Bandeira do Poliamor Fonte: Lille Skvat.blogspot |
Herbert Marcuse chama atenção para como o Capitalismo trancafiou
Eros na região pubiana. Daí a ilusão dos modernos de que a sexualidade se
restringe à acoplagem entre pênis e vagina. Soma-se a esta ilusão o efeito prolongado
de outra proveniente da herança judaico-cristã, que associa os genitais
masculino e feminino ao fruto proibido e à serpente traiçoeira,
respectivamente.
De certa forma, está no inconsciente coletivo a ideia de que
o ato sexual revive o divórcio entre o ser humano e Deus, causado por nosso 1%
vagabundo que não resistiu à tentação de flertar com Lúcifer, a quem a própria
bíblia atribui a alcunha de anjo mais belo de todos.
Mas, voltando ao Capitalismo, o motivo de se negar ao corpo
inteiro o direito ao impulso erótico, restringindo-o à rola e à buceta (respiro
aliviado porque o corretor ortográfico não corrigiu a palavra “buceta”) é que,
segundo Marcuse, um corpo plenamente erotizado não daria conta de sacrificar o
prazer em nome do esforço para manter a máquina produtiva a todo vapor.
Marcuse, em algum momento, vai dizer que se o corpo tomasse
posse integralmente do seu direito ao erotismo, duas pessoas gastariam a vida
explorando mutuamente suas zonas erógenas e, desse modo, o sistema capitalista
seria decapitado.
Nesse ponto discordo do autor alemão, tendo em vista que o
amor romântico, invenção que definiu com clareza seus contornos no século XIX,
durante a Revolução Industrial, está diretamente relacionado ao monopólio do
erotismo exercido pela região pubiana. O casal, nesse sentido, é uma extensão
do encontro entre regiões pubianas, refletindo o mecanismo chave-fechadura,
imagem que, de forma subjacente, nutre o ideário da propriedade privada. Pois,
como é sabido por quem bem o sabe, a obsessão mais cara ao Capitalismo é a
busca incessante pelo encontro perfeito entre chaves e fechaduras.
Mas, como refletimos anteriormente em outra postagem, o Capitalismo está conhecendo
uma nova fase que, como bem a resumiu o leitor Castro Batera, pode ser chamada
de Capitalismo de acesso compartilhado. Informações, imagens, veículos, casas,
enfim todos os espaços de convívio estão se afastando do imaginário
chave-fechadura, típico da propriedade privada, e começando a apostar num
imaginário de compartilhamento de bens tanto materiais quanto simbólicos.
Certamente talvez, como em toda fase de transição, há o conflito
entre o imaginário estabelecido e o imaginário em formação (cuja imagem é algo
nebuloso e inquietante, mas também ferido por um mistério que instiga a
criatividade).
E as relações amorosas? Como ficam diante desse novo
contexto?
Vou somente levantar hipóteses. Peço um voto de confiança e
fico aberto às críticas íntegras e saudáveis.
No Capitalismo tradicional, os fundamentos das relações
amorosas confundem-se com os fundamentos da propriedade privada. Nessa
perspectiva, o casal (outra extensão da metáfora da chave-fechadura) tende a
personificar um contrato social pautado pela exclusividade e qualquer
interferência externa tende a ser encarada como um “caso de polícia”.
O signo da propriedade privada atua com tanta força que a
possibilidade do oligopólio é praticamente banida, restando aos relacionamentos
um lugar entre o duopólio e o monopólio, tendo em vista que os envolvidos, não
raro, tendem a reduzir-se a objeto do outro. Perceba-se que os impulsos
eróticos do amor e do carinho tendem a ser concentrados num microcosmo: o casal
ou o monopólio que finge ser um casal.
Poderíamos cogitar a possibilidade de que no novo
Capitalismo, de acesso compartilhado, haveria uma tendência ao rompimento desse
microcosmo e as relações amorosas tenderiam também a ser um espaço de
compartilhamento, que, na falta de uma palavra melhor, vem sendo chamado de
poliamor.
A gestão desse espaço de compartilhamento deverá ser um dos
desafios colocados à psique dos que se amam. De início, parece haver uma
confusão entre o poliamor e o oligopólio. Daí a ideia de que o poliamor
significaria amar um, depois outro, depois outro... com curtos intervalos de
tempo entre o “Prazer em conhecê-lo” e o “Foi bom, mas agora adeus!”. A relação
amorosa trocaria a exclusividade pela descartabilidade. Nada de novo, pois exclusivo
e descartável são ambos adjetivos pertencentes ao dicionário da acumulação
capitalista e da propriedade privada.
