Os atores Cláudio Fontana e Marcelo Antony na peça Macbeht, de Shakespeare |
Fazer uma crítica é, em errada medida, apresentar
nossas expectativas a nossas frustrações. Outra forma de definir a crítica
seria como o trajeto entre uma observação prévia – venenosa e imprevidente – e
uma futura observação revista e prudente. Mas, certamente talvez, a crítica, e
no caso da crítica teatral essa característica se torna marcante, tem como
função romper as amarras de perfeição e da completude, que ameaçam estrangular a
obra. A crítica devolve ao espetáculo a capacidade de voltar a ser ensaio.
Passeei por todas as definições de crítica, mencionadas
acima, ao assistir à leitura que Gabriel Vilela deu a Macbeth, texto de Shakespeare, cujo personagem-título foi interpretado por
Marcelo Antony no palco do Teatro Santa Isabel, em Recife.
Ao chegar ao teatro, crítico inexperiente que sou, acionei uma pequena
dose de veneno adoçada por uma quota de irresponsabilidade. Disse
então, antes de o espetáculo ter a chance de dar o primeiro suspiro:
- Que cenário interessante, apesar dos garrafões de água
mineral localizados ao fundo.
Observação idiota. A mesma coisa de
dizer que As Meninas, de Velázquez, é
um quadro fantástico, apesar de o pintor ter deixado, no quadro, a porta aberta...
Em seguida, a peça começou e, conversando com os botões que
fechavam o traje do silêncio, fiz outra observação menos idiota:
- Marcelo Antony está um pouco estranho. Ele foi uma das
melhores interpretações de Pilatos na história do espetáculo da Paixão de Cristo em Nova
Jerusalém. Mas, como Macbeh parece meio “canastrão”.
O dia seguinte viria me provar, assim como provou a Lady
Macbeth, que minha teoria estava errada. Mas, em vez de me jogar da sacada do
primeiro andar, escrevo esta crítica para lavar as idiotas precipitações que
escorrem das mãos de um crítico cultural.
Na saída do teatro, fui apresentado por minha amiga Anuska,
a um grande estudioso de Shakespeare: João César de Castro Rocha. Ele nos
perguntou se havíamos observado como, no decorrer da peça, as expressões
corporais de Macbeth iam se tornando mecânicas, como se sua autonomia desse
lugar à gestualidade de um boneco. Bem observado: o Macbeth de Marcelo Antony,
por força da pressão interna de sua ambição e da pressão externa por se adequar
às expectativas alheias, torna-se um títere (não à toa deve ter sido a escolha
de Shicó do Mamulengo para fazer os figurinos e adereços da peça).
Cogitei a hipótese de que o falar do ator remetia ao
trejeitos artificais do falar dos mamulengos que se apresentam para as crianças
no Nordeste. Isso, quem sabe, misturado à afetação e aos maneirismos que davam contorno aos gestos das cortes em fins da Idade Média.
Então percebi quão digno era o esforço de Antony, um grande
ator, para emprestar artificialidade à voz e aos gestos, reservando a carga
dramática para os detalhes. A artificialidade, nesse caso, dava mostras do
desespero de alguém que não pode ser ele mesmo
de tão ético que é. Sim, Macbeth é tão ético que tenta a loucura de
satisfazer, ao mesmo tempo, as demandas da sociedade, dos deuses (ou demônios),
de seu coração e de sua esposa (uma mistura das demandas listadas
anteriormente).
Macbeth é lido pelo diretor Gabriel Vilela como uma espécie
de Pinóquio que decide deixar de ser menino para se tornar boneco. E Lady
Macbeth é a rainha das fadas virada ao avesso e conspirando para que o
personagem deixe o nariz crescer até se tornar afiado o suficiente para assinar
com sangue a proposta que viria a ser feita por Maquiavel de, em nome da
vitória no jogo político, trancar fora de cena o escrúpulo e o moralismo.
Numa alusão ao já mencionado quadro de Velázques, Macbeth
torna-se refém da própria imagem e acaba preso na sua própria pintura, donde,
como uma pervertida mistura de Dom
Quixote e Dorian Grey, enfrenta seus inimigos. Antes, havia vencido exércitos,
mas, acaba sendo derrotado pelo maior exército do mundo, constituído de um só
soldado: a culpa.
A leitura que a montagem deu às bruxas que prenunciam o
destino de Macbeth traz à peça um humor que causa desconfortante alívio: muito
bom!
Porém, como de costume, a personagem mais cativante é Lady
Macbeth. A alma dela torna cativo o Macbeth que mora em cada um de nós. E as correntes
deste cativeiro ganham um brilho reluzente com auxílio da interpretação de Cláudio
Fontana. Só uma atuação marcante como esta para fazer esquecer o trauma de
ter visto Lady Macbeth ganhar vida na pele de Vera Fisher...
A Lady Macbeth da montagem de Gabriel Villela traz nos
passos uma gueixa, nas atitudes a revolta de Lilith e nas mãos o sangue que
Caim fez derramar, sangue que não para de clamar dos confins do mundo. É uma dama bretã com
feições do teatro Kabuki . Fontana encontrou no homem a pulsão ardente da
mulher e na mulher a pulsão ardente do ser humano.
A esta altura, espero já ter deixado para trás as observações venenoso-irresponsáveis,
dignas daquele tipo de crítico que analisa uma obra como um quiromante que lê a
palma do próprio furico.
Sim, não me esqueci dos garrafões de água mineral. Eles têm
função cênica. Quem viver para assistir ao espetáculo verá!
Que lindo esse seu desabafo... ABC Cláudio
ResponderExcluirQue bom ter teu comentário e tua atenção. Abraço!
Excluir