Gruta de Nossa Senhora de Lourdes Foto de Cláudio Eufrausino |
A criança, recém-nascida – refém - fez uma prece. Ela não
pôde ficar de joelhos, pois a Trombofilia já havia lhe gangrenado parte de uma
das pernas. Sem direito a Amém, o pequeno partiu. Nos jornais, acadêmicos
desfiavam um rosário de ensandecidos clichês, tipo: “Foi uma perda lastimável.
Este bebê poderia ter se tornado um futuro Beethoven”. E, ao ler esta porcaria,
pensei comigo como tem se tornado raro o direito de continuarmos vivos para
sermos simplesmente nós mesmos, ao som das luzes e das tempestades e dos
silêncios: sem precisarmos pedir licença à 9ª Sinfonia para assobiarmos o
desejo de “só querer que o dia termine bem”.
A Trombofilia foi a primeira a subir ao banco dos réus. Foi-lhe
negado o direito a ampla defesa e contraditório previsto constitucionalmente
para todo cidadão: “A culpa não é minha, é do Estado”, afirmou Trombofilia em
meio a um estado de exceção, que finge ser democracia ovacionado pelos gritos
das torcidas dos times que galgaram a 1ª divisão.
Kafka, único defensor público disponível, bem que tentou sair
em defesa da Trombofilia. Mas, nem todo o seu alemão-tcheco-latim-grego, era
capaz de atenuar o “fato” de que a doença trazia em suas costas o peso de
antecedentes criminais de toda a história da humanidade. Lança-se, comumente,
sobre a doença, a culpa, para que o Estado seja absolvido de sua negligência,
imperícia e imprudência.
E, caso não fosse suficiente a condenação da Trombofilia,
era necessário achar outro bode expiatório: que suba ao banco dos réus o
Trâmite Bancário!
O Estado jurou, de pés juntos (ele pôde fazer isso, ao
contrário da criança, cuja doença-descaso gangrenou-lhe a perna), que a falta
de todo o remédio do qual o mundo carecia era do atraso do Trâmite Bancário
responsável pela chegada do dinheiro ao bolso de gelo das empresas
farmoquímicas multinacionais.
Trouxe, eu, de minha recente viagem à Europa, água benta
colhida na gruta de Nossa Senhora de Lourdes (França) e, agora, percebo que o
que mais a Virgem Maria deseja é que as fontes de água benta sequem. Ela quer
que os corações percebam que, nas veias da água benta, circula um rio ao
contrário: rio das lágrimas dos que têm sido vítimas da doença (?), dos
trâmites bancários (?), das multinacionais (?), do Estado.
“Meu coração anseia que a humanidade pare de tentar fazer que
a água benta e os milagres sejam prêmio de consolação para a vitória do descaso
com relação aos desamparados”, disse Maria Santíssima quando foi acusada pelo
Estado de ser cúmplice na morte da criança vítima de Trombofilia. O advogado de
acusação culpou a mãe de Deus por interromper o fornecimento de água benta e de
milagres, pois, segundo ele, podem faltar remédios, mas não há crime maior do
que suspender a remessa de água benta e milagres.
“Maria está certa. Não era a água benta que estava em falta.
Era a omissão que estava a entupir o caminho por onde a bênção deságua”,
explicou a água, outra cidadã convidada, pela Injustiça, a sentar-se no banco
dos réus.
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