8 de agosto de 2012

O beijo na boca de Tereza D’Ávila e o sentido da vocação

O êxtase de Santa Tereza d'Àvila - Gian Lorenzo Bernini(1598-1680)



Aos amigos Loyo (Wanessa) e Neiva (Saulo), que me apresentaram o texto de Eliane Brum



Reza a lenda que Santa Tereza D’Ávila certa ocasião precisou dos serviços de um especialista em construção. Este não se fez de rogado e desafiou-a: “Só faço a obra que o convento necessita se me deres um beijo na boca”. E D’Ávila não hesitou e beijou um dos beijos mais íntegros da história humana. Tereza se entregara tão inteiramente a Cristo que sabia que eram os lábios dele a beijar aquele homem. E, quando Cristo beija, nossos lábios são meros apêndices do ardor da vida. Era tão forte a vocação de Tereza, que achou uma forma de fazer da “traição” um grande gesto de lealdade.

A psicóloga Debora quando não está em missão, pela organização Médicos Sem Fronteiras, passa alguns dias de folga no Espírito Santo, onde redescobre como é comer, dormir e tomar banho quando tem vontade. O restante do tempo, ela lida com dores de pessoas que, de tão vitimadas pela vida, confundem os gritos com o chamado de uma vocação para cair nos cárceres da liberdade. Depois de perderem tudo e descobrirem que o risco da perda mesmo assim continua, estas pessoas, com ajuda de Debora, conseguem ouvir o chamado de uma forma minimamente mais suave. A vocação de Debora não está na grandeza do sagrado, mas no elogio ao profano. Debora ajuda, por exemplo, mulheres da África a esquecerem a sacralitude da vida dos parentes que perderam, dos seus corpos que sofreram o estupro dezenas de vezes.

Se estes bens fossem o tempo inteiro considerados sagrados, estas mulheres enlouqueceriam. Elas precisam, mesmo que por poucos instantes, aprender a dessacralizá-los, esquecê-los: precisam mandar o sagrado se danar e se entregar à memória das danças que dançavam quando a vida ainda ensaiava o ritmo da paz. Debora tem a vocação de fazer as vítimas dos piores tipos de catástrofe permitirem que suas dores sejam profanadas por migalhas de chama de alegria forjadas do que não sobrou.

Ano passado – ou retrasado – foi divulgada internacionalmente a mais valiosa vaga de emprego do mundo. Um salário de dezenas de milhares de dólares para se trabalhar durante pouco tempo num lugar paradisíaco. Desconfiado da engrenagem dessa esmola, fui sondar a notícia mais a fundo. Descubro que o “paraíso” é uma ilha australiana, que traz em suas águas cristalinas crocodilos king-size, trincheiras de corais afiadíssimos, além de águas vivas capazes de nos perder dentro de seus abraços. Houve uma pessoa que topou o “trampo de férias”. Percebi, então, que até para amansar a vida é preciso se ter vocação... Mais do que se ter dinheiro...

Quando lançou as bases para a Reforma Protestante, Martinho Lutero fez uma reconstituição do significado da palavra vocação, que deixou de ser encarada como restrita ao chamado para a vida religiosa e passou a abrigar o sentido de chamado para as atividades da vida “profana”, a exemplo do trabalho.

Esta identidade dividida entre sagrado e profano acompanha o chamado vocacional. Uma das hipóteses sobre a origem da palavra vocação refere-se à história do profeta Samuel. Nela, logo se percebe que a vocação não é sinônimo de mergulho incontornável no sonho. Samuel, como relata a Bíblia, teve o sono perturbado insistentemente por Deus até compreender que deveria aceitar o convite (ou a intimação) para ser mensageiro dos planos divinos.

Já o profeta Jeremias quis várias vezes abrir mão de tudo, até mesmo de comer, tamanho o desânimo em dar continuidade ao caminho inaugurado pelo chamado vocacional. Diante das desilusões, perseguições e falta de recompensa, ele lembrava como a vocação significava um tipo de deslealdade praticada por Deus que, com seu rosto e voz invisíveis, seduz inapelavelmente os seres humanos a se deixarem seduzir pelo beijo mais doce de descaminhos que antes de beijar deram uma boa golada em alguma taça amarga.

Engana-se quem pensa que a principal razão de ser da vocação é o nosso encontro com o que há de mais eu em nós. Neste caso, não seria bem vocação, mas sim conformismo. Quando acho que meu eu foi plenamente colonizado, resumo-me a ensaiar a caligrafia da hipocrisia nas beiras comidas de um epitáfio rascunhado.

A vocação diz desrespeito ao eu. Tudo o que eu não espero e o que eu desespero dá o tom do chamado vocacional. E, por mais dura que pareça a realidade, o prazer da vocação só se revela com efeito retardado, como a agradável surpresa de uma visita inesperada. E este prazer, como praticamente sempre, traz mais demandas para o dono da casa do que para o vampiro visitante.

Há quem diga que o vocacionado tem de conviver com o eterno adiamento do eu, isto é, com o sacrifício. A vocação é um dia de chuva nublado pelo sol. Chego a pensar que a vocação é me reconhecer num espelho que me desconhece


Conheça a fundo a história da psicóloga Debora, na coluna da jornalista Eliane Brum.


Vocação - Padre Zezinho

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