14 de março de 2016

Impeachment, opinião pública e descodificação aberrante



Carl Rose - Mr. Biggott


No final dos anos 40, as pesquisas de Eunice Cooper e Marie Jahoda investigaram como os leitores recepcionavam a propaganda anti-preconceito na história Mr. Biggott, por meio da qual o artista Carl Rose utilizava o humor/ironia para desconstruir o antissemitismo.

Cooper e Jahoda detectaram uma nova modalidade do não-entendimento que não está relacionada ao intelecto, mas sim à resistência de quem lê a ter seus pressupostos abalados. O não-entendimento nesse caso funciona como mecanismo de preservação da auto-estima ou mesmo de defesa do orgulho ferido e é chamado de “descodificação aberrante”.

Nessa linha, a interpretação da mensagem é comparável a uma carga elétrica. Assim como as cargas geram em torno delas um campo elétrico, as mensagens também se inserem num campo, que pode ser de aceitação ou de recusa. E a inserção num desses campos pode se dar de maneira aberrante. Isto quer dizer que a audiência pode considerar a mensagem mais análoga a suas opiniões do que de fato a mensagem é ou vice-versa. As consequências são, respectivamente, a assimilação ou o contraste da mensagem.

A descodificação aberrante e seus efeitos de assimilação e contraste se aplicam ao debate em torno do atual cenário político brasileiro.

Diferentemente dos estudos da narrativa de Mr. Biggott, seria necessário estudar não a resistência a abandonar o preconceito, mas sim a facilitação da adesão ao preconceito. Exemplo disso é a proliferação de mensagens falaciosas cujos comentários nas redes sociais em vez de trabalharem em prol da reflexão, operam unicamente no sentido de reforçar campos de aceitação ou de recusa.

É o que ocorre quando a pessoa afirma que uma determinada figura pública não afirmou ser a favor da pedofilia e surgem comentários dizendo que ao afirmar tal coisa se está incentivando a pedofilia. Extrapola-se o raio de ação da opinião alheia vitimando-a com calúnias que, em meio ao caos abobalhado das redes, passam-se por meros “comments”. E tome curtir e emoticon pra cima pra disfarçar um discurso subjacente de incitação de ódio.

Em outra direção, tenta-se subjugar o poder de recusa. É o que ocorre, por exemplo, quando o indivíduo tenta argumentar que é contra o impeachment quando este remédio não respeita os parâmetros constitucionais e, pelo simples fato de levantar este argumento, é tachado de corrupto.
Algo semelhante ocorre com a participação nos protestos e a interpretação aberrante de que quem deles participa é um “brasileiro de verdade” e quem não participa é “cúmplice da bandalheira”.

Cooper e Jahoda identificaram que o não-entendimento pode ser máscara do desejo de permanecer aderido a preconceitos. No contexto atual, com auxílio refinado das redes sociais, observa-se uma espécie de ultra-entendimento. As mensagens são “entendidas” como mais claras do que realmente o são porque troca-se a reflexão e o entendimento pela ação de tomar a palavra do outro como deixa para dar vazão a nossos veredictos pré-datados. A mensagem alheia é transformada em alto-falante para repercutir o eco enfadonho das podreiras que jazem nos galpões de nossa futilidade reprimida.

O que Cooper e Jahoda achariam estranho, talvez, é que os preconceitos difundidos pela descodificação aberrante no momento atual não são privilégio dos mais velhos. Contrariamente, são preconceitos que se apresentam ainda mais arraigados no coração de jovens.

Desconfiar do nosso próprio entendimento é sempre saudável, embora doloroso e muito incômodo. Mas, é um exercício que estimula a liberação de paz e honradez na corrente sanguínea da sociedade.



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