6 de julho de 2014

Quando Grice tremeu no túmulo: os destinos da conduta conversacional nas redes sociais

Johannes Vermeer  (1632 - 1675)Mistress and Maid, 1666-1667 



Facebook: uma plataforma sem rosto, porque o rosto pressupõe expressões faciais cambiantes: sujeitas à lei da Ação e Reação

Diferentemente do que ocorre com os retratos, que, por mais “naturais” que sejam, tendem a reduzir a complexidade dos sentimentos a um resumo ou fórmula expressiva:

As fotos são mitos porque cristalizam a imagem do ser humano fora do ciclo do tempo e do espaço
Nas terras do Face e de outras redes sociais, as regras de conduta na conversação (entenda-se regra não como decreto, mas sim como princípio de orientação) passam por uma tremenda crise, muito embora, como é sabido por quem bem o sabe, as crises são doloridas, mas também saborosas, porque delas os afetos tiram matéria-prima para se reinventarem

De acordo com um pensador chamado Grice, a conversação é regida por um conjunto de máximas ou preceitos. À medida que um ou mais preceitos deixam de ser seguidos, torna-se mais difícil a compreensão entre os conversadores

Certamente, existe na conversação uma força que nos impele a propositalmente fugir dos preceitos conversacionais e, desta maneira, temperar as conversas com poesia, romance, ironia e, por que não, uma pitadinha de veneno (afinal de contas, somos filhos de Deus, n’est pas?). Porém, as redes sociais, com sua hiperconectividade frouxa são um convite a estranhas/inovadoras formas de compromisso. Bem, em vez de nos aprofundarmos na teorização, partamos para exemplos práticos:

Máxima da Quantidade – Diz respeito à quantidade de informação necessária para que a interação e a compreensão ocorram.  Quando se viola este preceito, as pessoas ficam confusas sem saber como agir e o que pensar.

As redes sociais trabalham com mensagens que circulam e, a cada novo ciclo, voltam carregadas de significado. É o que acontece com os memes, as hashtags e as demais mensagens. Por este motivo, uma pequena frase ou imagem pode, erroneamente, ser interpretada como dotada de uma sobrecarga de informação. Afinal, ninguém é obrigado ao acessar o Face a estar ciente do valor agregado por frases, imagens ou vídeos. Por conta do processo de acumulação cíclica de significado, as conversas tendem a ser trocadas por fórmulas como a complexa equação: ‘’Beijinho no ombro”

Outra questão das redes sociais é a análise da carga informacional dos silêncios. Como é sabido por quem bem o sabe, o silêncio nunca foi bicho fácil de compreender. E agora piorou tudo porque, se repararmos bem, o silêncio, nas redes sociais, tem o mesmo status que as expressões faciais possuem na conversação cara a cara. A diferença é que, nas redes sociais, fica difícil distinguir quando o silêncio está ligado ao bom e velho “quem cala consente” ou significa outras coisas como indiferença piedosa, preguiça, dúvida ou carinho reprimido

Talvez a maior inovação do Facebook seja a de ter inaugurado um espaço onde as pessoas inventam maneiras de silenciar, deixando os outros confusos e sem saber o que pensar. Sinal dos tempos? Qui peut dire?

Máxima da qualidade – diz respeito à qualidade das informações elencadas para que a conversação se mantenha. Segundo Grice, as informações precisam ser importantes, claras e verídicas.

Claro que seguir a risca o que prescreve Grice seria proclamar a ditadura do tédio, pois não tem conversação que se sustente sem uma dose de imprecisão, mistério e dúvida. Contudo, as redes sociais têm se mostrado extremamente hábeis em fazer a conversação continuar com base em informações pisadas e repisadas bem como em informações que são inverídicas, mas, mesmo assim, apontam para um tipo de veracidade subliminar. 

Na verdade, clareza e veracidade são pesos que os integrantes das redes sociais não têm feito questão de carregar. Isto não significa que as redes são lugar de mentiroso, mas sim que as redes questionam os critérios clássicos da clareza e da veracidade. Mas isto não acontece sem sofrimento, pois ao mesmo tempo que questionamos os clássicos, deixamos que boa parte de nossas reações nas redes sejam governadas pelos critérios clássicos de clareza e veracidade, o que gera muito ruído comunicacional

Máxima da Relevância – os conversadores devem estar sintonizados num mesmo tema. A mudança do tema da conversação deve ser aceita por todos os que participam dela.  Talvez este seja o principal complicador da interação nas redes sociais, tendo em vista que uma postagem do Face, por exemplo, pode suscitar cem comentários cada um falando de um tema diferente. No final, quando a pessoa que postou o comment vai ver, o que era pra ser um elogio ao novo filme de Angelina Jolie se transforma numa discussão sobre os fundamentos éticos da mastectomia. Mas, c’est la vie, mon  ami!

Máxima do modo – trata diretamente do uso da linguagem, que deve ser clara, concisa e ordenada, segundo Grice. O problema da clareza e da concisão, nas redes sociais, é que elas são fruto de disputa com a clareza e a concisão que os outros trazem para a conversação. 

E os testes do Inmetro revelam: clareza e concisão são como cu: cada um tem o seu. Mas, isso não significa ausência de esperança para a interação humana. Tenho esperança que, num futuro próximo, vão surgir botões no Facebook dizendo “Não compreendi” e “Me explica melhor” ou ainda “Precisamos falar a sós” para tentar salvar a conversa da cilada que uma suposta clareza, alimentada pelas ondas da fofoca irrefletida, pode causar à conversação

A máxima do modo condena a enrolação, a obscuridade, a falta de ordenamento na narração dos acontecimentos e a não brevidade (demora para se ir direto ao ponto). Mas, como é sabido por quem bem o sabe a conversação não foi feita simplesmente para irmos direto ao ponto, mas para transformarmos o ponto em ponto-e-vírgula, em reticências, em interrogação, em exclamação. E, a clareza não é atributo automático. Existe um tipo de clareza de segunda instância que exige de nós a disposição para entrar de mansinho no mistério do outro, ensaiando o gesto delicado de tirar-lhe os véus. 

Daí, vem, como dirão os gregos, a Aletheia (verdade), palavra que traduzida significa: “sem véus”. Em todo caso, as máximas de Grice têm um preceito que as redes sociais não conseguiram abalar: o de que a interação conversacional só existe onde há reciprocidade, mesmo que esta reciprocidade seja silenciosa.


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