Foto: Cláudio Eufrausino |
Soa estranho quando, ao se referir a sua mãe, Maria, Cristo
usa, diferentes vezes, somente a expressão “Mulher”. Algo que pode ser
interpretado como um tratamento rude, machista e desdenhoso. Afinal, a cultura
nordestina está habituada a reservar às mães títulos mimosos como mainha e,
dificilmente, abre mão do pronome Senhora para tratar as progenitoras.
Os evangelhos relatam que, certa ocasião, Cristo foi avisado
que sua mãe e seus irmãos estavam a sua procura, havendo indagado ao portador
da notícia: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? ”.
Mesmo sem ser teólogo, arrisco-me a dizer sim à tentação de refletir
sobre este aparente descaso e grosseria que o discurso de Jesus parece oferecer
a Nossa Senhora.
Em um livro poético chamado Ofício da Imaculada Conceição – um texto escrito em latim, no
século XV, pelo Frei Bernardino de Bustis – percebe-se que a Virgem Maria é,
talvez, a figura bíblica à qual se faz mais alusões. Estas alusões não se limitam
a referências pessoais. Abrangem remissões feitas a lugares e a objetos
sagrados. Daí, a Virgem ser comparada à Arca da Aliança, à Porta do Céu, ao
Trono de Salomão, a uma Cidade guarnecida de Torres, ao Lírio e também a
estados corporais, como atesta um dos versos que a chama de “Saúde dos Enfermos”.
Maria é comparada, na obra do Frei de Bustis, a mulheres que
tiveram destaque no Antigo Testamento, como Judite, conhecida por utilizar seus
encantos para seduzir o rei de uma nação inimiga de Israel. Aproveitando-se do
sono profundo pós-gozo do rei, Judite o decapita e, assim, liberta os hebreus da
escravidão. De maneira semelhante, Maria consagra sua pureza a Deus, a fim de
gerar a salvação do mundo, personificada pelo Messias.
Porém, as duas alusões mais interessantes associadas a Maria
são o título de Estrela da Manhã e de Eva.
Estrela da Manhã, ou Lúcifer, era o modo pelo qual era
conhecido o Satanás quando pertencia à corte celeste, antes de se tornar um
anjo caído. Ao ser chamada de Estrela da Manhã, Maria redime a sombra demoníaca
(a estrela caída) e devolve à figura da Estrela a potência imagética,
associando-a um novo momento histórico: o nascimento de Cristo.
Maria também é comparada a Eva. Na verdade, ela será chamada
de nova Eva, em decorrência de Cristo ser chamado de novo Adão, ou, em outras
palavras, do Adão que deu certo, por representar a perfeita aliança entre Deus
e o ser humano. Maria também sela a nova e eterna aliança do divino com o
humano. “Esmaga a cabeça da serpente” e, por isso, ganha o título de nova Eva,
nome que significa “Mãe de todos os viventes”.
É desta comparação de Maria a Eva que se pode extrair o porquê
de Cristo chamar Maria de Mulher.
Na boca de Cristo, Mulher se torna um título honorífico.
Maria é a Mulher, por excelência, trazendo a graça e as dores de todas as
mulheres. Isso porque assumiu o risco de ser uma mãe solteira, foi uma mulher
refugiada, como as mães que fogem com os filhos, tentando salvá-los de regimes
totalitários. Foi também uma mulher mãe de uma criança perdida e, mais à
frente, teve o filho preso e assassinado como as mães de filhos das ditaduras.
Votando ao relato dos evangelhos e à pergunta feita por
Cristo: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos? ”. Jesus responderá: “Minha
mãe e meus irmãos são todos os que seguem a vontade de meu Pai”.
O aparente desdém com relação a Maria esconde outro elogio: a
figura de Maria não se resume a um só momento histórico. Ela encontra reflexos
nos gestos de homens e mulheres do passado e do futuro, que, assim como ela,
assumem o risco de fazer escolhas que permitam nascer o amor e a luta pela
emancipação humana.
É uma figura que não fica presa a uma só referência, mesmo
que esta referência seja ela mesma. Por isso, Maria de Nazaré assume a feição
de inúmeras Nossas Senhoras espalhadas pelo mundo inteiro.
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