravos. Se ela tenta ser livre, tu dizes que ela não te ama. Se ela pensa, tu
dizes que ela quer ser homem.”.
No preconceito contra a mulher, cabe o preconceito contra o
negro, assim como na discriminação do negro cabe a discriminação do
homossexual, assim como o rancor destinado a Ana Karolina Lannes voltou-se
contra ela, contra seus pais homossexuais, mas também contra os loucos, contra
os que não preenchem os “padrões” corporais contrabandeados de terras do nunca
made in Taiwan... Cada preconceito faz caber em si inúmeros outros e, por isso mesmo, o preconceito é algo tão descabido.
Theo Chen, 12 anos, não foi vítima de bullying por ser
homossexual, pois sua sexualidade mal teve tempo de aflorar. E foi feito
literalmente de bode expiatório, eleito para ser o repositório de misérias e
terrores que, “vez por outra”, o ser humano, frequentemente, quer desentocar de
seus porões. No adolescente, também foram vítimas de humilhação as mulheres, os negros,
os judeus, os artistas, os homossexuais e também os heterossexuais desviantes
das expectativas nutridas pela sanha grotesca pela generalização.
O choro de Ana Karolina não é só dela, pois, todos nós, em
algum momento, estaremos sujeitos a ter sobre nós projetada a imagem de algum
tipo de excluído, o que, por incrível que pareça, inclui até a imagem de nós
mesmos!
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