27 de maio de 2012

A misteriosa presença do Aikidô nas entrelinhas da teoria linguística de Saussure


Fonte: Ultradownloads



Assim como Sócrates e Cristo, Ferdinand de Saussure contou com seus discípulos para divulgar seu pensamento. O resultado foi compilado no livro Curso de Linguística Geral, editado, pela primeira vez, em 1916. Este teórico francês, considerado pai da Linguística, formulou uma ideia até hoje meio estranha ao nosso olhar, que se vende como pós-moderno, mas ainda pulsa na frequência do século XVII, acreditando ser possível estabelecer uma relação direta entre as palavras e as coisas do mundo.

A teoria saussureana insere uma falha geológica onde o senso comum enxergava a existência de terrenos planos, livres de qualquer tipo de acidente.  Saussure se deu conta de que, entre a coisa e a palavra que a designa, ocorre uma operação mental complexa.

Neste sentido, a palavra não é espelho fiel da coisa, mas sim um contrato social entre um conceito (a coisa vestida das abstrações do pensamento) e um significante (uma convenção social expressa por meio de um código, que, no caso da língua, são as palavras). Este contrato social é o que se costuma chamar de signo.

Os próprios sons que ouvimos não entram diretamente na composição das palavras. São, antes, convertidos em material pensamental (ou do pensamento). Por meio das convenções musicais, o som ganha contornos harmônicos. De forma semelhante, os sons das palavras, ao serem apropriados pelo pensamento, são desinvestidos de suas propriedades físicas e investidos das convenções linguísticas, que variam de idioma para idioma, tornando-se fonemas. O ciclo é finalizado quando as palavras são proferidas e reinvestidas de suas propriedades físicas. Um idioma ao qual não se está familiarizado soa como uma massa sonora amorfa por estar privado da harmonia doada pelas convenções da língua.

Como se pode ver, a palavra é um circuito energético em que matéria-física se converte em matéria psíquica e vice-versa. E, nesse processo de conversão, inscrevem-se códigos de compartilhamento do saber:  códigos de convivência. Este ciclo de conversão energética é semelhante ao que ocorre nas artes marciais, em particular no Aikidô.

A palavra aikdô (aikidō) é formada por três ideogramas kanji: (ai), harmonia; (ki), energia; e (dō), caminho. Numa tradução simplificada, Aikidô significaria “caminho para harmonização de energia”.

Ferdinand de Saussure
Criado por Morihei Ueshiba (1883-1969), na década de 1940, o aikidô é um grupo de técnicas por meio das quais os “combatentes” operam conjuntamente para manter a energia – o ki - fluindo. Nas técnicas de combate tradicionais, o objetivo é subjugar, por meio do choque, a energia do oponente. No Aikidô, o objetivo é conjugar energias para, por meio da concórdia, dissipar o conflito.

As lutas tradicionais têm uma lógica análoga à da concepção tradicional de língua (baseada na ideia de que a palavra reflete diretamente a coisa). Assim, a energia é encarada como reflexo direto da força. A força, nesse caso, pode ser representada pela figura do espelho.

Já o Aikidô tem uma lógica análoga à da concepção de língua de Saussure. As técnicas de Aikidô buscam seu efeito na união entre um conceito (o conceito de manutenção da circulação energética e redução do conflito) e um significante (movimentos codificados para corporificar o conceito). A força deixa de ser um reflexo especular da energia e passa a ser resultante da codificação filosófica e corporal da energia em trânsito. A força, nesse caso, pode ser representada pela figura de uma espiral.

As diferentes línguas são geradas por um processo comunicacional, no qual se produz uma zona de compartilhamento de saber. Dessa forma, os significados são produzidos na relação entre emissor e receptor. Não é, portanto, possível a um indivíduo isoladamente produzir significado, bem como o significado é um conjunto sempre aberto, pois sempre haverá um capítulo de mistério na língua, capítulo este a ser desvendado à medida que nos relacionamos com novas pessoas ou, de maneira nova, com pessoas já “conhecidas”.

O Aikidô é gerado por um processo comunicacional semelhante ao descrito no parágrafo anterior. Emissor e receptor da técnica são, respectivamente, chamados de ukê e tori. O som, origem do circuito energético da língua, é representado, no Akidô, pela respiração.

Enquanto o pensamento é considerado por Saussure palco fundamental das operações linguísticas, o cenário de operações estratégicas do Aikidô é um tipo de entrelugar: um espaço de fluxo no qual corpo e mente são reciprocamente traduzíveis, sem que a relação entre eles esteja submissa ao divórcio imposto pelo cartesianismo ou ao reducionismo especular imposto pelo materialismo vulgar.

Por esta razão, diferentes corpos e diferentes mentes conseguem desenhar seu próprio caminho de colaboração para o fluxo do ki: expressão da vida do mundo que, energeticamente, flui no ser humano, e, ao mesmo tempo (e espaço), expressão da vida humana que, energeticamente, flui no ser mundo.

A relação entre a teoria de Saussure e o Aikidô acaba revelando sutilezas e limites da complicada relação entre concordância e conflito. Ambos, o Aikidô e a teoria saussureana, têm como ponto de partida a ideia de que a concordância – o compartilhamento do sentido – é a base da relação comunicativa. Não se trata da concordância entendida como mera ausência de conflito. A inexistência do conflito termina por significar o tornar-se habituado à ditadura de um monólogo. E, sem diálogo, a língua deixaria de ser um fato social, como a denomina Saussure, e se tornaria uma abstração vazia.

O conflito, sob a óptica do Aikidô, também deixa de ser entendido como postura mimada e tacanha de apagamento do outro seguido da busca por refúgio em solidões de marfim. Passa a ser entendido como dose de discordância necessária para que a concordância não se vicie, mascarando relações de subjugação pautadas na aplicação da força, na obstrução do fluxo.






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