Uma das cenas mais lindas do cinema, do filme O Pianista (confira o segundo vídeo, ao final da postagem), mostra a perplexidade de um
soldado nazista ao ver um judeu, fugitivo de um campo de concentração, tocar um
dos Noturnos de Chopin. Certamente talvez, a perplexidade encontra raízes em
nossos preconceitos, mas também, em nossa disposição de ver além do
preconceito. A perplexidade é um cabo-de-guerra entre o preconceito e o senso
crítico.
Em um vídeo que se tornou viral na
Internet, um mendigo aperta as teclas de um piano de cauda vermelho. Depois de
um primeiro acorde hesitante e desafinado, suas mãos desfiam uma linda e triste
melodia. No final da apresentação, a repórter pergunta de quem é aquela canção:
"É minha", afirmação recepcionada por um "Really" envolto
pela surpresa.
Os “campos de indiferença”, versões modernas dos campos de
concentração, inibem o florescimento de tantos talentos, como se quisessem
matar uma chama por afogamento. E, assim como no passado - onde os campos de
concentração eram cercados pela corrupção daqueles que brindavam e dançavam
enquanto a guerra comia do lado de fora – os campos da indiferença também são
eivados pela corrupção.
Desde crianças que deixam de nascer por falta de leitos para as
gestantes até aquelas que não podem estudar e combater as cláusulas pétreas
ocultas do preconceito: só a falta de infraestrutura mínima e o preconceito
elevado ao grau máximo são capazes de impedir que os talentos germinem. Tristes
somos quando acreditamos que a mendicância é fruto da escolha dos vagabundos
porque vagabundos todos somos pelo menos 8 horas por dia. A mendicância também
é reflexo da depressão anônima, que, por conveniência, associamos à safadeza e
à loucura: porque tentar compreender e ajudar cansa e queremos guardar nossa
cota de cansaço para carregar os pesos da academia.
Talvez, por isso, nossa época experimente a forte sensação de
tédio e desmotivação: por não abrir espaço para que os talentos floresçam com
suas sementes de surpresa. No campo minado da corrupção, da indiferença e do
compadrio, só pode nascer mesmo o tédio, escorado em nosso culto pelos talentos
dos mortos. Isso porque admirar o talento dos mortos é mais fácil do que
admirar o dos vivos, que, de algum modo, representam uma ameaça. E nossa época
não gosta de ameaças, mas sim da inércia.
Mas, a ameaça do talento é boa quando permitimos que ela deixe o
casulo e se torne surpresa. E o talento parece ser contagiante e tem vocação
para fazer parte de orquestras. Nem todo talento precisa seguir carreira solo
ou viver do aplauso impostor da Grande Mídia.
Oremos pela intercessão de Josué de Castro para que os talentos da
mendicância não sejam enterrados por uma espécie de “normalidade medieval”, que
considerava a pobreza decoração do Mapa Imúndi.
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