Fonte: Uol |
Playstation 5: uma prova de amor
Por Kleto Vide
Provocava-o porque o amava. Se provocares alguém obtuso, sem
graça ou complexidade, desinteressantemente belo e tediosamente simpático, que
recompensa terás?
Provocava-o porque me encantava o modo como este Alguém
reagia, desescondendo um amor sem parcimônia pela humanidade: amor quebradiço,
com lampejos de egoísmo de classe alta-média (mas qual amor não tem momentos de
ser adversário [corsário] de si mesmo?) e de uma timidez que parece só
encontrar no botão de rosa-lua imagem útil para traduzi-la.
Poderiam dizer que era eu um masoquista, um stalker, alma penada vigiando páginas do
Face. Mas, nem tudo é a verdade e a mentira que pa(e)rece ser. Mas, em certa
medida eu o perseguia, posto que os anjos que guardavam as fronteiras entre o
dentro e o fora de mim assumiram a missão diplomática de ensinar os abraços
daquele habitante da tierra de la Virgen
de La Consolación a acharem o útero de Gaia. E, depois de gestados, esses
abraços dariam à luz sorrisos capazes de vencer o cansaço de viver.
Tudo o que quero é engravidar a alma deste Nobre Alguém:
engravidá-la de abraços, beijos, enternecimentos constrangedores e sonhos de
Santos Dumont...
Talvez eu pudesse lui
donner uma distância capaz de mantê-lo a salvo do antes e do depois de me
conhecer, mas ainda estou em estado de choque desde o dia em foi me dado o dom
de enxergar com nitidez telescópica naquele ser humano perto-distante uma estrela de ternura
refém da hostilidade e de um não sei quê de atraente esnobismo.
Meio que não tenho vivido, tenho continuado. E tentado
aprender a me desvencilhar dos efeitos do choque de ternura. Mas, é difícil
terminar de assistir a guerra estelar televisionada pela camisa daquele
Alguém, enquanto aguardo ansioso pelos intervalos, em que posso ver pela fresta
da porta do tempo o que há em seu coração.
Até então não tinha experimentado a sensação de ser
considerado uma ameaça, de estar em casa vendo Game of Thrones enquanto era tornado suspeito de cometer terríveis
crimes como escrever poemas, mandar flores e conhecer detalhes do rosto de quem
amava ou saber qual era a marca de seu carro. Uma coisa é certa (talvez): quando
olhei fundo naqueles olhos que a gravidade atraía para o chão, senti vontade de
que aquele Alguém não sentisse dor, nem medo e de que fosse feliz (não
porque o achasse infeliz, mas porque queria para ele felicidade a perder de
vista). Quis ser uma sala da qual ele pudesse sair e entrar sem precisar dar
satisfação a chave ou porta qualquer.
Mas o que talvez fosse me levar pra prisão fosse um crime
contra mim mesmo, um suicídio sem direito a último suspiro: o crime de falar
sobre a vontade de ser amado. E “?como o culpado desse crime poderia ser detectado
pelo sistema de câmeras da Nova Aliança?”, indagou-me o apóstolo João com o
qual converso, vez por outra, sobre o Apocalipse enquanto ele não desiste de me
convencer que Deus é amor.
Fiquei com medo de ser condenado a escolher entre as duas
piores penas de morte: a loucura e a lucidez, isto porque talvez não haja
liberdade onde não há entrelugares... Porém, uma memória socrática me
tranquilizou: a de que nenhuma lucidez e nenhuma loucura permanecem sãs e
salvas quando submetidas a um interrogatório sério.
Caminhando pelo corredor da vida, um sonho impossível trocou
de nome antes de soprar-me o rosto: escolheu ser rebatizado como futuro e tinha
por sobrenome implícito Esperança.
O futuro então me mostrou um Nobre Alguém que me ensinava todo dia
a abrir as portas de casa de uma forma diferente. Ele não precisava ter receio,
porque podia entrar e sair quando quisesse.
Cada vez que nos reencontrávamos, me presenteava com um
ramalhete de silêncios. E, vez por outra, ele aceitava um carinho meu e me
fazia feliz ver como seu olhar vencia pouco a pouco a lei da gravidade e
procurava o meu.
Resolvi me acostumar com seus(suas) amantes. A mais perigosa de
todas era a piscina de águas termais que ele hospedava em sua cobertura dos sonhos. Mas
ela não era páreo para a saudade que este Nobre Alguém aprendia a sentir de
mim. Não porque eu houvesse vencido sua autonomia, mas por haver me tornado uma
ilha de destaque no oceano de seus afetos.
Este Alguém me mandava cartões postais com fotos posadas ao
lado de pessoas eleitas para ser seus amores eternos, colhidos porto após
porto.
Mas, quando ele ancorava no meu apartamento, meu carinho,
meu apoio e meu Playstation 5 o esperavam de abraços abertos. E ele sabia que
eu o amava porque só o amor para nos tornar capazes de, a cada retorno de quem
amamos, inventar um Playstation avant
garde: a dica veio de seu anjo da guarda, que torcia era muito para que
fôssemos namorados.
De qualquer forma, o maior carinho que podia receber daquele
Alguém era ver suas feridas cicatrizando e seus sorrisos aprendendo a brotar e
gerando a despeita das rosas da França.
Duas ou três vezes por semana, o Nobre Alguém terminava tudo comigo
porque, mais do que jogar Playstation, agradava-lhe proclamar a independência
de si mesmo. Mas, o amor que eu sentia era intenso o suficiente para que eu
aguentasse ser uma Espanha que trazia cravada no peito um Alguém que era uma
verdadeira Catalúnia.
Não conseguiria enjoar dele porque era minha sina esperar
que se despisse da raiva do mundo e, antes do apagar das luzes, tentar decifrar
o segredo daquela inesperada doçura cáustica: ímã gêmeo de uma esmeralda.
E que saudade de ver aquela nuca tão linda. E que medo do Nobre amor esquecer como é o som da minha voz.
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