Cena do filme Life or Something Like It |
A minha irmã Karla Gisele e minha mãe Marluce
Acho que o carro só capotou uma vez. É difícil contabilizar capotagens quando fazemos parte delas, assim como é difícil dizer com clareza em que orbital está um elétron.
Acho que o carro só capotou uma vez. É difícil contabilizar capotagens quando fazemos parte delas, assim como é difícil dizer com clareza em que orbital está um elétron.
Graças a Deus, dessa vez não precisei ser herói: ser
reduzido a cinzas para renascer delas como uma Fênix que, antes de voar,
precisou passar doze horas usando um colar cervical, sob observação médica ( de minha mãe, visto que, para um médico de plantão num hospital público, observar é, a um só tempo, verbo defectivo, irregular e anômalo).
Não precisei ser herói para que a primeira pessoa me
oferecesse água quando saí daquele carro capotado que, por ironia do
destinacaso, chamava-se Logan, mas diferentemente de Wolverine, não conseguiu
se regenerar.
Antes de capotar, cantava (eu; não Wolverine) a música “O que é o amor?”, composta por Dorival Caymmi e interpretada por Selma Reis. E pensei: será que o capotamento foi uma resposta da Providência àquela canção-questionamento?
Durante a capotagem, não houve tempo de ver um filme da minha
vida passar diante de mim. O que aconteceu foi ter ouvido um imenso pot-pourri, do qual tantas das músicas
haviam sido tocadas pra mim por minha tia Dicise, a primeira a trazer o piano para minha intimidade.
E, no cortejo das canções que
cortejaram aquele capotamento, Debussy andava de mãos dadas com Chitãozinho e
Xororó, Léo Jayme, Wando, Belle & Sebastian, Kiss, Fred Mercury, Wanderly, Led Zeppelin, Sinead O'Connor, Rita Lee, Luiz Gonzaga, Cold Play e
todos os injustiçados que as citações costumam deixar pelo caminho, porque a
citação que se preza sempre pede licença para, num mais tarde qualquer, reparar
as injustiças que comete.
Depois de sobreviver, uma de minhas primeiras tarefas
foi descobrir que pot-pourri significava “vaso podre” e que, em sua origem, é
uma mistura de ervas, perfumes ou especiarias: versão primeva do Bom Ar. Como Salvador Dalí e eu
desconfiávamos, existe mais em comum entre o sentido da audição e o do olfato
do que sonha nossa vã sinestesia... Talvez, por isso, a expressão pot-pourri
tenha sido apropriada para descrever a montagem de partes de músicas (arrisco-me a dizer que o pot pourri é o elo perdido entre música e cinema!).
Perdão, Senhor, pois pouco antes e pouco depois de minha
quase-morte, em vez de querer salvar o mundo ou me tornar um milionário dono de
barras de ouro (que valem mais do que dinheiro), quis fuçar o Google atrás de
cultura inútil. Mais, Ça va!
Já a caminho do hospital, depois de haver constatado que a
bondade humana ainda é capaz de chegar até nós, vinda de onde menos esperamos, um
filme não me saía da cabeça: Life or Something Like It. Estrelado por
Angelina Jolie, o filme, que em Português ganhou o título de Uma Vida em Sete
Dias, conta a história de uma repórter
que, após encontrar um vidente que prevê que ela morrerá em sete dias (Óbvio?),
entra em parafuso e começa a desafiar as convenções sociais.
A película reproduz a
ideia: felicidade = ser livre = mande as convenções tomarem no cu (depois do acidente, é praticamente irresistível tomar uma coca-cola e dizer um vai tomar no cu). Esta mensagem nos remete a Sêneca que, em algum tempo distante, antes de Cristo,
disse mais ou menos assim: “Viva cada dia intensamente, pois cada dia pode
trazer em si a vida inteira”.
Recebi essa mensagem de uma amiga, no dia do meu
aniversário. Isso sem nem me passar pela cabeça que sofreria um acidente de carro, às vésperas do
aniversário de minha irmã.
Depois da capotagem, meio que percebemos, Heisenberg e eu,
que...
Mentira, ainda não deu tempo de perceber nada, pois, Brecht
e eu estamos cuidando da papelada do seguro do carro.
E a música mais longa do pot-pourri que rolou na cena de
capotamento de “Embalos de segunda à tarde” - estrelado por este que vos escreve ( tendo em vista que John Travolta não topou ser meu dublê de corpo) - era feita de braços entrelaçados: era o abraço do homem que talvez me ame (e a quem
certamente amo): talvez, porque, ele é outro discípulo de Heisenberg.
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