Head of Christ, Georges Rouault |
O brinde
Por Clistarco Sepúlveda
Enquanto os apóstolos dormiam, aproximei-me de Jesus em sua
agonia, no Getsêmani
Éramos todos vigilantes: Cristo, eu, meus beijos e minhas
traições.
Quis fazer de uma das flechas da lua um lenço para enxugar o
sangue cansado no rosto do meu Amigo.
Ou talvez, quisesse, em minha cleptomania, roubar de seu
precioso sangue e, junto, roubar a palidez lunar para guardar não sei onde,
pois minha aljava estava furada: não resistiu ao peso das ogivas
Como quis colar teu rosto ao meu e soprar até teus
horizontes atracarem no cais do reerguimento! Beberia teu grito com cálice e
tudo e me fartaria do sonho ensandecido de achar, no meu vazio sem fundo, um
tiro certeiro para tua amargura.
Despi-me, nudez após nudez, mas não consegui jogar fora os
vales de sombra, nem as metáforas de guerra onde se apoiava minha invalidez.
Tua alma, cansada até a morte, armada de consolo, fez amor. Pude sentir a brisa
daquele gozo que me acolhia: a mim e a minhas precoces revoadas à procura das
asas que os abismos tomaram emprestado e não mais queriam devolver. E só teu
abraço, com teu corpo fragilizado pelo peso das almas, para convencer os exércitos
em mim, a, àquela altura, darem meia-volta.
Meus dedos trocaram os anéis de Saturno por teus cachos e
desejei ardentemente que a memória daquele desvelado carinho pudesse no futuro
aplacar a marcha dos espinhos sobre tua fronte. Creio que não consegui, Amigo
meu que não me pertence! Mas, de repente, tu me olhaste e, telepaticamente,
disseste-me:
- Pronto, já aceitei de volta o vinho tinto da amargura!
Então, avistei ao fundo do cálice uma nascente de águas
vivas cujos remetentes eram multidões de corações humanos que, antes de
nascerem, batiam ansiosamente pela oportunidade de achar a saída depois que
aquele amargo mar se ia secar.
Cálice - Chico Buarque e Milton Nascimento
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