Foto by Domingos Peixoto - O Globo |
Guerreiro, vândalo, terrorista, herói. Estes termos têm se
confundido no imaginário da população, reduzindo o valor dos esforços humanos a
triviais metáforas bélicas costuradas a referências ultrapassadas do comunismo
e do totalitarismo. É um tipo de surrealismo às avessas.
Manifestantes e policiais de butique compõem um quadro surrealista
em que a liberdade traz numa das mãos gás lacrimogêneo, noutra vinagre, noutra
a herança que tenta desesperadamente combinar a “cordialidade brasileira” ao “autoritarismo
colonizador”.
Gilberto Freyre chamava atenção para esta tendência ao
mencionar como, na Casa Grande, num instante a Sinhá era íntima da mucama e,
logo em seguida, arrancava-lhe todos os dentes, com um alicate e a ponto cru,
movida pela suspeita de que a referida mucama pudesse lhe querer roubar o
marido.
Salvador Dalí - The Dust of Souls - Releitura de O Inferno de Dante |
O pior é que, diante da indecisão entre a cordialidade e o
autoritarismo, instala-se a covardia e abrem-se às porteiras para as mais
terríveis pulsões inconscientes, como a tortura e o linchamento. A violência,
nesse tipo de manifestação e, independentemente de que lado parte, deixa de ser
regida pelo tradicional binômio ataque-defesa e passa a ser regida pela lógica
do carcará: “pega, mata e come”. É uma violência, por um lado, com um quê de
vingança contra as carências e as estiagens impostas pela existência, e, por
outro, nutrida pela arrogância e “auto-suficiência” dos senhores de engenho que
desejam eliminar, de uma vez, a ameaça para poderem retornar para a rede e lá
ficarem comendo, peidando e sendo abanados (adulados) pelos escravos: Foi
Gilberto Freyre quem disse...
E nem o pobre cachorrinho escapou, sendo atingido pelo spray
de gás lançado por um policial que deu vazão à parcela autoritária de nossa
herança colonial...
A vanguarda surrealista tinha por vocação descondicionar a
razão de seu potencial autoritário. Fazia isso por meio do que Salvador Dalí
chamou de método hiperestético paranoico-crítico. Isto porque, como um tipo de
antena paranoica e também parabólica, procurava conexões de sentido que
desafiassem a ditadura dos logicismos institucionalizados pelos poderes e pelos
pudores.
O surrealismo d’aujourd’hui
continua sendo um método paranoico-crítico, mas, abrindo mão do
potencial estético que confere doçura à paranoia e sensibilidade à crítica,
acaba por se tornar uma máquina criadora de monstros que são uma hedionda
mistura de razão e desrazão.
Assim como Dalí recriou o Inferno de Dante, por meio de sua
paranoia crítica, as manifestações de São Paulo fizeram algo semelhante. Mas,
parece que contentaram-se em ter como paraíso um estranho vaivém entre um dissimulado purgatório e um mascarado
inferno.
Na próxima postagem, falaremos sobre a releitura de Dalí
para o Inferno de Dante, conjunto de imagens que está em exposição no Recife, no Centro Cultural Caixa Econômica até julho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário