Super Nossa Senhora - Por Soasig Chamaillard |
Soasig Chamaillard fez uma releitura de imagens da Virgem
Maria. O trabalho da artista francesa, que encontrou um jeito inusitado de restaurar estátuas danificadas de Nossa Senhora, suscitou o questionamento sobre os
limites entre o original e o indecoroso, um questionamento que pode ser ampliado,
acrescentando-se antes do ponto de interrogação uma indagação sobre em que medida a
conexão entre os textos, isto é, a intertextualidade, deve (ou pode) ser
estimulada ou inibida.
O olhar indecoroso - ou intertextual - não é o que invade a intimidade alheia munido
de segundas, terceiras - e assim por diante – intenções. O verbo que melhor caracteriza o indecoro não
é o verbo invadir. É o verbo conectar.
O invasor pode entrar e sair sem deixar pistas ou impressões
digitais. O indecoroso rompe com as defesas monádicas da individualidade e, a
despeito do querer de sua “vítima” - conecta-se com ela, fazendo questão de deixar marcas da falta de decoro.
O que mais envergonha
num gesto considerado indecoroso – como o de tirar a roupa em público - não é o
olhar dos outros sobre nossa nudez. É o elo que o (des)pudor estabelece entre as pessoas, a
ponto de todos, ao se espelharem no portador do gesto indecoroso, sentirem-se
igualmente nus ou, pior ainda, igualmente vestidos. Considera-se alguém ou alguma atitude indecorosa para não se correr o risco de ser acusado de ser cúmplice desse alguém ou desse gesto.
A dor (?) maior não é ser
olhado indecorosamente. É ser assaltado pela sensação de que a conexão com o
outro é inevitável.
Um fantasma que assombra os que têm medo da conexão, e,
portanto, da quebra do decoro, é o medo de perder o controle sobre si mesmo, de
ter sua identidade diluída na identidade com a qual se estabelece a conexão.
Esse medo é herdeiro da noção de heresia, que tem sido uma das acusações à obra de Soasig Chamaillard. Acusar
algo de heresia é uma tentativa de enfrentar a possibilidade – real ou imaginária - de
ter a identidade e as certezas violentadas pela identidade alheia.
Porém,
é certo que a quebra do decoro e a conexão entre identidades são movimentos que
fazem parte do exercício de suspensão da tradição e dos juízos consolidados,
preparando a renovação da cultura. A renovação não entra em cena deitada em
berço esplêndido. Ela, em certa medida, precisa ser precedida por uma dose de
invasão bárbara.
O olhar indecoroso tira a roupa de quem está sendo olhado. É
verdade. Mas, deixar o outro nu não significa necessariamente expô-lo à
vergonha. Pode ser um gesto de revelar a roupagem de paraíso perdido que o
veste.
Acredito que isso aconteça com o trabalho de Chamaillard. Ela
desmistifica o extenuado chavão de que a cultura de massa é um tipo de vazio
laicizado e mostra como imagens, por mais sagradas que sejam, podem ser
visitadas por imaginários de diferentes ordens, incluindo o imaginário da
cultura de massa.
Essas visitas podem produzir efeitos diferentes como a
ironia, a homenagem, a crítica, a sedução e a difamação. Mas, é uma
precipitação e uma injustiça ocultar esta diversidade de efeitos e entender a
conexão e a falta de decoro como sinônimos de injúria, calúnia e difamação.
A modernidade é indecorosa porque sua matéria-prima é a
conexão, isto é, o elo virtual e cambiável entre a materialidade e a
imaterialidade. A falta de decoro dos tempos modernos traz o desafio de
compreender a riqueza e a miséria que os elos – entre pessoas e ideias – são capazes
de gerar.
Conheça mais sobre o trabalho de Soasig Chamaillard no site da artista e na coluna Tipo Assim, de Isa Otto.
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