15 de agosto de 2013

A poesia atropelada de Alceu e os dois braços esquerdos da democracia brasileira


Foto: Daniel Valença/Facebook


O recente atropelamento de Alceu Valença colocou em evidência uma chaga da cultura brasileira. Refiro-me à ideia, consciente e inconscientemente regada e adubada no solo de nossa Mãe "Gentil", de que, salvo as exceções banhadas na beira mar e nos Jardins, caberia aos brasileiros a obrigação de pedir licença para exercer seus direitos fundamentais.

A tendência de acharmos risível o depoimento de Alceu reflete, em certa medida, a tendência de acharmos risível o esforço de contestar o fato de nos serem negados os direitos básicos, a exemplo do direito de ir e vir.

A exemplo do pernambucano, achamos natural fazer de uma prazerosa caminhada na praia um exercício de transformar nossos passos em ilha onde buscamos refúgio dos buracos nas calçadas e dos ciclistas que burlam qualquer regra de respeito ao pedestre. Certamente talvez, o caso Alceu comprova sermos indivíduos espremidos entre o descaso do Estado e a prepotência feudal dos indivíduos que tratam os direitos alheios como mera concessão de senhores feudais a bordo de seus castelos sobre rodas. E, ao pedestre (vassalo) resta a inglória tarefa de catar rua nos buracos que ocupam o lugar das calçadas. Mas, o High Lux dos suseranos também não escapa de estar solto (preso) na buraqueira enquanto chega ou parte do restaurante Anjo Solto. E só a intercessão de Joana D'Arc para proteger a suspensão dos veículos indefesos.

"Você tem o direito de permanecer calado engolindo o desrespeito de seus direitos, pois qualquer esboço de contestação pode ser usado contra você", dirão as autoridades que riem do esforço dos doutorandos enquanto teimam em ser chamadas de doutores a bordo de uma farsante reprodução de vícios feudais cercados de tecnologia 3G por todos os lados.

Assim como na Idade Média, continuamos obrigados a reservar a primeira noite de amor de nossas esposas virgens para senhores feudais chauvinistas. A diferença é que nossa "esposa virgem" é a Justiça, violada pela sanha daqueles que cultivam o joio do antigo regime no solo da democracia brasileira que, por vezes, parece órfão.

Mas, onde não há justiça, que haja pelo menos a justiça do poeta, estampada no protesto, em verso, de Alceu Valença:

Adoro andar de bicicleta. Mas neste dia deixei minha eguinha na garagem e resolvi caminhar da minha casa, no Leblon, até o Arpoador e voltar. Enquanto retornava pelo calçadão, ia cantarolando as belezas do Rio: “Eu te procuro no Leblon, Copacabana / vejo velas de umbanda / um buquê jogado ao mar”. 

Ao passar em frente ao Posto 9, cantei: “Andar andar / nas ruas do Rio de Janeiro / dezembro abril / a todo mundo eu dou psiu / perguntando por meu bem /ainda resta um assobio / um desejo, nada além”. 
Ao me aproximar do Jardim de Alah, lembrei de uma canção que compus há muitos anos, logo que cheguei na Cidade Maravilhosa: “Era verão na cidade de São Sebastião / do meu Rio de Janeiro / fevereiro se rendia / se entregando por inteiro / seu azul seu mormaço a março que é mês do desejo..”.

Parei numa barraca de coco e fiquei contemplando o pôr-do-sol dourado e divino que desmaiava junto ao Morro Dois Irmãos. O sol caiu lentamente enquanto a lua surgia no céu. Em silêncio, quando somente as imagens sem música povoavam a minha mente, caminhei até o final do Leblon. Passei por manifestantes acampados que protestavam contra Cabral. 

Sigo em frente e olho para os lados antes de atravessar a pista. No lado esquerdo, carros retidos diante do sinal fechado. Olho para o outro lado, não vejo ninguém. Coloco o pé na ciclovia e, num susto, vejo aproximar-se de mim o vulto de um ciclista todo vestido de preto, numa velocidade inacreditável. Joguei o corpo para trás, mas senti que o guidon se chocara contra minha mão esquerda. Urrei de dor.

Ainda tive tempo de escutar alguém que passava gritar para o desastrado ciclista: “Filho-da-Puta!”, enquanto o sujeito desaparecia a toda velocidade pela infinita ciclovia. Não havia mais som ou imagem. Fui direto para uma clínica e obtive o diagnóstico: fratura na mão esquerda, quatro semanas sem tocar violão. Tive de adiar meu show acústico no Teatro Oi Casagrande, que estava marcado para o fim do mês (e passou para o dia 17 de setembro).

No dia seguinte, desafiando a mim mesmo, saio para caminhar com um braço imobilizado e pendurado na tipoia. Muitos param para me perguntar o que acontecera com minha mão e relato pacientemente o ocorrido. Um gari da prefeitura se aproxima, cantando “Anunciação”. Quando explico o acidente, o gari resume, com sabedoria: “ciclovia não é pista de corrida”. Andar, andar nas ruas do Rio. Desviando dos buracos nas calçadas de pedrinhas portuguesas e de ciclistas inconsequentes. O direito de um termina quando começa o do outro.

Alceu Valença

Fonte: JC Online

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