Fonte: Sengoku |
Peço desculpas aos
historiadores se minhas referências estiverem erradas e ao mérito dos juristas
se o que disser, nessa postagem, macular o tesouro angariado pela
jurisprudência.
Na tão distante [e tão
próxima (e tão distante)...] Antiguidade, bem como na Idade Média, havia
códigos de honra para o exercício da violência, por mais injustificável que
esta sempre tenha sido (nisto que digo mora, sem sombra de dúvida, uma
redundância, posto que a violência é o injustificável). Mas havia também espaço
para os requintes de crueldade, que, como os vampiros, têm vagado através do
tempo, eternamente jovens, e incapazes de matar a sede.
Ao falar sobre códigos de
honra, refiro-me àqueles que instituem um campo de batalha, a mínima abertura
para negociações diplomáticas e o enfrentamento entre pessoas armadas e
dispostas a combater, o que exclui crianças e outras pessoas indefesas.
Assim também como os
vampiros, os requintes de crueldade assumem as vestes de seu respectivo tempo. E
parece que, neste momento, os códigos de honra estão se tornando um tipo de
cachecol de organza prestes a dar adeus, levado pelos ventos da desfaçatez.
O historiador Eric
Hobsbawn acha, na II Grande Guerra, um marco para o abandono deliberado dos
códigos de honra, contexto em que os ataques aposentam as trinhcheiras e invadem,
de forma massiva, o reduto dos civis, como atestam os bombardeios alemães sobre
Londres e o início do uso de agentes químicos e armas biológicas que roubam do
adversário qualquer chance de se colocar em pé de igualdade perante o
adversário.
Por mais injustificável
que a violência sempre tenha sido, termina, quando desprovida de códigos de honra, por subverter a mais famosa frase atribuída a Maquiavel (e que ele nunca disse):
“Os fins justificam os meios”. Se esta frase, por si só, já é ferida pela
indiferença e pelo cinismo, imaginemos quando é imundamente cambiada em “Os
meios justificam-se, independentemente dos fins”.
Esta “lógica” tem regido
crimes recentes como o do jovem morto por questionar o valor da conta na
churrascaria, o da jovem assassinada aos nove meses de gestação, o de um jovem
casal atacado com uma bomba caseira enquanto aguardava, em seu carro, que o
semáforo abrisse e o da menina de um ano morta por um tiro numa tentativa de
assalto ao carro da mãe.
Em todos esses casos, os
criminosos não obtiveram nada em troca. Não houve fim para sequer tentar justificar
o injustificável, ou seja, a violência utilizada. A mídia chama estes
criminosos de monstros e animais, mas os monstros e os animais são movidos por
instintos, enquanto o que tem movido a violência contemporânea é um tipo de
ódio engravatado: um ódio cuja motivação não é triunfar em cima dos despojos da
guerra, mas sim contentar-se em nutrir-se de suas próprias chamas de gelo. A
violência contemporânea nutre-se da perpetuação de seu ciclo, como um abutre
que não se cansa de engolir o próprio vômito, fingido estar a busca de
nutrientes.
A violência contemporânea se suja de sangue,
mas traz nas veias uma sede de ser clean,
de promover a assepsia. Não é a animalidade que a move ou o desejo de ver o
mais “frágil” ser subjugado. É mais o desejo de acreditar-se capaz de ignorar (e,
neste sentido, ignorar se opõe a orar, cuja significação primeira é reconhecer
a importância da presença dos outros no mundo) a presença do outro, simulando
uma volta ao Gênesis e conspirando para rebobinar o “tape” da criação,
descriando as criaturas. O “requinte” da crueldade, em seu "look" atual, faz do sugar o sangue alheio
uma desculpa para sugar da existência a presença humana.
Mas, esse texto não é um
esforço para tornar compreensível o incompreensível. É antes um olhar sobre a
fratura exposta das contradições que o quotidiano tem tentado substituir pelo
modismo do engessamento.
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