24 de agosto de 2013

A luta de Claude Debussy e dos psicopompos pelo passe livre

Le Cheval Clair de Lune - L'auteur 'Yodalechat


Não sei se já mencionei, mas boa parte de meus minha erudição (e da presunção que lhe serve de coenzima) é herdadas ou tomada de empréstimo. Peço, então, mais uma vez emprestada erudição de um amigo que, por sua vez, a tomou emprestada de outros, lembrando-nos que a intertextualidade, entre amigos, é uma das melhores formas de lutar contra o sequestro do sonho.

Em artigo publicado pela revista Outros Críticos, o amigo José Juva rasgou o véu do templo de meus recônditos preconceitos, expondo uma face que me era desconhecida sobre o fenômeno da curadoria. Para mim, a palavra curador soava como algo entre o mofo de arquivos moribundos e a decadência opulenta de antigos regimes que se esqueceram de enterrar-se.

Mas, estou convencido de que o curador pode ser alguém que trabalha como um advogado do sonho, promovendo a reconciliação entre mito, sonho e conceito e suavizando les coups de vent que nos ferem de forma mais profunda que qualquer spray de pimenta quando resolvemos lutar contra a tempestade que nega passe livre aos amores, à amizade, ao mérito, à franqueza, à fraqueza, à coragem, à crença, ao direito, à ou ao ___________________ (esteja livre para acrescentar o que quiser, desde que não sejam balas de borracha ou tochas mascaradas de V de vingança...).

O maior inimigo dos “Grandes Irmãos” que se rogam o direito de vigiar a própria vigilância não é outro senão o psicopompo. Este termo que o ignorante corretor do Word insiste em sublinhar de vermeho me foi emprestado por José Juva e por Jung (aquele abraço pra eles. Para os dois porque aprendi com Jung a não ter vergonha de abraçar os “mortos”).

Existem psicopompos bastante conhecidos como Ariadne, Hermes, o anjo Gabriel, Perséfone, João Grilo... Todos eles com o papel de encontrar conexões entre opostos aparentemente irreconciliáveis.

O psicopompo, assim como o curador forjado pelo cativante romantismo de Juva, luta pelo direito do passe livre. Nem só de BRTs vive o homem, mas do direito de transitar entre a morte e a vida, mas também entre a noite e o dia, entre o céu e a terra.

Sei que alguns podem me alcunhar de louco ou transcendentalista, mas o que está em jogo na luta do inconformado psicopompo é o direito que mito, sonho e conceito têm de tomar a palavra na assembleia do sentido.

É sério, folks! O trabalho do curador de organizar a assembleia do sentido para que tenham direito a voz sonho, mito e conceito, enfrenta os artefatos sociais mais torpes como a intolerância, a ignorância, a hipocrisia e a tirania (tomando, nesse momento, emprestada a erudição de Fernando Pessoa), que tentam encontrar um jeito de restabelecer o domínio do arcaico monopólio ou das anacrônicas ditaduras. Explico-me: o psicopompo d’aujourd’hui combate a ditadura ou o monopólio seja do sonho, do mito ou do conceito. O monopólio ou a ditadura tem o poder de reduzir suas vítimas a pesadelo. E tentar escapar do pesadelo do monopólio do mito, do sonho ou do conceito é o que dá vivacidade às lutas de diferentes grupos sociais que a cultura tenta isolar nos campos de concentração do imaginário coletivo.

Esta postagem era pra ser uma homenagem a Claude Debussy e acaba sendo de qualquer maneira, pois, como é sabido por quem bem o sabe, Debussy era um inconformado. Era um curador, como o concebe José Juva, pois quis achar uma forma de fazerem sentar à mesma mesa Chopin,Wagner e Schönberg, negando a tendência totalitária dos movimentos “culturais” de construírem sua razão de ser em cima dos destroços de vozes silenciadas. Debussy mostra que é possível fazer da estética um território em que a polifonia deixe de ser um convite à guerra e se torne um convite ao ágape. Sobre isto dirá ele, em uma de suas últimas cartas, que sua arte tem por objetivo criar “com o melhor de minha capacidade um pouco daquela beleza que o inimigo está atacando com tanta fúria”. O inimigo ao qual o músico se refere era a Primeira Guerra, por ele presenciada.

E, para sentar a esta mesa não é necessário ser uma ávore de natal cujos enfeites são marcas que plantaram sua fama nos campos de extermínio ou a plantam no trabalho escravo gestado no ventre dos tigres da Ásia.

O psicopompo ou o curador convida as expressões artísticas a trocarem o anseio hollywoodiano de ser uma estrela de eterno brilho – hedionda versão metonímica da bomba nuclear -  pelo anseio de ser parte de uma constelação em que vale a pena passar por fases de apagamento, donde se contempla satisfeito o brilho das outras estrelas. E, assim, o milagre da multiplicação do brilho se torna possível enquanto as estrelas comungam dos beijos que só os humanos têm know-how para ensinar como reconhecem os próprios deuses.

Aterrissando...

Em uma obra de Walcyr Carrasco, Debussy atuou como psicopompo. Sua música Claire de lune unia a vida de uma linda dama de 18 anos que fora uma exímia bailarina e fora assassinada para defender seu grande amor. Vinte anos depois, esta jovem dama reencarnou como uma linda índia de olhos verdes que, mesmo comendo com as mãos, trazia a mesma elegância que sua encarnação anterior.

Guiada por memórias da vida passada, a jovem índia tenta reencontrar quem amava. Um dia, depois de ter sido ridicularizada de todas as formas (afinal como uma nobre dama poderia renascer como uma índia “selvagem”?) , ela surpreendeu a todos ao dançar balé ao som de Claire de Lune, de Debussy. Dançou de uma forma ainda mais linda que sua encarnação anterior... Perguntaram a ela: Como você, uma índia do mato, dançou balé sem nunca ter aprendido? E ela respondeu: Foram as árvores que, ao som da orquestra dos ventos e das águas, me mostraram como...


E assim uma índia de uma novela de Walcyr Carrasco ensinou Debussy a ser um psicopompo.

Confira o texto do jornalista José Juva sobre a relação entre o curador literário e o psicopompo, aqui.


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