6 de novembro de 2015

Com vocês, a nova Barbie: feminismo aberto ao contraditório



Uma provocação inteligente é suficiente para me retirar da inércia. Assim foi com a nova campanha publicitária da boneca Barbie.

O anúncio traz meninas em posição de liderança profissional (fazendo às vezes de médica, mulher de negócios, técnica de futebol, guia de museu), exibindo uma mistura de fofura e autonomia. Depois, estas crianças aparecem brincando com a Barbie, numa espécie de ensaio para seu futuro de mulheres autônomas e bem-sucedidas.

Trata-se de uma campanha onde atua o fenômeno da redução mítica, identificada pelo filósofo Umberto Eco nas histórias em quadrinhos da turma do Charlie Brown, escritas por Schultz. Nessas histórias, os mitos (entendidos, aqui, simplesmente como narrativas que estruturam a sociedade e têm caráter recorrente ou cíclico) ligados ao universo adulto, a exemplo do mito do homem de negócios, são revestidas de atributos do universo infantil (e redução, nesse caso, significa transposição). E essa coexistência contrastante entre o adulto e o infantil estimula, na opinião do pensador italiano, a reflexão crítica no seio da cultura de massa, que tenderia a solapar a criticidade.

A nova campanha publicitária da Barbie é uma proposta feminista que não escapa da tradicional receita patriarcal da garota que precisa ensaiar para ser mulher.

26 anos atrás, bem antes de Simone Beauvoir ser convidada a se tornar tema de redação do Enem, Yoná Magalhães representou, na TV, uma das personagens da novela Tieta, adaptação de Aguinaldo Silva para o romance quase homônimo de Jorge Amado (Tieta do Agreste).

A certa altura da trama, a antes maltratada e subserviente Tônia, recém-viúva, regressa do Rio de Janeiro para as dunas de Mangue Seco, desfilando uma incrível transformação, cujo pano de fundo era a música Uma Nova Mulher, de Simone. Com mais de 50 anos, Yoná Magalhães ilustrava uma canção cuja letra falava no desejo da mulher de poder sair das sombras e colocar no coração dos homens a sede de paixão, com segredo e malícia.

Em contraste com esta vocação feminista, o vestido azul de Tônia remetia ao dogma da Imaculada Conceição. Ou, talvez, o contraste seja aparente, tendo em vista que a Virgem Maria assumiu riscos/voos tipicamente feministas há mais de 2 mil anos.

Uma fórmula do feminismo resumida no apelo: “Deixe-me ser livre para o amor”. Passado tanto tempo, esse apelo, hoje, ganha voz entre homens e mulheres. Afinal, parece-me, 26 anos depois da queda do muro de Berlim, a (falta de) liberdade de amar continua sendo utilizada como muro para separar homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, dentre outras dicotomias que surgem pelo caminho, a exemplo de fiéis versus infiéis. ´

Do enfrentamento de preconceitos contra a mulher, creio eu, nasce potência para o enfrentamento de preconceitos relacionados a outros grupos sociais, assim como do enfrentamento do preconceito contra os negros.

O que parece que estou querendo dizer é que o enfrentamento de um preconceito é uma flecha capaz de atingir diversos alvos ao mesmo tempo. Nenhum preconceito está sozinho como nenhum enfrentamento é unidirecional. E não cabe no enfrentamento do preconceito o fingir que a contradição deixou de existir.

Até mesmo a Barbie, tradicional reduto simbólico da verve machista, tem direito a abrir seu flanco para acolher o enfrentamento da tirania. Mas, a mesma Barbie nos adverte que enfrentar preconceitos sem assumir as contradições só gera idealismo ingênuo, terreno fértil para recaídas reacionárias e retomadas triunfais de preconceitos, que nunca morrem: só hibernam.

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