Meu amigo Hauer chegou à Assessoria de Imprensa em que trabalhamos contando a reação de um vizinho ao assistir a noite de amor entre dois homens no capítulo de ontem da novela Liberdade Liberdade. O brado retumbante de um povo anti-heroico ecoava no protesto dele: “Isso é uma safadeza”. No comentário de uma mulher, pinçado do Twitter: “É o fim. Sempre a Rede Globo passando dos limites. Enquanto isso escolas estaduais sem professores. Obrigada, Brasil”.
Comentários desse tipo expõem o que podemos chamar de
disfunção conectiva, que aparece para canalizar inconformismo, ira, nojo, medo,
enfim, sentimentos incômodos, condensando-os e direcionando-os para algum tipo
de bode expiatório. Não é incomum que a disfunção conectiva ganhe a forma do
escárnio.
Por mais imersos que estejamos na complexidade e assumamos
como verdadeira a premissa da teoria do caos de que o bater das asas de uma
borboleta em Caruaru é capaz de gerar um tsunami no deserto do Saara, não é tão
complicado perceber que a complexidade pode se tornar um véu ideológico, buscando
fazer parecer “argumentação” cláusulas “pétreas” do manual da hipocrisia e da
intolerância.
Ensaiemos tornar aéreas as raízes de crenças e valores e nos perguntemos: Qual a conexão que existe entre o fim do mundo ou entre a falta de professores nas escolas de qualquer estado brasileiro e a relação sexual entre dois homens (isso sem mencionar o fato de que esta relação pertenceu a uma obra de ficção)?
Desbastando as camadas arqueológicas dos comentários das
redes sociais pautados por ideias desconexas, pode-se encontrar um
núcleo discursivo petrificado, algum preconceito que se deseja manter
inflamado, impedindo feridas sociais de cicatrizarem.
Com relação aos comentários trazidos no início do texto, a
cláusula pétrea subjacente aos “argumentos” desconexos parece ser a ideia do
retorno de um deus vingador, que voltará para separar o joio do trigo. Adubada
pela conveniência mesquinha, a cultura brasileira separa o joio em categorias.
A liberdade de gestão do corpo e dos desejos é considerada um joio que deve, de
imediato, ser lançado na fogueira. Porém, o imaginário patriarcal de subjugação
é tomado como um joio socialmente admissível e até convidado a ser alternativa
ao trigo.
A “safadeza” que faz ferver de raiva o sangue dos machistas,
incomoda por expor uma dupla face de nossa cultura. Por um lado, ansiosa pelo
apocalipse. Em sua verve de babar o ovo da chefia, dispõe-se a poupar o deus
justiceiro do trabalho de separar o joio do trigo. Para isso, investe na inútil
e interminável Operação Invasão de Privacidade. Por outro, disposta a evitar a fadiga,
faz vista grossa para a corrupção diluída nos gestos cotidianos.
O combustível da disfunção conectiva comumente é um recalque
que o inconsciente deixa escapar, traduzindo-o em ataques físicos e/ou verbais.
Mais especificamente no caso do rancor devotado à cena dos atores Caio Blat e
Ricardo Pereira, esse fantasma é um misto de complexo de inferioridade e
megalomania. O telespectador macho patriarca (posição simbólica que pode ser
assumida tanto por homens quanto por mulheres), megalomaníaca e inconscientemente,
sente-se irresistível, como se não houvesse um homossexual no mundo que não
tivesse o impulso incontrolável de se jogar em seus braços.
Ao mesmo tempo, o machista sente-se inferior ao ver encarado
como algo normal o romance homossexual; ao vê-lo como um espelho no qual se
enxerga frígido, incapaz de contornar o pavor de que um representante das zonas
de intersecção entre Yin e Yang o toque. O toque aceitável para o machista é
aquele que mantém inquestionáveis as hierarquias e os dualismos. O apelo
monológico de seu preconceito se torna mais erógeno que o contato entre as
peles.
Outra face da megalomania machista é a possibilidade de
encontrar um alvo sobre o qual desferir sua imaginária onipotência. Os raios de
Zeus assumem formato de nojo e fúria e tentam mascarar a frustração de ver seu patriarcado
ameaçado diante da exposição da homossexualidade na mídia, incorporada ao
cotidiano do amor. Um novo cenário histórico onde a mulher para ser mulher não
precisa mais ser uma Dafne fugindo da subjugação masculina. A mesma Dafne, que,
vencida pelo cansaço, roga para ter anulada a própria feminilidade, para
vegetar. Nesse novo cenário, Jacinto poderá ser amado por Apolo sem precisar
morrer para dar provas de que não existe felicidade possível no amor entre dois
homens.
A cena de ontem da novela das 11 foi como uma seção de
terapia conjunta, na qual Apolo, Dafne e Jacinto começaram um acerto de contas,
abrindo mão de dar satisfações ao patriarca Zeus.
Saiba mais sobre
o mito de Apolo e Dafne aqui.
Saiba mais sobre o mito de Apolo e Jacinto aqui.
A cena de Liberdade, Liberdade aqui.
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