Fonte: Ultradownloads |
Assim como Sócrates e Cristo, Ferdinand de Saussure contou com seus discípulos para divulgar seu pensamento. O resultado foi compilado no livro Curso de Linguística Geral,
editado, pela primeira vez, em 1916. Este teórico francês, considerado pai da
Linguística, formulou uma ideia até hoje meio estranha ao nosso olhar, que se
vende como pós-moderno, mas ainda pulsa na frequência do século XVII, acreditando ser possível estabelecer uma relação direta entre as palavras e as coisas
do mundo.
A teoria saussureana insere uma falha geológica onde o
senso comum enxergava a existência de terrenos planos, livres de qualquer tipo
de acidente. Saussure se deu conta de
que, entre a coisa e a palavra que a designa, ocorre uma operação mental
complexa.
Neste sentido, a palavra não é espelho fiel da coisa, mas
sim um contrato social entre um conceito (a coisa vestida das abstrações do
pensamento) e um significante (uma convenção social expressa por meio de um
código, que, no caso da língua, são as palavras). Este contrato social é o que
se costuma chamar de signo.
Os próprios sons que ouvimos não entram diretamente na
composição das palavras. São, antes, convertidos em material pensamental (ou do
pensamento). Por meio das convenções musicais, o som ganha contornos
harmônicos. De forma semelhante, os sons das palavras, ao serem apropriados pelo pensamento, são desinvestidos de suas propriedades físicas e investidos das convenções linguísticas, que
variam de idioma para idioma, tornando-se fonemas. O ciclo é finalizado quando as palavras são
proferidas e reinvestidas de suas propriedades físicas. Um idioma ao qual não
se está familiarizado soa como uma massa sonora amorfa por estar privado da
harmonia doada pelas convenções da língua.
Como se pode ver, a palavra é um circuito energético em que
matéria-física se converte em matéria psíquica e vice-versa. E, nesse processo
de conversão, inscrevem-se códigos de compartilhamento do saber: códigos de
convivência. Este ciclo de conversão energética é semelhante ao que ocorre
nas artes marciais, em particular no Aikidô.
A palavra aikdô (aikidō) é formada por três ideogramas
kanji: 合 (ai), harmonia; 気 (ki), energia; e 道 (dō),
caminho. Numa tradução simplificada, Aikidô significaria “caminho para
harmonização de energia”.
Ferdinand de Saussure |
As lutas tradicionais têm uma lógica análoga à da concepção
tradicional de língua (baseada na ideia de que a palavra reflete diretamente a
coisa). Assim, a energia é encarada como reflexo direto da força. A força,
nesse caso, pode ser representada pela figura do espelho.
Já o Aikidô tem uma lógica análoga à da concepção de língua
de Saussure. As técnicas de Aikidô buscam seu efeito na união entre um conceito
(o conceito de manutenção da circulação energética e redução do conflito) e um
significante (movimentos codificados para corporificar o conceito). A força
deixa de ser um reflexo especular da energia e passa a ser resultante da
codificação filosófica e corporal da energia em trânsito. A força, nesse caso,
pode ser representada pela figura de uma espiral.
As diferentes línguas são geradas por um processo
comunicacional, no qual se produz uma zona de compartilhamento de saber. Dessa forma, os
significados são produzidos na relação entre emissor e receptor. Não é,
portanto, possível a um indivíduo isoladamente produzir significado, bem como o
significado é um conjunto sempre aberto, pois sempre haverá um capítulo de
mistério na língua, capítulo este a ser desvendado à medida que nos
relacionamos com novas pessoas ou, de maneira nova, com pessoas já “conhecidas”.
O Aikidô é gerado por um processo comunicacional semelhante
ao descrito no parágrafo anterior. Emissor e receptor da técnica são,
respectivamente, chamados de ukê e tori. O som, origem do circuito energético
da língua, é representado, no Akidô, pela respiração.
Enquanto o pensamento é considerado por Saussure palco
fundamental das operações linguísticas, o cenário de operações estratégicas do
Aikidô é um tipo de entrelugar: um espaço de fluxo no qual corpo e mente
são reciprocamente traduzíveis, sem que a relação entre eles esteja submissa ao
divórcio imposto pelo cartesianismo ou ao reducionismo especular imposto pelo
materialismo vulgar.
Por esta razão, diferentes corpos e diferentes mentes
conseguem desenhar seu próprio caminho de colaboração para o fluxo do ki: expressão da vida do mundo que,
energeticamente, flui no ser humano, e, ao mesmo tempo (e espaço), expressão da vida humana que, energeticamente, flui
no ser mundo.
A relação entre a teoria de Saussure e o Aikidô acaba revelando
sutilezas e limites da complicada relação entre concordância e conflito. Ambos,
o Aikidô e a teoria saussureana, têm como ponto de partida a ideia de que a
concordância – o compartilhamento do sentido – é a base da relação
comunicativa. Não se trata da concordância entendida como mera ausência de
conflito. A inexistência do conflito termina por significar o tornar-se habituado
à ditadura de um monólogo. E, sem diálogo, a língua deixaria de ser um fato
social, como a denomina Saussure, e se tornaria uma abstração vazia.
O conflito, sob a óptica do Aikidô, também deixa de ser
entendido como postura mimada e tacanha de apagamento do outro seguido da busca por refúgio em solidões de marfim. Passa a ser entendido como dose de discordância necessária para que a
concordância não se vicie, mascarando relações de subjugação pautadas na
aplicação da força, na obstrução do fluxo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário