Foto: Ricardo Chaves |
Álvaro Lins não errou somente na escrita do nome de Clarice
Lispector, a quem chamava de “Clarisse”. Equivocou-se também na crítica que
fazia dela: “A Sra. Clarice Lispector não atingiu todo o objetivo da criação
literária. Ainda não está no domínio daquela experiência vital que permite a
realização de um romance completo". E errou ainda ao achar que Clarice
teria um dia a pretensão de se tornar uma morta de sobrecasaca: logo a elegante
Clarice...
Ora, como é sabido por quem bem o sabe, Clarice é uma das
inauguradoras da escrita fractal, que convida para a literatura as fronteiras
indecisas, o que torna possível fazer o toque do despertador nos acordar para o
sonho ou o sonho nos dormir para a realidade. E, mesmo em tom de desfeita, Lins
reconhece este caráter na ainda jovem Clarice: "a visão do mundo numa
atmosfera de sonho, a confusão entre memória e imaginação, a deformação
alucinada dos fenômenos sob o efeito da subjetividade”.
São Jorge - Pintura de Frederico Marques |
Certamente talvez, ela tenha cogitado a hipótese de que Deus
se permite inventar e assim misturar-se às tempestades do ser do ser.
No papel de Clarice, Beth Goulart meio que psicografa esta
teoria clariciana e investiga a ideia da escritora de que, por meio da palavra,
a carne divina se faz verbo e habita entre/dentro-fora de nós.
Informalmente, o cenário do espetáculo, Simplesmente eu, Clarice Lispector, torna Clarice filha de São
Jorge. A iluminação lembra que a obra da escritora pode ser decomposta nas
fases da lua e que as fases da lua podem ser decompostas em tangos e os tangos
em espelhos e os espelhos em personagens e os personagens em nós.
O cenário da peça é por vezes lua cheia, por vezes meia, por
vezes Nova. E é nas luas novas que Clarice se reencontra com o passado, com a
herança judaica e com a saudade de Deus, saudade que convida a escritora a
inventá-lo e, como o Rei Davi, celebrar o fato de que a escuridão ao lado da
infinitude divina pode ser mais luminosa do que a luz na companhia solitária
das certezas.
A escrita de Clarice reescreve o mito de São Jorge,
abrindo-nos para a ideia de que, nas luas do espírito humano, somos o dragão de
nós mesmos e que, por vezes, vale a pena abaixar a espada e ouvir o que esta
fera em nós tem a dizer, inclusive quando esta fera se chama doçura.
O espetáculo orquestra a luz da lua, dando musicalidade a seus
acenderes e apagares. Assim, organiza o pensamento de Clarice em atos de fé, de
amor e de contrição e faz da escrita poética uma confissão que tem por função
nos tornar cúmplices do Infinito e tornar as deformações alucinadas do mundo a
espada com que aprendemos a nos des-matar
até redescobrir nos desertos da existência onde a natureza se esconde.
Ao fim da peça, depois de vários minutos de aplauso, Beth Goulart agradeceu a oportunidade de intepretar Clarice no Recife, terra em que ela foi dada à luz depois de ter nascido na Polônia. Era recifense seu sotaque, apesar de sua língua presa tê-la feito ser confundida a vida inteira com uma russa.
Em seguida, Beth Goulart Lispector se despediu da plateia com um sinal da cruz.
Em seguida, Beth Goulart Lispector se despediu da plateia com um sinal da cruz.
A Mahely e Lylian, que nos aproximam de quem amamos.
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