Cena do filme "Meu Primeiro Amor" |
Certa vez, fui
advertido de não andar por aí fazendo o sinal de positivo com a mão. Ei-lo:
Disseram-me que, em certas regiões do Oriente, este gesto
era considerado um insulto digno da pena de morte.
Esta observação e o fato de ontem ter sido dia do beijo me
fizeram pensar sobre o significado do gesto e sobre ele tecer algumas
considerações intempestivas e, certamente talvez, sem importância. Será minha
homenagem a Horácio que disse que devíamos ter cuidado ao escrever, pois o que
estava escrito não podia ser apagado.
E, desde então, Horácio tem uma súcia de seguidores
dispostos a dizer quem deve ou não escrever, assim como Feliciano tem uma súcia
de seguidores dispostos a dizer quem deve beijar, quem deve ser considerado
pessoa.
O gesto, por mais reconhecível que seja, é irrepetível:
impressão digital do tempo.
É a mão que se faz presente ou ausente no resgate de quem
está prestes a cair no precipício. O silêncio sempre terá algo a dizer porque é
mais fácil Adão e Eva decidirem voltar a andar nus do que as ações humanas
serem capazes de se despir do gesto.
A medicina evoluiu tanto, mas as pessoas continuam
associando o gesto ao sinete que anunciava, na Idade Antiga, a chegada dos
leprosos.
Um olhar desavisado pode ser encarado como uma lepra capaz de atingir seu alvo como míssil teleguiado. Um toque inesperado pode, de repente, significar uma declaração de guerra, capaz de fazer com que as violas sejam substituídas por fuzis AR.
Um olhar desavisado pode ser encarado como uma lepra capaz de atingir seu alvo como míssil teleguiado. Um toque inesperado pode, de repente, significar uma declaração de guerra, capaz de fazer com que as violas sejam substituídas por fuzis AR.
A fobia dos gestos tem a ver com uma falha no “mecanismo
enzimático” que permite ao ser humano atual distinguir a esfera pública da
privada. A confusão cresceu a tal ponto que o presidente dos direitos “humanos”
do Brasil arregimentou um exército de sentinelas para vigiar os pórticos do cu
alheio.
Estacionei o carro, andei dez passos. No meio do caminho
tinha um segurança que cuidava da entrada de um restaurante. Lembrei ter
esquecido o celular no carro. Retornei onze passos. Tinha um segurança no meio
do caminho. Dessa vez o cumprimentei, olhando-o nos olhos. Ele disse que o fato
de eu regressar, olhar para ele e abrir a porta do carro, gerou nele a sensação
de que eu fosse tirar uma arma para matá-lo...
Hã?
Regresso + olhos nos olhos + porta do carro aberta =
tentativa de assassinato?
O que Lèvinas pensaria sobre esta bizarra combinação
linguística?
No meu tempo, regresso + olhos nos olhos + porta do carro
aberta = matar a saudade.
O farsante sinete que antes era colocado nos leprosos
continua tocando na tensão muda que antecede os gestos. Diante da pressa e da
precipitação, tem-se escolhido fazer dos gestos uma espécie de “detector de
caráter” e nós, tolos contemporâneos, “brincamos” de mímica e fazemos dos
gestos motivo para condenar o outro a morte, mesmo que esta morte seja
destilada, paulatinamente, no espírito alheio.
O beijo descende do gesto das mães, de várias espécies
animais, de transportar água e alimento para os filhos. Foi considerado um
escândalo quando apareceu no cinema pela primeira vez em 1896. De lá pra cá, é
considerado ora um gesto puro de amor, ora uma perversão (como na polêmica
acerca do beijo entre pessoas do mesmo sexo em locais públicos). De todo modo, o beijo é um selo. Ele pressupõe
uma correspondência que, ao alcançar seu destino faz os que se beijam perderem
seus endereços, sem direito a AR (aviso de recebimento).
As fronteiras dos estados nacionais têm cedido lugar às
fronteiras dos gestos, encarados como divisores entre o eu e o nós, ou entre o "Nós,
sim!" e o "Vocês, não!".
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