13 de julho de 2016

Liberdade, Liberdade: bastidores dos comentários machistas a respeito da cena de amor homossexual



Meu amigo Hauer chegou à Assessoria de Imprensa em que trabalhamos contando a reação de um vizinho ao assistir a noite de amor entre dois homens no capítulo de ontem da novela Liberdade Liberdade. O brado retumbante de um povo anti-heroico ecoava no protesto dele: “Isso é uma safadeza”. No comentário de uma mulher, pinçado do Twitter: “É o fim. Sempre a Rede Globo passando dos limites. Enquanto isso escolas estaduais sem professores. Obrigada, Brasil”.

Comentários desse tipo expõem o que podemos chamar de disfunção conectiva, que aparece para canalizar inconformismo, ira, nojo, medo, enfim, sentimentos incômodos, condensando-os e direcionando-os para algum tipo de bode expiatório. Não é incomum que a disfunção conectiva ganhe a forma do escárnio.

Por mais imersos que estejamos na complexidade e assumamos como verdadeira a premissa da teoria do caos de que o bater das asas de uma borboleta em Caruaru é capaz de gerar um tsunami no deserto do Saara, não é tão complicado perceber que a complexidade pode se tornar um véu ideológico, buscando fazer parecer “argumentação” cláusulas “pétreas” do manual da hipocrisia e da intolerância.

Ensaiemos tornar aéreas as raízes de crenças e valores e nos perguntemos: Qual a conexão que existe entre o fim do mundo ou entre a falta de professores nas escolas de qualquer estado brasileiro e a relação sexual entre dois homens (isso sem mencionar o fato de que esta relação pertenceu a uma obra de ficção)?

Desbastando as camadas arqueológicas dos comentários das redes sociais pautados por ideias desconexas, pode-se encontrar um núcleo discursivo petrificado, algum preconceito que se deseja manter inflamado, impedindo feridas sociais de cicatrizarem.

Com relação aos comentários trazidos no início do texto, a cláusula pétrea subjacente aos “argumentos” desconexos parece ser a ideia do retorno de um deus vingador, que voltará para separar o joio do trigo. Adubada pela conveniência mesquinha, a cultura brasileira separa o joio em categorias. A liberdade de gestão do corpo e dos desejos é considerada um joio que deve, de imediato, ser lançado na fogueira. Porém, o imaginário patriarcal de subjugação é tomado como um joio socialmente admissível e até convidado a ser alternativa ao trigo.

A “safadeza” que faz ferver de raiva o sangue dos machistas, incomoda por expor uma dupla face de nossa cultura. Por um lado, ansiosa pelo apocalipse. Em sua verve de babar o ovo da chefia, dispõe-se a poupar o deus justiceiro do trabalho de separar o joio do trigo. Para isso, investe na inútil e interminável Operação Invasão de Privacidade. Por outro, disposta a evitar a fadiga, faz vista grossa para a corrupção diluída nos gestos cotidianos.

O combustível da disfunção conectiva comumente é um recalque que o inconsciente deixa escapar, traduzindo-o em ataques físicos e/ou verbais. Mais especificamente no caso do rancor devotado à cena dos atores Caio Blat e Ricardo Pereira, esse fantasma é um misto de complexo de inferioridade e megalomania. O telespectador macho patriarca (posição simbólica que pode ser assumida tanto por homens quanto por mulheres), megalomaníaca e inconscientemente, sente-se irresistível, como se não houvesse um homossexual no mundo que não tivesse o impulso incontrolável de se jogar em seus braços.

Ao mesmo tempo, o machista sente-se inferior ao ver encarado como algo normal o romance homossexual; ao vê-lo como um espelho no qual se enxerga frígido, incapaz de contornar o pavor de que um representante das zonas de intersecção entre Yin e Yang o toque. O toque aceitável para o machista é aquele que mantém inquestionáveis as hierarquias e os dualismos. O apelo monológico de seu preconceito se torna mais erógeno que o contato entre as peles.

Outra face da megalomania machista é a possibilidade de encontrar um alvo sobre o qual desferir sua imaginária onipotência. Os raios de Zeus assumem formato de nojo e fúria e tentam mascarar a frustração de ver seu patriarcado ameaçado diante da exposição da homossexualidade na mídia, incorporada ao cotidiano do amor. Um novo cenário histórico onde a mulher para ser mulher não precisa mais ser uma Dafne fugindo da subjugação masculina. A mesma Dafne, que, vencida pelo cansaço, roga para ter anulada a própria feminilidade, para vegetar. Nesse novo cenário, Jacinto poderá ser amado por Apolo sem precisar morrer para dar provas de que não existe felicidade possível no amor entre dois homens.


A cena de ontem da novela das 11 foi como uma seção de terapia conjunta, na qual Apolo, Dafne e Jacinto começaram um acerto de contas, abrindo mão de dar satisfações ao patriarca Zeus.

Saiba mais sobre o mito de Apolo e Dafne aqui.

Saiba mais sobre o mito de Apolo e Jacinto aqui.

A cena de Liberdade, Liberdade aqui.

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