10 de fevereiro de 2015

O "surpreendente" mendigo pianista clássico




Uma das cenas mais lindas do cinema, do filme O Pianista (confira o segundo vídeo, ao final da postagem), mostra a perplexidade de um soldado nazista ao ver um judeu, fugitivo de um campo de concentração, tocar um dos Noturnos de Chopin. Certamente talvez, a perplexidade encontra raízes em nossos preconceitos, mas também, em nossa disposição de ver além do preconceito. A perplexidade é um cabo-de-guerra entre o preconceito e o senso crítico.

Em um vídeo que se tornou viral na Internet, um mendigo aperta as teclas de um piano de cauda vermelho. Depois de um primeiro acorde hesitante e desafinado, suas mãos desfiam uma linda e triste melodia. No final da apresentação, a repórter pergunta de quem é aquela canção: "É minha", afirmação recepcionada por um "Really" envolto pela surpresa.

Os “campos de indiferença”, versões modernas dos campos de concentração, inibem o florescimento de tantos talentos, como se quisessem matar uma chama por afogamento. E, assim como no passado - onde os campos de concentração eram cercados pela corrupção daqueles que brindavam e dançavam enquanto a guerra comia do lado de fora – os campos da indiferença também são eivados pela corrupção.

Desde crianças que deixam de nascer por falta de leitos para as gestantes até aquelas que não podem estudar e combater as cláusulas pétreas ocultas do preconceito: só a falta de infraestrutura mínima e o preconceito elevado ao grau máximo são capazes de impedir que os talentos germinem. Tristes somos quando acreditamos que a mendicância é fruto da escolha dos vagabundos porque vagabundos todos somos pelo menos 8 horas por dia. A mendicância também é reflexo da depressão anônima, que, por conveniência, associamos à safadeza e à loucura: porque tentar compreender e ajudar cansa e queremos guardar nossa cota de cansaço para carregar os pesos da academia.

Talvez, por isso, nossa época experimente a forte sensação de tédio e desmotivação: por não abrir espaço para que os talentos floresçam com suas sementes de surpresa. No campo minado da corrupção, da indiferença e do compadrio, só pode nascer mesmo o tédio, escorado em nosso culto pelos talentos dos mortos. Isso porque admirar o talento dos mortos é mais fácil do que admirar o dos vivos, que, de algum modo, representam uma ameaça. E nossa época não gosta de ameaças, mas sim da inércia.

Mas, a ameaça do talento é boa quando permitimos que ela deixe o casulo e se torne surpresa. E o talento parece ser contagiante e tem vocação para fazer parte de orquestras. Nem todo talento precisa seguir carreira solo ou viver do aplauso impostor da Grande Mídia.

Oremos pela intercessão de Josué de Castro para que os talentos da mendicância não sejam enterrados por uma espécie de “normalidade medieval”, que considerava a pobreza decoração do Mapa Imúndi.


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