25 de junho de 2012

Luiz Gonzaga na mais alta conta no Baixio dos Doidos

Foto: Karla Vidal




Cheguei a "praguejar", como diria um bom "cabra da peste", devido ao atraso de alguns dias que houve para ser inaugurada a exposição Baixio dos Doidos, instalada em Caruaru, durante os festejos juninos, para homenagear o centenário de nascimento de Luiz Gonzaga. Mas, este atraso foi providencial, como  o atraso que faz o ponteiro do relógio de sol andar para trás, quando Deus decide mudar de ideia e postergar o dia da morte de alguma pessoa.

O cenário da exposição é de um trem fantasma em que os vagões são nossos próprios corpos. Há fantasmas a ser "vistos", mas não há monstros. E ocorrem sustos porque sempre há susto quando algum segredo nos espera por trás da porta, mesmo que tal porta seja feita não de madeira, mas sim de suspense com expectativa. Nesse caso, os cômodos da casa - que também pode ser chamada de exposição ou de instalação - são guardados por sentinelas que, ao contrário dos anjos, convidam-nos a voltar ao passado ou, mais precisamente, a um tipo de futuro do pretérito, visto que o Luiz Gonzaga homenageado é uma releitura que nos lança rumo a um Luiz Gonzaga que ainda vai nascer.

Foto: Thomás Alves (G1/TV Asa Branca)
De certa forma, não há nada de novo, pois a obra de Luiz Gonzaga foi feita de passados que cabem em qualquer futuro. Segue-se por um labirinto cujas salas com nome de canção ou cujas canções com nome de sala transformavam o momento presente num eterno ponto de chegada partida para o voo de algum pássaro nordestino - um assum preto ou uma asa branca ou uma saudade ou um não-prejuízo.

Os mortos que surgem nas paredes do trem fantasma continuam mortos. Os mortos que surgem nas paredes do Baixio dos Doidos são como ressuscitados que esperam chegarmos em cada canção (ou sala) para desmorrerem. Não tenho bem certeza, mas até acho que vi Chico Science desmorrendo, ressuscitando.

Foi quando presenciei uma releitura - por meio de fotos de crianças brincando de Neymar nos manguezais da vida - da música "Vi  dois siri jogando bola (lá no mar)". Luiz Gonzaga já havia sido comparado aos Beatles, mas ainda não havia percebido que ele era precursor do Mangue Beat. Ele, com despretensão e brinquejando, já aludia para como o subdesenvolvimento deixava as pessoas na fronteira entre humanidade e animalidade. E isso sem, provavelmente, ter precisado ler a obra de Kafka, que, certamente, lera Josué de Castro.

A sala da Asa Branca não focou a tragédia do sertanejo, mas deteve sua atenção no olhar de Rosinha, a heroína da canção-lamento. Reza a lenda que o verde dos olhos da amada, quando terminasse a seca, se espalharia pela plantação. E assim se fez: diante das fotos em preto e branco daqueles homens e mulheres de olhos verde-desespero/esperança, não pude deixar de mandar buscar, no outro lado do Atlântico, do castanho do olhar de Alguém, isto é, sua lembrança.

Tinha também uma parede toda furada que me chamava para brechar. Cada buraco - de tiro que não era tiro- era um monóculo, que apresentava a "tradução" de alguma expressão típica do vocabulário sertanejo. E, assim, enquanto ouvia o "fantasma" de Arnaldo Antunes declamando o ABC do sertão,descobri que estrupício significa "problema de grandes proporções".

Foto: Karla Vidal
Também me impressionou a sala "Paraíba Masculina, mulher-macho, sim Senhor!", na qual uma jukebox tocava a canção ouvida por fotos de drag queens penduradas nas paredes. Quando de seu lançamento, a música foi acusada de boicotar a feminilidade das mulheres quando o que Gonzaga queria não era nada mais do que ressaltar o que, no contexto atual, seria chamado de Girl Power. A exposição acabou por revelar, através de fotos, que essa música foi apropriada pelas drag queens como símbolo de resistência. E, nessa hora, escutei a melodia invisível de outra música: "Que diferença da mulher o homem tem (...) Se for reparar direito é pouquinha a diferença".

Antes do fim, fui obrigado a cruzar uma sala repleta de serpentes penduradas no teto como lustres. Fechei os olhos e atravessei ligero, protegendo o rosto com as mãos. O som que ouvi enquanto atravessava logo me fez despertar para o fato de que não eram serpentes, mas sim chocalhos, daqueles que as vacas, como pessoas educadas que são, usam para anunciar sua chegada a um determinado ambiente. Aquele som era como um tempo desencontrado que me achara ali perdido e, por meio de uma sensação de conforto triste que fez minha boca ficar seca sem ter sede, dizia que a derradeira sala da exposição vinha depois da última e antes da primeira. Essa sala era eu, coração!


A exposição segue, em Caruaru (Pernambuco), até 15 de julho.




Sala "Siri jogando bola" do Baixio dos Doidos



Sala "A morte do vaqueiro" do Baixio dos Doidos



Sala "Xote das meninas" do Baixio dos Doidos



Making of da exposição Baixio dos Doidos

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