Ouvindo a narração da Via Crucis, transmitida, ao vivo, da
Catedral de Aparecida, notei como o texto procurava mostrar que não havia sido
escrito com caneta e papel, mas sim com lupa e carne. Os detalhes das torturas
ressaltados telescopicamente: a carne lacerada, os nervos e ossos atravessados
não só pelos pregos, mas pela omissão e pela canalhice do mundo.
Um quê de sadismo? Certamente talvez. Contudo, faz parte da
arte vivenciar a ferida alheia elevada à septingentésima potência sem que nossa
pele sofra nenhum arranhão.
No martírio de Cristo, o riso e a dor travam uma batalha
decisiva. Comédia e tragédia ficam em dúvida sobre o que são diante de ações dramáticas
nas quais o riso ri da dor, transformando-se em escárnio, e a dor, espelhada na fácies hipocrática do riso doente, torna-se horror.
O narrador da Via Crucis que eu entreouvia, deitado na cama,
falou algo que me prendeu a atenção: “Cristo cai pela terceira vez com a cruz.
Todos os que o cercam são, nesse momento, Pilatos, omissos, e optam pelo gesto
fácil de lavar as mãos”.
E perguntei-me: Como não ser Pilatos? Pilatos tinha outra
escolha a não ser ser ele mesmo? Ele tinha poder, mas não tinha porque o poder lhe era o poder
delegado do alto
Ele deve ter pensado com os botões de sua túnica: “Este
Cristo é admirável. Em outro momento, seríamos amigos e jantaríamos juntos.
Mas, no atual contexto, o que posso fazer é deixar que ele seja um pouco
martirizado e, assim tentar aplacar a sede de sangue do povo.”
Mas, a sede de sangue não foi aplacada porque não era sede,
mas conveniência. Convinha a morte de Cristo aos interesses dos poderosos e
também ao interesse da população de ver no chão uma pessoa que ela mesma tinha
alçado à posição de deus-esperança
Lavar as mãos é a fórmula da tragédia, que habita o local
onde decidir é impossível
Se a pessoa tem o poder sem tê-lo
Se ama sem amar
Se quer sem querer
Se se sacrifica sem se sacrificar
Nestes “ses”, resta a opção de lavar as mãos
Pilatos é o ápice da tragédia, na narrativa de Cristo. A figura de Jesus, mesmo tendo sido totalmente desfigurada, não é, ao fim, uma
figura trágica, porque ele exerceu o tempo inteiro o poder de decisão, tomando
decisões que, até hoje, desconcertam, por oscilarem na fronteira discursiva entre
a lucidez e o absurdo, a exemplo de “amar o inimigo” e “perdoar quem te mata”
Pilatos não tinha como decidir. Percebendo a tragédia de sua
condição, o próprio Cristo chamou atenção para o fato de que o mal maior não
estava sendo cometido pelo representante romano, mas sim por quem o tinha acionado
Ser como Cristo ou como Pilatos? Talvez a pergunta de nossa época, durante os
próximos dias, pelo menos, não seja esta, mas sim: Como decidir?
Acho que existem muitas pessoas de boa-vontade que têm
buscado e, em certa medida, encontrado, lugares intermediários entre o
sacrifício total de Cristo e a omissão de Pilatos. Mas, nossa herança
trágico-cômica, ainda tende a encarar como verdade os extremos. Neste sentido,
sacrificar seria abrir mão de si mesmo, anular-se, restando a quem não está
disposto a isto omitir-se
Certamente talvez, sejam possíveis sacrifícios que não
anulem a nós mesmos e que ajudem o outro a não cair numa zona de auto-anulação.
E também é possível privilegiarmos a nós mesmos sem lançar o outro na zona de
anulação
E nada do que eu disse anula o valor das decisões de Cristo,
que, até hoje, abalam os tronos e os altares dentro e fora de nós, ajudando-nos
a redimir os sacrifícios extremos e as omissões extremas na história e na alma
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