Le Cheval Clair de Lune - L'auteur 'Yodalechat |
Não sei se já mencionei, mas boa parte de meus minha
erudição (e da presunção que lhe serve de coenzima) é herdadas ou tomada de
empréstimo. Peço, então, mais uma vez emprestada erudição de um amigo que, por
sua vez, a tomou emprestada de outros, lembrando-nos que a intertextualidade,
entre amigos, é uma das melhores formas de lutar contra o sequestro do sonho.
Em artigo publicado pela revista Outros Críticos, o amigo
José Juva rasgou o véu do templo de meus recônditos preconceitos, expondo uma
face que me era desconhecida sobre o fenômeno da curadoria. Para mim, a palavra
curador soava como algo entre o mofo de arquivos moribundos e a decadência
opulenta de antigos regimes que se esqueceram de enterrar-se.
Mas, estou convencido de que o curador pode ser alguém que trabalha
como um advogado do sonho, promovendo a reconciliação entre mito, sonho e
conceito e suavizando les coups de vent que nos ferem de forma mais profunda
que qualquer spray de pimenta quando resolvemos lutar contra a tempestade que
nega passe livre aos amores, à amizade, ao mérito, à franqueza, à fraqueza, à
coragem, à crença, ao direito, à ou ao ___________________ (esteja livre para
acrescentar o que quiser, desde que não sejam balas de borracha ou tochas
mascaradas de V de vingança...).
O maior inimigo dos “Grandes Irmãos” que se rogam o direito
de vigiar a própria vigilância não é outro senão o psicopompo. Este termo que o
ignorante corretor do Word insiste em sublinhar de vermeho me foi emprestado
por José Juva e por Jung (aquele abraço pra eles. Para os dois porque aprendi
com Jung a não ter vergonha de abraçar os “mortos”).
Existem psicopompos bastante conhecidos como Ariadne, Hermes, o anjo Gabriel, Perséfone, João Grilo... Todos eles com o papel de encontrar conexões entre opostos aparentemente irreconciliáveis.
Existem psicopompos bastante conhecidos como Ariadne, Hermes, o anjo Gabriel, Perséfone, João Grilo... Todos eles com o papel de encontrar conexões entre opostos aparentemente irreconciliáveis.
O psicopompo, assim como o curador forjado pelo cativante
romantismo de Juva, luta pelo direito do passe livre. Nem só de BRTs vive o
homem, mas do direito de transitar entre a morte e a vida, mas também entre a
noite e o dia, entre o céu e a terra.
Sei que alguns podem me alcunhar de louco ou
transcendentalista, mas o que está em jogo na luta do inconformado psicopompo é
o direito que mito, sonho e conceito têm de tomar a palavra na assembleia do
sentido.
É sério, folks! O trabalho do curador de organizar a
assembleia do sentido para que tenham direito a voz sonho, mito e conceito, enfrenta
os artefatos sociais mais torpes como a intolerância, a ignorância, a
hipocrisia e a tirania (tomando, nesse momento, emprestada a erudição de
Fernando Pessoa), que tentam encontrar um jeito de restabelecer o domínio do
arcaico monopólio ou das anacrônicas ditaduras. Explico-me: o psicopompo d’aujourd’hui
combate a ditadura ou o monopólio seja do sonho, do mito ou do conceito. O monopólio ou a ditadura tem o poder de reduzir suas vítimas a pesadelo. E tentar escapar do pesadelo
do monopólio do mito, do sonho ou do conceito é o que dá vivacidade às lutas de
diferentes grupos sociais que a cultura tenta isolar nos campos de concentração
do imaginário coletivo.
Esta postagem era pra ser uma homenagem a Claude Debussy e
acaba sendo de qualquer maneira, pois, como é sabido por quem bem o sabe,
Debussy era um inconformado. Era um curador, como o concebe José Juva, pois
quis achar uma forma de fazerem sentar à mesma mesa Chopin,Wagner e Schönberg, negando a tendência totalitária dos movimentos “culturais” de construírem sua razão de
ser em cima dos destroços de vozes silenciadas. Debussy mostra que é possível
fazer da estética um território em que a polifonia deixe de ser um convite à
guerra e se torne um convite ao ágape. Sobre isto dirá ele, em uma de suas
últimas cartas, que sua arte tem por objetivo criar “com o melhor de minha
capacidade um pouco daquela beleza que o inimigo está atacando com tanta fúria”. O inimigo ao qual o músico se refere era a Primeira Guerra, por ele presenciada.
E, para sentar a esta mesa não é necessário ser uma ávore de
natal cujos enfeites são marcas que plantaram sua fama nos campos de extermínio
ou a plantam no trabalho escravo gestado no ventre dos tigres da Ásia.
O psicopompo ou o curador convida as expressões artísticas a
trocarem o anseio hollywoodiano de ser uma estrela de eterno brilho – hedionda
versão metonímica da bomba nuclear - pelo anseio de ser parte de uma constelação em
que vale a pena passar por fases de apagamento, donde se contempla satisfeito o
brilho das outras estrelas. E, assim, o milagre da multiplicação do brilho se
torna possível enquanto as estrelas comungam dos beijos que só os humanos têm
know-how para ensinar como reconhecem os próprios deuses.
Aterrissando...
Em uma obra de Walcyr Carrasco, Debussy atuou como
psicopompo. Sua música Claire de lune unia a vida de uma linda dama de 18 anos
que fora uma exímia bailarina e fora assassinada para defender seu grande amor.
Vinte anos depois, esta jovem dama reencarnou como uma linda índia de olhos
verdes que, mesmo comendo com as mãos, trazia a mesma elegância que sua
encarnação anterior.
Guiada por memórias da vida passada, a jovem índia tenta
reencontrar quem amava. Um dia, depois de ter sido ridicularizada de todas as
formas (afinal como uma nobre dama poderia renascer como uma índia “selvagem”?)
, ela surpreendeu a todos ao dançar balé ao som de Claire de Lune, de Debussy.
Dançou de uma forma ainda mais linda que sua encarnação anterior... Perguntaram
a ela: Como você, uma índia do mato, dançou balé sem nunca ter aprendido? E ela
respondeu: Foram as árvores que, ao som da orquestra dos ventos e das águas, me
mostraram como...
E assim uma índia de uma novela de Walcyr Carrasco ensinou
Debussy a ser um psicopompo.
Confira o texto do jornalista José Juva sobre a relação entre o curador literário e o psicopompo, aqui.
Confira o texto do jornalista José Juva sobre a relação entre o curador literário e o psicopompo, aqui.
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