Talvez o que os ventos do poliamor estejam tentando trazer
de novo e desafiador, e que poderá contribuir para a emancipação humana, seja
um novo sentido para a palavra compromisso. Poliamor não significa o fim do
compromisso. Assim como o acesso compartilhado não significa reduzir os
relacionamentos a “Casas-da-Mãe-Joana”.
O poliamor envolve uma superação da premissa de Maquiavel de
que é melhor ao ser humano ser temido do que amado, tendo em vista que só o
temor, segundo o pensador italiano, obriga o outro a fazer que o queremos que
ele faça.
O poliamor não precisará obrigar ninguém a nada e dependerá
do compromisso que cada um dos envolvidos tem consigo mesmo. É deste
compromisso que brota a disposição de amar. O “fazer amor” ganhará um
significado ainda mais amplo, pois será um projeto que vai requerer a presença
de diferentes artífices, trabalhando em equipe para a felicidade mútua,
enfrentando os sacrifícios, os medos, as ansiedades e compartilhando os
prazeres, o que não significa, necessariamente, que todos terão de participar simultaneamente
do ato sexual.
Mas, algo que já existe, como a troca de carinhos, de “chêros”,
abraços e até beijos, entre os integrantes do complexo de poliamor, não deverá
ser nada de outro planeta. Ficará mais claro quando o limite do outro estiver
sendo ultrapassado e a comparação não fará mais sentido, pois quem busca o
poliamor quer amar o amor que cada um tem a oferecer e não experimentar os
outros como se fossem roupas até achar o “amor perfeito” que, nada mais é do
que um apelido que o Capitalismo tradicional deu à antessala do descarte.
É provável que os partícipes da inequação do poliamor tenham
de administrar a ideia de que haverá ligações mais fortes com uns do que com
outros. Por isso, se eu for poliamar, meu “poli” se resumirá a três ou quatro
pessoas porque quanto mais gente, maior é o intervalo de saudade até que os
envolvidos se reencontrem.
O ciúme, as inseguranças e os demais vícios do
relacionamento amoroso serão mais fáceis de administrar porque o revezamento
entre amizade e amor será um pré-requisito para o poliamor. A amizade
trabalhará em prol da compreensão onde o amor pecar por excesso. O espaço da
amizade se ampliará, restituindo a Eros o direito de escapar da região da
genitália e fazer-se presente no corpo inteiro.
O poliamor não significará o fim dos casais, mas o aumento
do respeito e da confiança entre eles, a ponto de se permitirem o envolvimento
com outras pessoas. Em todo caso, o poliamor nunca poderá ser uma obrigação. Só há poliamor onde há consentimento recíproco ou, melhor dizendo, policíproco. Responsabilidade,
cuidado, atenção e consideração terão papel ainda mais relevante onde a
obrigação deixa de ser a tônica, onde a sociedade deixará Maquiavel descansar
em paz.
Tramas de exclusão mútua não terão vez e traição de verdade,
dolorosa, será trair não o amante em cena, mas o amigo que contracena nos
bastidores.
Os saudáveis e necessários momentos de solidão a três ou
mais terão papel ainda mais significativo (o que não significa mais longo) no
poliamor. Menos abandonos e joguetes, à moda de Choderlos de Laclos, porque o
intercâmbio entre amor e amizade deixará de ser traumático.
O maior trauma das relações amorosas, sob o signo do
Capitalismo tradicional, é o trauma de termos o amor roubado ou de sermos
abandonados, isto é, considerados “terra improdutiva” ou máquina obsoleta. E
todos esses traumas estão ligados ao fantasma da propriedade privada que
assombra as relações amorosas de hoje em dia.
Não consigo pensar no momento sobre os fantasmas que assombrarão
o poliamor, mas acredito que o poliamor genuíno continuará sendo amor, com suas
feridas que doem e não se sente, suportando, esperando e crendo. Certamente
também existirá espaço para o poliamor a dois: porém com muito menos recalque e
hipocrisia.
P.S.: Veja o significado da bandeira do Poliamor, que abre esta postagem, conforme explicado no blog Lilli Skvat:
Luego está bandera con la pi griega, que es la letra inicial del prefijo poli (muchos) proveniente del griego. Los colores tienen significado. El azul es la honestidad y apertura entre todos los miembros de la pareja. El rojo es el amor y la pasión. El negro es la solidaridad con aquellos que esconden sus relaciones por presión de la sociedad. El color dorado de la pi expresa el valor que se le da a las relaciones, que no son simplemente sexo.
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