Arte de Sylvain Grand'Maison |
Tentei me abster da fome, mas não pude
E, logo na primeira linha, percebo que o jejum é inútil
Mas, ai do mundo sem os inúteis, que, na maior parte das
vezes,
São Indispensáveis
Pensemos, agora, em tudo que nos é inútil
Ou em todos que nos são inúteis
Temos por hábito inutilizar as pessoas
Porque se elas fossem o tempo todo úteis (muito úteis)
Seria insuportável o peso do cálice em nossas almas
Contudo, existe a tendência de exagerarmos na dose
E inutilizarmos os outros até torná-los de fato inúteis
E aí esquecemos que nos momentos cruciais, e também nos
ressurrecionais,
É sempre um inútil que está por perto sendo indispensável
São os inúteis que nos salvam, sem ser messias
Que nos acendem a potência, sem ser super-homens
Que nos recriam, sem ser deuses
E nos amam ardentemente como só os aquém-do-homem são
capazes de fazer
Eis a razão do jejum: devolver a dignidade aos inúteis
Porque normalmente os que nos são úteis são apenas cúmplices
da alegria,
Do vinho, da pança cheia e da soberba
Os inúteis se permitem estar invisíveis e nos fazem
companhia
Na alegria que nutre o coração em vez de superavitar o
balanço contábil da vaidade
Na dor que, à luz do abraço inútil e invisível, lembra-se de
que existe e se esquece de não passar
Ingrato o trabalho dos inúteis que nos oferecem remédio e
são vistos como quem nos deseja ver doentes
Que esperam acordados até o final dos tempos e são vistos
como articuladores do Dia do Juízo
Que não são vistos e são vistos como indignos de serem
vistos
Os inúteis são capazes de nos amar verdadeiramente
E se abstêm do seu próprio existir para estar a nosso lado
Incógnitos nas maçantes mesmidades do cotidiano
Perceba que, muitas vezes, certamente talvez, nós cagamos e
os inúteis é que dão descarga
Muitos inúteis pegam o trem e não retornam
Porque alguns úteis decidiram apertar o gatilho de um
tic-tac maldito
Outras (os) inúteis são jogadas (os) escada abaixo
Porque algum útil decidiu ser macho e esquecer de ser homem
O jejum é importante quando significa que estamos dispostos
a deixar de
Nos empanturrar de nós mesmos
E preparar um banquete para receber de abraços apertados
Cheios de constrangimento terno
Nossos queridos e
ilustres inúteis
Que chegaram cansados, vindos das longínquas terras do “ao
nosso lado”
Nenhum comentário:
Postar um comentário