Uma provocação inteligente é suficiente para me retirar da
inércia. Assim foi com a nova campanha publicitária da boneca Barbie.
O anúncio traz meninas em posição de liderança profissional
(fazendo às vezes de médica, mulher de negócios, técnica de futebol, guia de
museu), exibindo uma mistura de fofura e autonomia. Depois, estas crianças aparecem
brincando com a Barbie, numa espécie de ensaio para seu futuro de mulheres
autônomas e bem-sucedidas.
Trata-se de uma campanha onde atua o fenômeno da redução
mítica, identificada pelo filósofo Umberto Eco nas histórias em quadrinhos da
turma do Charlie Brown, escritas por Schultz. Nessas histórias, os mitos (entendidos,
aqui, simplesmente como narrativas que estruturam a sociedade e têm caráter
recorrente ou cíclico) ligados ao universo adulto, a exemplo do mito do homem
de negócios, são revestidas de atributos do universo infantil (e redução, nesse
caso, significa transposição). E essa coexistência contrastante entre o adulto
e o infantil estimula, na opinião do pensador italiano, a reflexão crítica no
seio da cultura de massa, que tenderia a solapar a criticidade.
A nova campanha publicitária da Barbie é uma proposta
feminista que não escapa da tradicional receita patriarcal da garota que
precisa ensaiar para ser mulher.
26 anos atrás, bem antes de Simone Beauvoir ser convidada a se tornar tema de redação do Enem, Yoná Magalhães representou, na TV, uma das
personagens da novela Tieta, adaptação de Aguinaldo Silva para o romance quase
homônimo de Jorge Amado (Tieta do Agreste).
A certa altura da trama, a antes maltratada e subserviente Tônia,
recém-viúva, regressa do Rio de Janeiro para as dunas de Mangue Seco,
desfilando uma incrível transformação, cujo pano de fundo era a música Uma Nova
Mulher, de Simone. Com mais de 50 anos, Yoná Magalhães ilustrava uma canção cuja
letra falava no desejo da mulher de poder sair das sombras e colocar no coração
dos homens a sede de paixão, com segredo e malícia.
Em contraste com esta vocação feminista, o vestido azul de
Tônia remetia ao dogma da Imaculada Conceição. Ou, talvez, o contraste seja
aparente, tendo em vista que a Virgem Maria assumiu riscos/voos tipicamente
feministas há mais de 2 mil anos.
Uma fórmula do feminismo resumida no apelo: “Deixe-me ser
livre para o amor”. Passado tanto tempo, esse apelo, hoje, ganha voz entre
homens e mulheres. Afinal, parece-me, 26 anos depois da queda do muro de
Berlim, a (falta de) liberdade de amar continua sendo utilizada como muro para
separar homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, dentre outras
dicotomias que surgem pelo caminho, a exemplo de fiéis versus infiéis. ´
Do enfrentamento de preconceitos contra a mulher, creio eu,
nasce potência para o enfrentamento de preconceitos relacionados a outros
grupos sociais, assim como do enfrentamento do preconceito contra os negros.
O que parece que estou querendo dizer é que o enfrentamento
de um preconceito é uma flecha capaz de atingir diversos alvos ao mesmo tempo. Nenhum
preconceito está sozinho como nenhum enfrentamento é unidirecional. E não cabe
no enfrentamento do preconceito o fingir que a contradição deixou de existir.
Até mesmo a Barbie, tradicional reduto simbólico da verve
machista, tem direito a abrir seu flanco para acolher o enfrentamento da
tirania. Mas, a mesma Barbie nos adverte que enfrentar preconceitos sem assumir
as contradições só gera idealismo ingênuo, terreno fértil para recaídas
reacionárias e retomadas triunfais de preconceitos, que nunca morrem: só
hibernam.
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